quarta-feira, 12 de março de 2008

A utopia do custo zero

A propósito da viva discussão mantida por Desidério Murcho com Ludwig Krippahl sobre a cópia gratuita indiscriminada de ficheiros na Internet, convidámos o economista Álvaro Santos Pereira para nos dar a sua perspectiva sobre o tema. Álvaro Santos Pereira é professor na Universidade de York, autor do blog Desmitos e dos livros Diário de um Deus Criacionista e Os Mitos da Economia Portuguesa (ambos na Guerra & Paz).

Em Outubro de 2007, os Radiohead decidiram colocar o seu novo álbum na internet, pedindo somente às pessoas que pagassem “um preço justo”. A iniciativa teve um sucesso extraordinário. No primeiro dia na Net, o álbum dos Radiohead foi descarregado por mais de um milhão de pessoas, muitas das quais optaram por pagar zero libras (ou euros ou dólares). De forma semelhante, uma das inovações mais recentes no mundo académico é a introdução de manuais escolares (“textbooks”) a custo zero para os estudantes. Os estudantes fazem o download dos livros sem pagar, com a pequena contrapartida de serem expostos à publicidade dos patrocinadores destes sites (como este e este).

E assim surge a questão inevitável: será a iniciativa dos Radiohead o prenúncio daquilo que está para vir? Serão os manuais escolares a custo zero uma revolução, como é publicitado pelos seus promotores? Será o preço zero a tendência do futuro? Será o preço zero inevitável com o crescente desenvolvimento da internet (e por causa da pirataria)?

A resposta a estas perguntas até pode ser afirmativa. No entanto, não é crível que o seja num futuro mais próximo. Para percebermos o porquê, imagine outro cenário. Suponha que decide escrever um livro. Já sabe o tema, já decidiu como proceder, e até pensa que o livro possa ser bastante inovador. No entanto, imaginemos que, de antemão, sabe que o livro será pirateado na internet ou será distribuído a preço zero. O que fazer? Vale ou não a pena escrever o livro, despendendo recursos e tempo precioso para o fazer? O(a) leitor(a) até pode decidir ir em frente com o projecto. Contudo, não pertencerá à maioria. Com efeito, se fizermos uma sondagem a escritores, cientistas, inventores ou outros criadores, é mais que certo que o preço zero simplesmente não seja opção para a grande maioria deles(as). Não é toa que se inventaram patentes. Exactamente para recompensar os criadores do esforço (e do investimento) empreendido.

Ora, não há qualquer evidência empírica que o número de patentes tenha diminuído nos últimos anos com a “chegada” do custo zero. Muito pelo contrário. Em todos os países, o número de patentes tem crescido a olhos vistos. Além do mais, se pensarmos nas novas tecnologias em desenvolvimento hoje em dia (como a biotecnologia, a nanotecnologia, a robótica, etc.), nenhuma ou quase nenhuma será vendida a preço zero. Porquê? Porque desenvolver e aperfeiçoar estas tecnologias é caro, muito caro mesmo. E ainda por cima existe uma grande incerteza quer quanto ao sucesso quer quanto à rendibilidade dessas tecnologias inovadoras. Só quando há uma garantia de (potenciais) lucros futuros é que as empresas investem nessas tecnologias. Por isso, é difícil acreditar que o preço zero se irá tornar numa realidade com aplicação generalizada.

Aliás, a nível económico, a existência de compensação para os inventores é fundamental para a continuação do processo inovativo. Sem compensação, não existirão incentivos à inovação. A remuneração pode ser monetária ou não (por exemplo, escrever artigos académicos quase nunca melhora o salário de quem os escreve, mas pode aumentar o prestígio profissional do seu autor(a)), mas tem de existir. Se não houver compensação deixa de haver processo criativo. (Neste sentido, o exemplo dos Radiohead não é o melhor. Os Radiohead são uma banda de culto. Muitos dos fãs que fizeram o download do álbum optaram por pagar, porque, se não o fizessem, poderiam estar a ofender os seus ídolos. O mesmo não se passará com outras bandas ou artistas.)

A mesma lógica aplica-se perfeitamente à pirataria. Existem fortes incentivos para a combater, porque, se tal não acontecer, é o próprio processo criativo que fica em causa. São os incentivos à criação e à inventividade que são comprometidos. Com efeito, o copyright não está morto. O que está moribundo são algumas das nossas leis e normas que regulam estes copyrights. No fundo, o que se passa actualmente é que as tecnologias têm evoluído a uma taxa muito mais rápida do que as próprias leis. Porque é que o Napster teve tanto sucesso e ameaçou tombar alguns dos gigantes da indústria discográfica? Porque antes da internet existir, não tínhamos leis para regular o download de música na internet. Isto é, a legislação seguiu a tecnologia, contrariamente ao que é habitual. E vai levar algum tempo até termos legislação adequada para lidar com este tipo de situações completamente novas.

Por outro lado, a tecnologia também tem crescido mais rapidamente do que os mecanismos de controlo e de combate à pirataria. É por este motivo que uma das áreas da internet em mais rápida expansão é o desenvolvimento de processos de encriptação e segurança de dados. Obviamente, as centenas de milhões de dólares despendidas nesta área não se destinam propriamente a promover a utopia do custo zero.

Em suma, o custo zero é uma miragem. A sua utilização será sempre mais pontual do que muitas vezes nos levam a crer e o seu impacto no processo criativo será sempre limitado. E mesmo que seja praticado (como no caso dos jornais com edições na internet), certamente que existirão mecanismos compensatórios para os criadores (como a publicidade nos jornais na Net ou nos jornais de distribuição gratuita). É que, como dizem os economistas, infelizmente, não há almoços grátis. E não é a internet que vai mudar este facto.

Álvaro Santos Pereira

6 comentários:

Anónimo disse...

Penso que não explicaram bem ao Sr. Prof. Álvaro Santos Pereira o modelo do Ludwig. Ele não defende o custo zero, quer que o criador seja remunerado de uma forma justa que cubra os seus custos e lhe dê uma margem não especulativa de lucro. A partir daí as cópias seriam livres.

Ao contrário do que o Sr. Prof. Álvaro Santos Pereira afirma o modelo do Ludwig estimula a criatividade porque se os Radiohead ganharem 100 dólares por cada música produzida serão obrigados a compôr 3000 músicas por ano para atingirem um nível de rendimento semelhante ao que conseguem hoje com os direitos de autor. O que o Ludwig condena é que um criador faça uma criação e viva à conta dela o resto da vida. Acha isso injusto e imoral.

O Ludwig não quer almoços grátis. Não quer é que com uma única ideia se coma lagosta o resto da vida. Quer que se trabalhe todos os dias para se comer todos os dias.

O modelo do Ludwig beneficia a sociedade porque:

1) Cria um laço directo entre o produtor e o consumidor;

2) Simplifica os circuitos de comercialização ao eliminar intermediários;

3) Estimula a criatividade dado que obriga um criador a um processo de criatividade contínuo e permamente;

4) Dá acesso à arte e à criatividade a milhões de pessoas que actualmente não têm poder económico para esse fim;

O Prof. Álvaro Pereira fala em "invenções" e "patentes" mas o Ludwig não chegou a esse ponto. Ficou apenas pelo download de músicas, filmes e jogos de computador.

Mas também é possível, com as devidas adaptações, estender o modelo do Ludwig a essas áreas.

Pode-se criticar o modelo do Ludwig mas parece-me que este foi o ângulo errado.

Bruce Lóse disse...

Além de redutor das opiniões expressas também não percebo o que este post acrescenta ao que já foi discutido.

Valha-nos ser gratuito.

Anónimo disse...

«Isto é, a legislação seguiu a tecnologia, contrariamente ao que é habitual.»

perdão, mas não é assim. Não é mesmo nada «habitual».

Todas as grandes evoluções tecnológicas precederam a sua regulação: automóvel, avião, electricidade, nuclear, etc.etc.

O que se compreende. A legislação não muda, nem deve, mudar a realidade (muito menos a tecnológica) mas sim conformar as novas realidades aos valores societários.

Anónimo disse...

«o custo zero é uma miragem. »

Correcto. Mas na questão da gratuidade da internet não estamos a falar de «custo» mas de preço.
E como sabe, este é fixado pela expectativa do que o consumidor estará disposto a pagar.
Não importando analisar o seu porquê, o certo é que o consumidor de internet não está disposto a dispendar directamente mais que 0 para a quase totalidade dos bens e serviços que consome.

Como o mercado da internet resolveu o assunto? Sendo o preço zero, a esmagadora dos bens que foram sendo oferecidos teriam que ter um custo de produção semelhante, isto é, zero.

E assim foi: google, youtube, myspace, blogs, napster (e centenas similares após o seu fim), orkut, e dezenas de outras redes chamadas de «sociais» onde se produz, troca, e interage na produção/consumo de informação (no seu sentido lato).

Analise-se o caso então do ponto de vista do preço: será mesmo que o consumidor paga zero? Que não há transferencia monetária é certo. Mas há um acrescimo de valor pelo consumo. Ou seja, quanto mais eu leio determinado texto, ouço ou faço donwlad de determinada musica, ou artista, vejo certo video, etc, estou a agregar valor ao seu autor e á plataforma que o disponibliza.

Porquê? Porque o mercado funciona dessa forma: o que seja mais procurado, mais lido mais visto é entendido que tem mais valor. E quem agrega os produtos/serviços mais procurados, adquire maior valor.

Mas que efectivo retorno pode o detentor desses bens/serviços ter, ou seja, como transformar esse valor em cash?

Uns usam o modelo do software livre, isto é, disponibiliza-se o básico e reserva-se a mais-valia para soluções pagas. Outros, como muitos artistas deslocam a sua fonte de rendimento do produto que produzem directamente para serviços/bens indirectos (merchandising, concerttos, livros). Não é aliás muito diferente do que se passa nos restaurantes: a grande margem do negócio não está no preço da alimentação (produto directo), mas nos laterais: vinho, sobremesas, entradas, ou nas gasolineiras (a sua margem de lucro é hoje dependente dos produtos vendidos nas lojas 24horas e não na venda de combustível.

Acrece que há estudos que indicam que quanto mais é livre a informação, por exemplo dos jornais, mais as pessoas os compram (fruto de vários interacções, como seja o jornal saber em tempo real o que os seus leitores preferem, melhoria da qualidade por interacção com o consumidor, marketing e pub do produto grátis, efeito viral multiplicador). Tal levou, por exemplo, o NYT e o WP a abdicarem do seu milhão de assinantes pagos online e tornarem totalmente livres a sua informação e respectivos arquivos. Ganharam dinheiro e clientes com a mudança.

Paulo Albuquerque disse...

As pessoas por mais informadas e inteligentes que sejam têm sempre uma certa resistência à mudança, a pensar de outra forma, a olhar de um ângulo novo algo que já conhecem. Creio que esta é a razão porque estes excelentíssimos e sábios senhores não conseguem perceber de que se fala aqui.

O futuro não é trabalharmos todos de graça, oferecer de mão dada o nosso trabalho e o nosso esforço. O futuro é sim eliminar obstáculos e intermediários entre os produtores de cultura e os consumidores de cultura. A tecnologia chegou a um ponto em que o consumidor final de qualquer bem imaterial pode recompensar directamente o produtor.

É óbvio que isto não se aplica a bens materiais. Mas o autor do artigo introduz uma falácia ao comparar ambas as situações.

André disse...

A compensação monetária, apesar de importante, não tem nada a haver com as pulsões criativas. Cria-se e inventa-se por outras razões.
Quanto a mim (e concerteza muita gente), o custo zero é a linha dominante que me faz progredir. Tenho a certeza (e como o autor não se dá ao trabalho de fundamentar algumas deduções, eu também não) que o futuro irá ser cada vez mais aproximado do preço 0.
No fundo, o paradigma da economia é a gestão dos recursos (escassos e limitados), no entanto, nesta era do digital e da cópia sem custos, não será necessária outra disciplina? Pelo menos outra abordagem ao problema...

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