sábado, 10 de outubro de 2009

Romeu e a verdade

No De Rerum Natura tem-se escrito sobre a interessantíssima relação entre duas áreas de conhecimento: a arte e a ciência.

O matemático e epistemólogo Jacob Bronowski, à semelhança de outros intelectuais, dedicou muita da sua reflexão a este assunto: Como se pensa numa e noutra área? Em que se assemelham? Em que diferem?

Numa passagem da sua obra A responsabilidade dos cientistas e outros escritos, diz o seguinte:
“A ciência tal como a arte não é uma cópia da Natureza mas uma recriação da mesma. O acto criador é semelhante na arte e na ciência, mas não pode ser idêntico nas duas; tem de existir uma diferença assim como uma semelhança. Por exemplo, certamente que o artista no seu acto criador abre uma dimensão de liberdade que está vedada ao cientista (...). A sansão da verdade é um limite exacto que encerra (o cientista) de uma forma que não constrange o poeta ou o pintor.

Shakespeare pode fazer com que Romeu diga coisas acerca do olhar de Julieta que, se bem que reveladoras, não são de facto verdadeiras:

Oh, Ela ensina os fachos a arderem com mais brilho
Mas repara, que luz penetra além da janela?
É o Oriente e Julieta é o Sol.


O próprio Shakespeare está ciente de que estas afirmações diferem das que são feitas por observadores precisos. No entanto ele explora deliberadamente a diferença, por um novo feito poético, no soneto que começa mordazmente

Os olhos da minha Amada não se comparam com o Sol.

Isto tem o seu quê de pungência em não ser poético. Shakespeare, intencionalmente, desempenha neste soneto o cientista meticuloso que vai directamente ao fim,

O coral é de longe mais vermelho que os seus lábios
Se a neve é alva, quão escuros será o seu seio.


com o objectivo de afirmar, por último, de forma irresistível, que, mesmo no mero plano dos factos, o seu amor é incomparável. Sem dúvida que Shakespeare estaria disposto a aduzir noutra ocasião que a imagem poética pode ser considerada verdadeira: a parábola do Filho Pródigo é verdadeira em certo sentido, e do mesmo modo o é a perseguição de Orestes pela Fúrias, e as imagens da própria peça Romeu e Julieta (...).

Não podemos evitar a pergunta histórica - que é a verdade? (...) a civilização de que nos orgulhamos adquiriu uma nova força no dia em que foi feita a pergunta. Mais tarde, adquiriu a sua maior força através de homens do Renascimento como Leonardo, para quem a verdade em relação ao facto se tornou uma paixão. A confirmação do facto experimentado como face da verdade é um assunto profundo e a mola principal que fez mover a nossa civilização desde o Renascimento."

Referência:
- Bronowski, J. (1992). A responsabilidade dos cientistas e outros escritos. Lisboa: Dom Quixote, ps. 128-130.

Imagem:
Reprodução de uma pintura a óleo de Ford Madox Brown, de 1870
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