sábado, 17 de novembro de 2007

Educação e cidadania

«A Escola de Atenas», um fresco de Rafael na Stanza della Segnatura, foi escolhido para a capa do livro «Paideia e Cidadania na Grécia Antiga», o quarto título da Colecção Ethos da Ariadne. Rafael, cujo quadro La Fornarina constitui uma notável integração de ciência e arte, pareceu-me igualmente excelente para ilustrar o que considero ser um problema da modernidade, o fim do «homem da Renascença», ou antes, o labirinto do conhecimento/ educação a que falta um fio de Ariadne.

A palavra educação é de origem latina, e em Cícero - nomeadamente no de Oratore e no de Legibus - encontramos o significado que hoje em dia atribuímos à palavra: instrução, formação do espírito. Já a etimologia da palavra pedagogia - do grego paidós (criança) e agodé (condução) -, actualmente indissociável de educação, reflecte a função do pedagogo na Grécia clássica: o pedagogo era o escravo que acompanhava a criança à escola para esta aprender com os mestres.

De facto, paidéia, inicialmente significava apenas criação de meninos, mas foi adquirindo um significado mais vasto de que nos dá conta o filólogo alemão Werner Jaeger na sua principal obra, «Paidéia», impressa pela primeira vez em 1936. Segundo Jaeger, por volta do século IV a.C., paidéia era já o «processo de educação na sua forma verdadeira, a forma natural e genuinamente humana».

Originalmente, isto é, nos primórdios da civilização grega, o ideal educativo era expresso por areté. Normalmente traduz-se a palavra areté por virtude e o seu plural, aretai, por virtudes, o que poderia implicar que o sentido original de areté é de natureza ética. Ora, esse não é o sentido original de areté, que o Dictionaire Grec-Français traduz como mérito, excelência ou qualidade pela qual alguém se destaca.

Homero - que teria vivido no século VIII a.C. - dá-nos nos seus poemas a descrição do «homem homérico», um ser impotente face aos caprichos dos deuses mas que deve lutar para atingir a excelência, a areté. No canto XI da Ilíada podemos ler o conselho do pai a Aquiles, que deveria tentar «ser sempre o melhor (aristeuein) e estar acima dos demais». Ou seja, o ideal homérico é expresso por aqueles que pela sua areté se elevam ao panteão dos heróis imortais, aqueles que marcam indelevelmente a memória da humanidade. Igualmente na Ilíada, Fénix, o preceptor de Aquiles, lembra ao jovem que o seu papel educativo era fazer dele um guerreiro e um orador excelentes, isto é, esboça a ligação entre educação e excelência que se iria desenvolver na cultura helénica.

A felicidade, o fim último do Homem, é para Aristóteles inseparável da polis, a cidade. Na Ética a Nicómaco, apresenta-nos a sua teoria das aretai, distinguindo dois tipos de aretai: as da inteligência e as do carácter. Ambas são impossíveis sem o conhecimento epistémico que nos permite ajuizar da verdade e do erro e devem ser transmitidas no ensino. Um dos vectores fundamentais para concretizar a excelência é para Aristóteles a lógica ( por ele designada de Analítica), que permite estruturar o pensamento e impede o homem de cair em erro. A lógica e a ciência são para Aristóteles indispensáveis para se cumprir a excelência e a cidadania.

Também para Platão, para quem paideia «dá ao homem o desejo e a ânsia de se tornar um cidadão perfeito», a educação é indissociável da cidadania. A paideia é o meio para se alcançar as aretai fulcrais à cidade ideal de Platão: sabedoria, coragem, temperança e justiça.

Assim, quer a excelência quer a cidadania estão intimamente ligadas à educação, o meio pelo qual o Homem se pode realizar plenamente e lhe permite cumprir o ideal que a palavra latina humanitas irá traduzir. Isto é, a humanitas, para os gregos, tem a ver com a areté ideal, excelência que progressivamente se desvia do plano estritamente individualista de Homero para uma excelência civíca e de cidadania. A areté ideal será dirigida primeiro à formação do cidadão, o polites e, no período helenístico, à excelência do homem cosmopolita.

O mesmo ideal de areté foi continuado na época cristã, mas agora dirigido à formação do servo de Deus e em que a excelência original foi carregada de significados e conceitos cristãos, nomeadamente das virtudes cristãs. O cristianismo, com o seu referencial na theopolis, desvaloriza a transitória res publica, tornada completamente secundária. Como afirmou Tertuliano, cuja importância no cristianismo só é ofuscada por Agostinho de Hipona, «Nada nos é mais estranho que a coisa pública».

Um livro muito útil sobre o tema é a obra póstuma de Werner Jaeger«Early Christianity and Greek Paideia», publicada em 1961 e organizada a partir de conferências realizadas pelo autor na Universidade de Harvard em 1960. Como assinala Jaeger, o cristianismo afirmou-se como a paideia verdadeira e única. A formação do homem grego, a morphosis, transmutou-se em metamorphosis, a recuperação para a vida «eterna» do homem «caído». Isto é, a formação do homem não pretendia desenvolver as virtudes públicas/cívicas, - o «estado dentro de nós», como pregava Platão - nem visava a excelência e formação do cidadão mas dirigia-se quase exclusivamente à sua «salvação» individual. Como nos diz Jaeger, «Assim como a Paidéia grega consistia na totalidade do corpo da literatura grega, a Paidéia cristã é a Bíblia» e assim, como preconizado no «Didascalia Apostolorum» - que ordenava ainda a proibição completa dos livros diabólicos (sic) e dos pagãos -, a Bíblia era a fonte única de ciência e cultura.

Mas se a tensão fundamental embebida na apropriação cristã da paideia grega continua até hoje, tensão que diz respeito ao que é conhecimento «útil», Gregório de Nisa, outra figura incontornável no cristianismo primitivo, considerava igualmente que o mal nasce da ignorância.

Tudo isto a propósito do debate que se tem desenrolado no espaço a ele dedicado, em que se pode apreciar que, como refere um dos nossos leitores, «A oposição à ciência tem alastrado como mancha de óleo, uma oposição baseada no preconceito, no medo e na ignorância», isto é, que um número não despiciendo de pessoas assaca à ciência/conhecimento a origem dos males que assolam o nosso mundo.

Suponho que todos os nossos leitores conheçam as bruxas de Macbeth e o seu canto «Hover through the fog and filthy air», que indica que a poluição atmosférica não era desconhecida de Shakespeare. Na realidade, era bastante anterior e, por exemplo, o rei Eduardo I tentou banir a queima de carvão betuminoso, a escolha dos mais pobres, quando o fumo tornou irrespirável a atmosfera londrina de meados do século XIII. Num decreto de 1272, Eduardo I, instado por membros importantes da nobreza e do clero, impunha a tortura ou a morte a quem vendesse ou queimasse o ofensivo e poluente carvão. Londres teria na altura umas escassas dezenas de milhares de habitantes, actualmente tem mais de sete milhões ...

Como exercício, deixo à imaginação dos nossos leitores as consequências, também em termos de poluição, de transportar os habitantes actuais apenas da Europa, mais de 725 milhões de pessoas e 11% da população mundial, para os tempos em que a ciência ainda não tinha (re)nascido, por exemplo para a Idade Média ( que no pico de população em meados do século XIV tinha menos de um décimo da população actual e um século depois viu a população decrescer para 50 milhões).

Recordo não só as inúmeras guerras e revoltas populares que marcaram este período sem ciência, como a Grande Fome de 1315–1322, apenas mais uma, embora mais grave, entre as muitas que assolaram a Europa medieval e, para além das mortes em massa que se sucederam, o consequente aumento da criminalidade que incluiu infanticídio e canibalismo. Quiçá os progressos permitidos pela ciência sejam de facto «culpados» de terem dado condições que permitiram a explosão da humanitas, mas parece que os dedos acusadores que alguns apontam à ciência resultam de um deficiente conhecimento (ou romantização) da História, que, como diz Edward Gibbon, «pouco mais é, na verdade, do que o registo dos crimes, das loucuras e dos infortúnios da humanidade».

Na realidade, como já tem sido muito vezes abordado no De Rerum Natura, estamos a ficar poluídos por uma nuvem de irracionalidade. Para mim, pensar o presente passa não só por avaliar o passado como por reflectir sobre esta crise ou sono da razão. Crise, vale a pena lembrar, vem do grego krisis, que pode ser traduzido por julgamento ou decisão, ou seja, é quase sinónimo do logos grego. Assim, mesmo etimologicamente, esta crise envolve uma reflexão crítica que me parece muitos se recusarem fazer.

Numa época em que o sobrenome Lessing invoca uma escritora que é para mim uma pensadora incontornável, relembro ainda outro Lessing marcante e crítico, de seu nome Gotthold Ephraïm, que, nos idos do século XVIII, afirmava não ser a posse da verdade mas sim o esforço para alcançá-la o que determina o valor de um homem (a que acrescento de uma sociedade).

Assim, esta nuvem poluente de irracionalidade resulta da cristalização dos que se acham já na posse da verdade absoluta, daqueles que consideram «inútil» a procura de conhecimento científico face a problemas mais prementes da Humanidade - e que ignoram que esses problemas, proporcionalmente à população, foram muito minorados pelo desenvolvimento científico - e dos que se aproveitam para fins sortidos da ignorância e iliteracia de grande parte da população.

Polis, cosmopolis e theopolis, os referenciais nos quais a areté se definiu e os ideais de formação humana se enquadravam, precisam ser recentrados numa cidadania abrangente, numa humanitas sustentável e sustentada, para se vencer o desencanto que gera radicalismos sortidos e alimenta irracionalidades várias. Para tal, é necessário um fio de Ariadne que nos guie pelos labirintos das construções humanas e esse fio assenta no pensamento crítico.

Como é óbvio e já o referi inúmeras vezes, embora a ciência não seja resposta para tudo, a compreensão de ciência é certamente necessária para a promoção e assunção plena da cidadania. Tal como Aristóteles, considero que as duas culturas são indispensáveis para o cumprimento da cidadania, que passa também por orientar a praxis humana pela areté e é assim indissociável da educação entendida como a paideia grega. E, tal como Gregório de Nisa, considero que o mal nasce da ignorância.

16 comentários:

Anónimo disse...

"Assim, esta nuvem poluente de irracionalidade resulta da cristalização dos que se acham já na posse da verdade absoluta, daqueles que consideram «inútil» a procura de conhecimento científico face a problemas mais prementes da Humanidade"

Ora aqui está um belo argumento para os anti-ciencia e para os criacionistas, pro pessoal que acha que a ciencia é dispensavel, que deus explica tudo..

Anónimo disse...

A reflexão crítica que muitos se recusam a fazer incidirá, necessariamente, sobre o novo espírito do capitalismo e sobre a irracionalidade do dinheirismo triunfante. A sociedade dita "do conhecimento" é não só marcada pelo extraordinário desenvolvimento científico que, a prazo, criará um mundo novo, com novas regras para o parque humano, mas também pela perda dos referentes básicos da modernidade - daí o processo de des-subjectivação em curso, no qual todas as coisas que têm agora um preço determinado pelo mercado de produtos de conhecimento, perdem a sua dignidade. São as novas "enclosures" e as novas mercadorias fictícias, com o linguarejar próprio de uma novilíngua marcada pela flexigurança, pela agilização de procedimentos e pela "racionalização". Mas o normativo deste novo capitalismo cognitivo, ou capitalismo total, traz em si também as novas modalidades do obscurantismo, onde avultam não só os criacionistas, como também os empreendedores proactivos com os seus astronegócios, tarots empresariais, vendas em pirâmide... para já não falar de todas as raposas velhas da economia parasitária a cuja existência consentida e livre de impostos já todos nos habituámos, com a impotência própria de quem procura sobreviver às vicissitudes do pensamento único... Em tempo de guerras tão cruéis e devastadoras (e tão privatizadas) como a do Iraque, e de tão feroz competição económica; num momento em que se chega ao absurdo de ouvir catedráticos a proporem a língua franca do dólar (que não é a de Shakespeare, de Coleridge, Shelley ou Dickens, mas um mero pidgin...) para os cursos de 2º ciclo e a proclamarem o fraco valor competitivo da língua portuguesa na Europa; num momento como este, há que estar atento: a ética de cidadania que sempre teve fraca expressão entre nós, corre agora o risco de apodrecer juntamente com a corrosão dos valores e do carácter dos novos indivíduos móveis, precários, flexíveis, adaptáveis aos fluxos e caprichos dos mercados que, na sua afirmação, destroem todos os valores simbólicos que até aqui funcionavam como garante das trocas. Com as reformas em curso na Academia, a ciência na sua vertente techné toma a dianteira e as ciências sociais e as humanidades vêem-se acossadas pela horda de bárbaros que estão a transformar as universidades em empresas, os docentes em meros prestadores de serviços e os estudantes em clientes... Num momento como este, de profunda transformação nos locais onde se produz ciência, vale a pena lembrar que hoje, mais do que nunca, é imperioso estudar as condições sociais de produção de conhecimento científico, por referência aos contextos históricos mais alargados em que têm lugar...
Abraço
F. Oneto

Unknown disse...

De vez em quando há leituras que nos obrigam a pensar e sair de rotinas de pensamento que damos como adquiridas.

Este post não é mesmo literatura light.

Para já concordo com muitas coisas; com a "a tensão fundamental embebida na apropriação cristã da paideia grega continua até hoje, tensão que diz respeito ao que é conhecimento «útil»" e com o estarmos a ficar " a ficar poluídos por uma nuvem de irracionalidade".

Duvido que seja possível centrar Polis, cosmopolis e theopolis num sistema de eixos comum. A última acho de todo impossível acertar com qualquer outra e fazer coincidir os referenciais da polis e da cosmopolis é igualmente utópico.

Depois, combater a ignorância e educar para a cidadania é incompatível com os políticos que temos, que só sabem manipular a ignorância e a falta de cidadania actuais. Que se devem a manipulação da educação para ser mais fácil controlar as massas.

Um post muito bom, mas que não tem respostas fáceis.

Anónimo disse...

Há pessoas extremamente cultas que são muito más! Basta pensar nalguma elite que apoiou Hitler, ou Salazar, etc. O Newton parece que era um virgem muito mau.
Para mim, o egoismo e a arrogância são os defeitos que levam as pessoas a praticar o mal, porque quem é assim acha que está acima de todos os outros. Há pessoas sem cultura e muito simples que são de uma bondade e humildade a toda a prova.
Eu também acho que o egoismo e a arrogância ajudam as pessoas que têm esses defeitos a chegar ao topo e a lugares onde podem praticar o mal.
Um exemplo de uma pessoa que acha que sabe mais do que todos, que é de uma arrogâcia incrível, e que vai ser um problema, é o Hugo Chavez.
Eu acho é que uma sociedade mais bem informada é mais invulnerável a ser governada pelo mal, mas mesmo nisso tenho as minhas dúvidas...
luis

Kynismós! disse...

Palmira, parabéns pelo educativo e reflexivo, enfim, excelente texto!

Anónimo disse...

Excelente texto, muito belo!!!

Graça disse...

"Recordo não só as inúmeras guerras e revoltas populares que marcaram este período sem ciência, como a Grande Fome de 1315–1322, apenas mais uma, embora mais grave, entre as muitas que assolaram a Europa medieval"

A tudo isso, eu acrescentaria ainda outro facto histórico: a terrível Peste Negra, que teria ceifado um terço da população europeia de então.

Anónimo disse...

Doutora Palmira.
Um outro excelente post,eu nâo me canso de vos ler;e nâo é sò d'agora,a falta de conheçensa de ciência levou ao que o mundo vê hoje,tudo por um morom chamado Bush e antigo alcòlico levou o mundo.O qual nâo presisava na situaçâo em que se encontra monetàriamente.
Um jovem de 21 anos vem de se suicidar por ter perdido uma pérna no Afegistâo.
Guérra que ele sabia perdida d'avanço.Ubisolitudinem faciunt pacem appellant imaginàrio mas autentico,o papa ele quére que os humanos continuem na ignoransa para poder trazer o mundo segundo as as directivas. É contra a euthanàsia porque numca esteve num departamento de gérontologia,devia estudar o Grego para poder compreender e ocupar o cargo que ocupa « eu »( boa ) e «thanatos » (morte)Épor causa d'ignorantes como este morom que Einstein avisou-nos que a proxima guérra seria atòmica mas a 4 seria com lanças e pédras.A Échografia Scanographia A resonance Magnética Nuclear entre outras ciências,nâo seria posivel sem os Scientistas,por mais que digam esses ignorantes da icar.Eu vou buscar as màs novidades Stern School of Business New York Prof.Nouriel Roubini,se os Portugueses soubésem o que vem !!

Anónimo disse...

Obrigado pelo texto, Palmira!

Bruce Lóse disse...

Pal,

A sua diatribe épica acerta em cheio nas certas e determinadas pessoas que por aqui temos visto obstar ao progresso, ora por via das marroquinarias imundas da dúvida metódica, ora pelo sentido picuinhas judaico-cristão, e consegue congregar vários fenómenos que nós, os místicos, chamamos do Entroncamento:

Excomunga a polarização partidária, em pleno blogue corporativo.

Apela à humildade do conhecimento na auto-referência.



Glorifica o pragmatismo científico na mais perfeita indiferença ao pragmatismo.

No rescaldo apologético da clonagem humana (que a sua tranquilidade visionária nos deu a ler) acho importante recordar-lhe, aqui do habitat homérico, que o eBay leiloa frascos de urina de estrelas de cinema; o tráfico humano é dos negócios cada vez mais globais e lucrativos; a escravatura sexual mora ao fundo da minha rua e da sua; o modelo social europeu anda preocupado com outras coisas; o Dério descobriu que os cientistas não sabem o que são definições; a História descobriu que as definições não sabem o que são cientistas; os cientistas descobriram que a clonagem humana tem utilidade terapêutica. Ah, e alguém se lembrou da reprodutiva.
Por quem dobrará o pragmatismo, Prof.ª Palmira, quando a pobre nuvem de poluição que a irrita hoje se tornar num severo efluente da estupidez mercantil? Se tem dúvidas quanto ao potencial de idiotia da clonagem neste planeta azul-cianose, não nos fale em pragmatismo nem em sentido cívico, por mais que temperadinho, lírico ou progressista.

P.S.
Vesti um fato para lhe dirigir esta pergunta e pelo seu texto, de resto, sumptuoso (apesar de chamuscado por cientifismo absolutista que já todos nos habituámos a descontar). Agora vou ler o post do Taz, o meu líder espiritual.

Anónimo disse...

Este é um texto provocador e repleto de informação.
Mas, somos ainda herdeiros de Homero, de Aristóteles? Sentimo-lo? Fazem parte do nosso quotidiano?
Diria que o sinto mais em relação aos fantásticos seres de Vitor Hugo ou Harry Potter.
E, quereria a autora fazer a apologia do ensino do conhecimento epistémico, que nos permite ajuizar da verdade e do erro?
Ou, antes, da indagação, permanentemente actualizada, sobre as verdades instrumentais tradicionais e contemporâneas?
Por exemplo, sobre um cristianismo ‘que se afirmou como a paideia verdadeira e única’?
Ou sobre todos os ismos cultuais, que nos mantêm em reiteradas ‘crises’ de apatia intelectual e sonambulismo criativo?
Aceito, até nova ordem, que, como remata PFS, ‘a compreensão de(a) ciência é certamente necessária para a promoção e assunção plena da cidadania’.
Mas persigo ‘algo mais a ver’ na arte e na irracionalidade que se julga existir nas mentes dos ignorados animais e vegetais.
Agradeço este bom trabalho, PFS

Anónimo disse...

Não sei se agradeça à ciência o facto de não viver os problemas que afectavam os Londrinos no sec XIII. É também graças à ciência, que nos "deu" potência, velocidade e escala, que os problemas que antes afectavam "algumas Londres" hoje estejam globalizados.
Mas não é sobre este ponto que quero comentar. O que gostaria de dizer é que não me parece razoável que do texto se retire, como corolário de teorema, que a ciência é inquestionável. Quando assim fosse, ela iria substituir nos altares os Deuses que depôs, e, lamento, mas sou agnóstico por principio. Como qualquer outra actividade humana, e a ciencia é apenas isso, também a ciência é, deve ser, questionada, porque, como qualquer outra actividade humana, ela não vive dos seus elevados principios, mas da sua prática concreta.
Uma última nota para a dimensão absoluta que aqui nos apresenta para o coenceito de lógica e racionalidade. Uma e outra são produtos culturais, e como tal incorporam as forças e fraquezas da nossa limitada condição e do tempo que as produz.

Unknown disse...

Obrigado Palmira por este post fabuloso :)

Sobre a sanha anti-ciência que por aí lavra vale a pena ler o post do Maradona. Como não sei se o Maradona não o apaga aqui vai sobre o senhor que ganhou o prémio de melhor professor do ano...

Este professor de Aveiro diz-nos logo no primeiro post que lhe li que tem saudades dos estendais, nas sua proprias palavras, da "roupa ao vento". Um excerto:



"Vejo poucos estendais quando passo nas ruas de Aveiro, como se a roupa lavada desta aldeia tenha sido escondida em vãos de escada, ou quem sabe, em tambores de milhares de máquinas de lavar e de secar roupas. O número de máquinas é prova de desenvolvimento e progresso da cidade? Ver poucos estendais nesta cidade de vento à solta é prova de parolice de novos-ricos e isso nada tem a ver com desenvolvimento e progresso. Tem a ver com compra e venda de um bem escasso, de energia eléctrica num país doentiamente dependente do estrangeiro, e incapaz de criar formas alternativas para a produção de energia eléctrica."



A "máquina de lavar e de secar" como sinal de "parolice de novos ricos", um afastamento do verdadeiro "desenvolvimento e progresso". Isto é a parte fausto. Depois vem o anti-capitalismo: o horror da "compra e venda de um bem escasso", a perene fobia de estar "dependente do estrangeiro", num sinal claro que Salazar não morre, que [segue-se poesia] o verdadeiro e indestrutivel museu de Santa Comba Dão está em cada um de nós, e não sei se não mais à esquerda que à direita.



Depois vem a pérola em cima do colar rubis e diamantes: "Não me parece que a esta situação sejam alheias decisões políticas, urbanísticas." Temos portanto aqui um professor do ensino secundário, o nosso melhor professor do ensino secundário segundo não sei quem, a pensar o Estado como instrumento para evitar a "parolice" dos "novos ricos". Dá ideia que não se passou nada nos últimos 50 anos.

artur figueiredo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
artur figueiredo disse...

"E foi a arte grande impulsionadora da transição cultural renascentista, arte que foi indissociável dos avanços no pensamento científico e na prática tecnológica. De facto, os pintores e escultores renascentistas investigaram novas soluções para problemas visuais, nomeadamente tentavam recuperar a perdida técnica representativa da perspectiva." :)

artur figueiredo disse...

Concordo inteiramente com a Professora Palmira porque grande parte dos problemas da nossa sociedade resultam da substituição dos princípios de elevação do Homem pelo conhecimento, que lhe podiam permitir melhor conhecer-se a si próprio, à natureza e ao mundo, por princípios subterrâneos, mesmo de anulação do ser humano baseados em mesquinhas virtudes morais que procuram a sua auto limitação e subalternização face a si próprio e à vida.

Mas pergunto-me algumas vezes se não tem sido sempre esta a melhor estratégia para os poderes conseguirem os seus intentos? E sendo esta estratégia prevalecente, não mostra ela que nós seres racionais, somos é uns grandes distraídos (não quero, claro, ferir susceptibilidades :) e, por isso os grandes saltos em frente da nossa civilização são sempre conseguidos à custa de meia dúzia de génios...

A religião incutindo a ideia que somos seres pervertidos pelo pecado, impuros e moralmente imperfeitos não estará só a desbravar o terreno necessário para que os representantes da virtude exerçam o poder a seu belo prazer? Alguma vez um colonizador poderá assumir que o colonizado lhe é superior? Se o fizer não estará, pela certa, a arranjar dificuldades?

Por exemplo, a valorização do bem relativamente ao mal não terá a sua essência na questão da segurança e estabilidade emocional que para nós parece ser indispensável? Digo, a prevalência do bem nas sociedades humanas não será basicamente justificada porque tal permite um mundo de expectativas relativamente ao comportamento dos outros que nos fornece a sensação de segurança necessária para continuarmos?

Penso que a ignorância em si não será a alma do problema no sentido em que haverá sempre algo em que somos ignorantes. O problema reside no que fazemos com a ignorância, e assumir uma verdade absoluta ou uma qualquer virtude como protótipo comportamental é manter o medo para com o desconhecido e no fim ficarmos a saber o mesmo.

Esta substituição da elevação do Homem pela sua aniquilação não só tem permitido a vigência de muitas épocas negras da humanidade como a convivência dos comportamentos humanos mais elevados com os mais degradantes.

Na minha perspectiva a vertigem dos tempos modernos veio acrescentar um ingrediente explosivo e exponencial deste problema que não afecta só a desvalorização da ciência, sendo transversal a todo o conhecimento e talvez até a todo o comportamento humano: o endeusamento da subjectividade individual, a aceleração dos tempos modernos, o infinito manancial de informação a que podemos ter acesso aliado ao pouco tempo que temos para o digerir veio impor "o pensamento rápido e pronto a servir" carregado de frases feitas válidas em todas as situações, muita percepção individual tida como "a realidade"... Neste mundo de exagerados relativismos, de facto só podemos desejar mais, mais e mais sentido crítico, o que implica também mais tolerância e menos, muito menos "politicamente jeitoso"

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