quinta-feira, 16 de agosto de 2007

MATÉRIA MUITO CONDENSADA

Ao ler “matéria muito condensada” poderá haver quem pense que se trate de resumir informação transmitida aos alunos. Não, não se trata aqui de matéria no sentido de conteúdo curricular (aquilo que o professor “dá”) mas sim, mais prosaicamente, da matéria de que são feitas as coisas. Um dia um aluno universitário estudou por um livro de Física em língua inglesa que falava de “estrutura da matéria” (“structure of matter”) e dissertou depois sobre a “estrutura do assunto”, o que só mostra que o idioma inglês é tão traiçoeiro como o nosso. Vejamos o que acontece à matéria material, a matéria que é feita de átomos ou moléculas, quando essas partículas são muito apertadas umas contra as outras.

Dizemos que a matéria, sob o efeito da pressão, fica mais densa. Serve aqui a noção genérica de pressão (em linguagem do dia-a-dia, diz-se “estar sob grande pressão”), mas a pressão é uma grandeza física precisa, que se pode medir, sendo o resultado um número com uma certa unidade. A pressão é a força exercida por unidade de área, de modo que, para a pressão ser grande, é preciso uma força grande aplicada numa área pequena. A unidade de pressão mais usada internacionalmente tem o nome de pascal, do nome do filósofo e cientista francês Blaise Pascal (na figura) que viveu no século XVII e que foi dos primeiros a interessar-se pela pressão, nomeadamente em líquidos. Vale aqui a pena contar outra anedota escolar, a daquele aluno liceal que escreveu alegremente sobre a “Lady Pascal” quando queria referir a lei de Pascal...

Para se falar com algum rigor de matéria a grandes pressões, tem de se indicar o valor de pressão, o número de pascals (é errado dizer “pascais”, adulterando o nome do filósofo). O que são grandes pressões? A pressão normal é a pressão atmosférica, que resulta do peso de uma coluna de ar que todos “carregamos às costas”. São muitos pascals, cerca de cem mil.


Mas no estudo da física da matéria condensada, altas pressões significa pressões muito maiores do que a pressão atmosférica. Consegue-se matéria muito condensada colocando uma amostra entalada entre as pontas de dois cristais de diamante (escolhe-se o diamante por este ser extremamente duro mas see possível facetar pontas) que são sujeitos à acção de uma prensa hidráulica (que transmite aos diamantes uma força enorme). No Gabinete de Física da Universidade de Coimbra existe uma pequena prensa que se usava no século XVIII para estudar a compressibilidade dos líquidos. Mas as prensas de diamante modernas tornam ridículas as prensas antigas. Obtêm-se hoje, nessas espantosas máquinas, pressões de cerca de dois milhões de vezes a pressão atmosférica. A pressões tão elevadas a matéria tem mesmo de ficar condensada, com os seus átomos bem "abraçados" uns aos outros. Mas este não é o extremo da matéria condensada. Em explosões químicas e, ainda em maior escala, em explosões nucleares conseguem-se, embora momentaneamente, pressões maiores. Hoje, as explosões nucleares, no ar ou subterrâneas, estão proibidas por acordo internacional, mas, durante muito tempo, um dos subprodutos desses testes foi precisamente o estudo experimental da matéria sujeita a grandes pressões. O recorde da pressão (real e não virtual) obtida na Terra pode ser verificado no “Livro Guiness dos Recordes”: foi nos anos cinquenta, quando os ensaios nucleares estavam na moda, e alcançou-se o valor prodigioso de 70 milhões de vezes a pressão atmosférica! Os computadores mais potentes do mundo fazem hoje “explosões virtuais” que substituem as reais. A física computacional tomou o lugar de alguma da experimentação mais cara e perigosa.

Para ficarmos a saber como se comporta a matéria a altas pressões, tomemos uma matéria tão normal como a água. Sabe-se, só de olhar para o congelador, que a água a baixas temperaturas congela, tornando-se gelo. Mas uma outra maneira de obter gelo, mais cara e por isso não tão recomendável, consiste em manter a temperatura fixa (a temperatura ambiente) e aumentar a pressão. A água acaba também por congelar, embora o gelo formado por compressão seja diferente do gelo produzido por arrefecimento à pressão normal. A água sólida distingue-se da água líquida por ter os seus corpúsculos constituintes – moléculas – dispostos numa estrutura regular em vez de vadearem ao acaso por todo o espaço. O gelo formado por compressão e o gelo formado por arrefecimento têm as moléculas ordenadas em estruturas diferentes. Conhecem-se hoje mais de doze variedades de gelo, embora só uma delas se coloque no uísque...

Há matéria formada a altas pressões que é substancialmente mais valiosa que a matéria em condições normais. É o caso da matéria de carbono: em condições normais, os átomos de carbono organizam-se segundo a estrutura da grafite (que aparece nos lápis), mas, sob grande pressão, os átomos de carbono organizam-se segundo a estrutura do diamante (uma pedra preciosa), precisamente a matéria necessária para construir as prensas de alta pressão. Os diamantes naturais formaram-se no interior da Terra, ao longo da história geológica, em condições de grande pressão. As minas de diamantes que existem, por exemplo, na África do Sul são das mais profundas escavações para o interior do nosso planeta. Mas, à pressão atmosférica, a forma mais estável de carbono não é o raro diamante mas sim a corriqueira grafite. Os físicos, quais alquimistas modernos, sabem como fazer diamantes a partir de grafite. Basta apertar muito a grafite! Sob o efeito violento da tortura, ela transforma-se subita e magicamente em diamante. Os diamantes artificiais não se obtêm ainda por um processo simples e barato e, se isso um dia acontecer, os diamantes naturais perderão talvez a sua aura...

Assim como há diamantes no interior da Terra pode conjecturar-se que há diamantes no interior de outros planetas, satélites ou asteróides. Já alguém avançou essa hipótese: talvez nos distantes planetas Urano ou Neptuno haja diamantes. Basta, para tanto, que exista carbono e este tenha sofrido altas pressões, uma vez que os diamantes são, ao fim e ao cabo, apenas carbono muito condensado. Se tal hipótese se revelar verdadeira e continuar a ser difícil fabricar artificialmente diamantes na Terra, teríamos um bom motivo, embora demasiado material, para a exploração do sistema solar!

As outras substâncias também solidificam a altas pressões. As moléculas dos gases oxigénio ou hidrogénio, quando sujeitos a grande compressão, acabam por se ordenar numa rede cristalina. O hidrogénio tem sido o “Santo Graal” da investigação em matéria muito condensada. Tal acontece porque se suspeita que o hidrogénio a altas pressões deve ser metálico, isto é, um bom condutor da electricidade. Uma única experiência realizada no Laboratório Lawrence Livermore, na Califórnia, Estados Unidos, revelou o hidrogénio metálico em 1995, cerca de 65 anos depois de ele ter sido previsto pela teoria quântica. O que se fez foi comprimir instantaneamente uma amostra de hidrogénio com o auxílio de um poderoso canhão. Mas faltam outras experiências para confirmar esse primeiro aparecimento do hidrogénio metálico à superfície da Terra.

Há sítios do sistema solar onde o hidrogénio metálico deve existir de forma permanente: os interiores profundos dos grandes planetas Júpiter e Saturno. Aí a pressão é suficientemente elevada para metalizar o primeiro dos elementos químicos. E no Sol, não há também hidrogénio no Sol? O Sol tem, de facto, muito hidrogénio, mas a pressão no interior do Sol é muito mais elevada do que no interior de Júpiter e Saturno (cerca de 250 milhões de vezes a pressão atmosférica). Os electrões do hidrogénio estão completamente arrancados, desmanchando o átomo. Tão elevada é a pressão no Sol que permite a reacção nuclear que transforma hidrogénio e hélio, inundando-nos de energia. O “Guiness” diz quanto é a pressão no cerne do Sol, mas não esclarece onde é maior a pressão em todo o universo. A resposta é simples: há estrelas, mais massivas do que o Sol, em cujo centro a pressão é bem maior que no Sol. O caso limite ocorre nos chamados buracos negros, o que resta de estrelas pesadas que explodiram. Nesse sítio de pressões (quase) infinitas é onde a nossa física acaba!

8 comentários:

Anónimo disse...

ESTE É UM SUPERMERCADO do criacionismo!

Anónimo disse...

As coisas mais complexas da Ciência podem (e devem) ser explicadas de maneira simples. Esse o grande (mas não único, longe disso) mérito do Prof. Carlos Fiolhais. A prova provada (como agora para aí se diz) está neste artigo acessível a quem não domine a Física, para além dos conhecimentos aprendidos (e, por vezes, não compreendidos) nos programas de Física do ensino liceal.Este género de artigos de divulgação científica obrigam-nos a reflectir numa época que, segundo Annah Arenft, "a irreflexão parece ser uma das principais características do nosso tempo".

JSA disse...

Mas no caso dos buracos negros não estamos perante uma singularidade (pare-me se estiver a dizer asneiras) em que as dimensões não podem, em termos práticos, ser aplicadas? Nesse caso teríamos essencialmente forças (ou uma força, a gravidade) a comandar tudo, mas sem necessariamente entrar no campo das pressões (devido à falta de dimensões). Não será a estrela de neutrões mais adequada à explicação?

Como disse, possivelmente estou a confundir conceitos, esta não é a minha área. Ainda assim, se não lhe der muito trabalho, não dá para explicar este ponto?

Quanto ao resto, subscrevo o comentário do Rui Baptista. O conceito está muito bem explicado. Talvez possa ser seguido com um diagrama de fases num futuro post, explicando os conceitos de sublimação e evaporação para explicar as suas diferenças e como eles estão presentes nos planetas.

PS - a extracção de diamantes poderia ser um motivo para explorar o espaço, mas não creio que alguma vez lá cheguemos. À exploração real do espaço, digo. Penetrar fundo em Jupiter e Saturno já me parece domínio da ficção científica.

Anónimo disse...

Caro Carlos Fiolhais
E qual é a razão de aparecer o retrato de Voltaire no início do seu post? Não seria o Pascal que pretendia?(cujo aspecto, disponível em variadíssimos lugares da net, era bem mais compostinho e jansenista, hélas!). Sendo certo que Voltaire escreveu sobre tudo e mais alguma coisa, não penso mesmo assim que a pressão fosse um dos seus fortes
Saudações
Marvl

Anónimo disse...

Desculpe, não tinha visto o post em baixo (esse sobre o Micromegas, de Voltaire). Deve vir daí, portanto.
Marvl

Anónimo disse...

Felizmente em algumas esquinas :) ainda se vai aprendendo muita coisa de jeito! Quando isso é transmitido com tanto bom gosto temos mesmo é que agradecer. Obrigado professor Fiolhais por nos sujeitar a tanta pressão :)

Artur Figueiredo

Carlos Fiolhais disse...

Por engano, e porque estavam as duas juntas, afixei uma figura de Voltaire e não de Pascal. Já corrigi. Agradeço a quem me chamou a atenção.
Carlos Fiolhais

Fernando Martins disse...

"As minas de diamantes que existem, por exemplo, na África do Sul são das mais profundas escavações para o interior do nosso planeta."

Curiosamente a maioria dos diamantes são apanhados à superfície da Terra e as minas mais profundas da RSA são de ouro...

Continuo a achar que um Geólogo servia de alguma coisa ao blog, até porque continuam a falar de Geologia e dão umas calinadazinhas...

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...