quarta-feira, 8 de agosto de 2007
MERECEMOS ESTAS PAISAGENS?
Post convidado que antes foi publicado no Diário “As Beiras”. De acordo com a época do ano, João Boavida convida-nos à leitura e à viagem.
Ir de Coimbra a Vila Real, pela IP3 e A24, numa manhã de Primavera, é uma daquelas coisas que nos reconcilia com o melhor de Portugal. É mais ou menos assim que se começam muitas crónicas, na linha dessas admiráveis Viagens na minha terra, por exemplo. E, sendo assim, toma-se hoje em dia um automóvel e lá vou eu, lá vou eu, a caminho de Viseu. Quem diz Viseu diz Castro Daire e todo aquele planalto agreste, com o Mezio ao longe, aquela terra áspera de O homem da nave, de Aquilino. E, já agora, quem resiste a outros desvios aquilinianos? Vila Nova de Paiva, de famosas trutas, no rio, e perdizes na encosta, Moimenta da Beira, do jogo do pau pelas romarias; e quando já perto de Lamego (e quem não se lembra logo das camilianas Noites de Lamego?) se começa a sentir a doçura dos vinhedos em socalcos, é quando a estrada adquire toda a sua pujança e se sucedem os magníficos viadutos, (obras de arte, como dizem os engenheiros).
Neste roteiro a gente não sabe o que mais apreciar: se a beleza dos montes, ao longe, a que João de Araújo Correia chamou, também em título, montes pintados, se o verde fresco e ainda comedido das vinhas, que se arredondam por cumeadas e vales, se a velocidade que a beleza técnica da auto-estrada nos proporciona, cortando o vento e o ar luminoso e leve através de uma natureza magnífica.
O Alto Douro é na verdade um reino maravilhoso, como dizia o Torga, noutro título. Nestes lugares os títulos aparecem sem esforço; os lugares de beleza multiplicam-se, vão surgindo ao longo das estradas, e desdobram-se depois quando, já a pé, se percorrem os caminhos, descendo, subindo, parando a cada instante para espraiar a vista e recuperar do que a subida e a beleza nos provoca.
Portugal merece este Alto Douro Ignoto, como lhe chamou Santana Dionísio? Por certo que sim, esta paisagem foi criada por séculos de sofrimento e de trabalhos infindáveis, sacrifícios sem nome dos nossos antepassados dominando as serras, abrindo os socalcos, fazendo os muros, plantando a vinha, cavando, podando, sachando, sulfatando, cuidando dia a dia das uvas, colhendo os cachos ao som do acordeão e do bandolim, na vindima (outra vez Torga), carregando os poceiros encostas acima, descansando nas poisas, pisando o mosto nos lagares, fermentando-o nos balseiros, guardando-o nos cascos, engarrafando-o, gastando gerações a envelhecê-lo, enquanto construíam, com as suas mãos, uma das mais admiráveis paisagens da Terra, síntese, talvez única, do esforço humano e da grandiosidade da Natureza.
Mas, oh meu País das Uvas (Fialho de Almeida, e já que estamos em maré de títulos), será que hoje mereces estas paisagens, e estes vinhedos do Douro? Talvez não, porque vi o produtor de um Ceirós excelente, (reserva de 1998), Quinta do Bucheiro, a vender o seu belíssimo vinho, a granel, para um enorme camião cisterna espanhol. Que o apresentará, por certo, em garrafa, ganhando assim fama de qualidade o vinho espanhol, pela qualidade bem portuguesa dos nossos vinhos do Douro. Merecemos, hoje, estas paisagens? Talvez não, porque enquanto estes vinhedos magníficos, que são um drama e uma glória da nossa cultura, têm de vender o seu oiro para o estrangeiro, como se fosse latão, por todo o lado o português que emerge nos restaurantes, todo pimpão e modernaço, acompanha o arroz de pato, o bacalhau assado, ou o simples frango de churrasco com a coca-cola e o suco de maracaxaba. Merecemos estas paisagens, estes vinhedos?
Imagem retirada de:
http://www.conselldemallorca.net/mediambient/terrisc/coimbra02g.jpg
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