Ontem comprei um par de jeans, tingido com o indigo que desde os primórdios da História enche de azul o nosso quotidiano, e as calças Fornarina que escolhi lembraram-me outro azul da Antiguidade, mais concretamente as cores púrpura.
De acordo com um artigo publicado em finais de 2002 na revista científica britânica «The Lancet» (link disponível para subscritores) o quadro de Rafael, «Retrato de uma jovem Mulher» mais conhecido pelo nome dos jeans, La Fornarina, constitui uma notável integração de ciência e arte, sendo a primeira representação gráfica de cancro de mama. De facto, embora Galeno tenha introduzido o termo cancro (carkynos) após observação de uma neoplasia mamária que morfologicamente lembrava um caranguejo e tenha sustentado que a menstruação, a «bilís negra», era a sua causa, não distinguiu o cancro de mama de outras patologias mamárias. A primeira descrição exaustiva e completa de cancro de mama foi feita em pleno século XVII, mais de 100 anos depois da Fornarina, pelo autor do primeiro tratado de anatomia comparada,«Zootomia Democritae», Marco Aurélio Severino, um contemporâneo de Harvey.
O quadro, encontrado no estúdio de Rafael após a sua morte - de acordo com o seu biógrafo Vasari, causada por um excesso de sexo - tem causado alguma polémica entre os peritos de arte. Cláudio Strinati, superintendente dos Museus de Roma, identifica a Fornarina com Francesca Ardeasca, a amante de longa data que Agostino Chigi, dono da Villa Farnesina onde Rafael trabalhou, acabaria por desposar com bênção papal em 1519. Mas o próprio nome do quadro, a padeirinha, revela que a identidade da misteriosa beleza morena é normalmente atribuída a Margherita Luti, filha do padeiro de Siena Francesco Senese e amante de Rafael - que após a sua morte se refugiou no convento di Sant'Apollonia. A Fornarina revela uma semelhança fisionómica inegável com La Donna Velata, a mulher de véu que já foi um dos retratos mais aclamados do mundo e que Vasari diz retratar a amada de Rafael.
A fonte máxima sobre a vida de Rafael, Raffaello Sanzio, Raffaello Santi, Raffaello da Urbino ou Rafael Sanzio da Urbino é a monumental «Vite dei più eccelenti pittori, scultori e architetti», escrita por Giorgio Vasari e publicada em duas versões, em 1550 e em 1568. Vasari diz-nos que o pintor, dominado por uma «necessidade contínua de deleites carnais», quase abandonou os trabalhos que realizava na Villa Farnesina, só não o fazendo porque Agostino Chigi conseguiu que a mulher que inflamava Rafael viesse morar com ele. E assim a Villa Farnesina exibe nas paredes fantásticas cenas dos mitos de Psique e Galatea e graciosos «grotescos», realizados por Giulio Romano, Giovanni da Udine, Baldassare Peruzzi e outros discípulos de Rafael com base nos desenhos do mestre. O termo «grotesco», que aparece pela primeira vez nos tratados de arte do século XVI, refere os frescos feitos à semelhança das recém-descobertas pinturas no que se pensava serem grutas (daí grotesco) mas que escavações posteriores revelaram ser a Domus Aurea, o palácio construído por Nero depois do incêndio, posteriormente soterrado por Trajano para dar lugar às Termas.
Na casa que se pensa ser a de Rafael, situada ao fim da Via della Lungara, mesmo na entrada do Trastevere, um dos bairros mais emblemáticos de Roma, funciona um restaurante que é necessário reservar com alguma antecedência, Romolo nel Giardino della Fornarina (Via Porta Settimiana 8), e que vale a pena visitar não tanto pela comida mas pelo jardim que supostamente era o local favorito dos amantes.
As cores púrpura surgem nesta história porque se Rafael é aclamado com Ticiano como o expoente do retratismo renascentista, é certamente mais conhecido pelo seu trabalho no Vaticano, onde trabalhou desde 1508 até à morte em 1520, com apenas 37 anos. Nomeadamente foi um dos arquitectos da basílica de São Pedro quando em 1514 substituiu o arquitecto do Vaticano e seu amigo Donato di Angelo del Pasciuccio, mais conhecido como Bramante. Rafael assumiu as obras em curso na basílica e é o responsável pela substituição da planta de Bramante, em cruz grega, por um desenho mais simples, em cruz latina.
Fora por sugestão de Bramante, à data o arquitecto do Vaticano encarregue por Júlio II de desenhar a nova basílica, que Rafael foi chamado a Roma para se ocupar dos aposentos papais, quatro salas conhecidas como Stanze de Rafael, construídas por cima dos aposentos do anterior papa, Alexandre VI, o segundo papa Bórgia, falecido em 1503. Os frescos «Discussão do Sacramento», «Parnaso» e «Escola de Atenas» da Stanza della Segnatura são os mais conhecidos frescos de Rafael no Vaticano, embora o seu trabalho nas loggias (galerias) do Vaticano seja especialmente refrescante pela sua simplicidade grandiosa.
As Stanza de Rafael substituiram os aposentos do infame Roderigo Bórgia - pai dos igualmente infames Lucrécia e César, bispo de Valência aos 16 anos - decorados com frescos do mestre renascentista Pinturicchio (Bernardino de Betto). Há pouco mais de um ano o Vaticano desvendou parte dos mistérios dos aposentos papais de Alexandre VI com a abertura da Sala dei Misteri, antecâmara da Sala dei Santi.
De acordo com Vasari, Pinturicchio era um velho conhecido de Rafael e cumprira a encomenda de Pio II para a decoração da Biblioteca do Duomo de Siena com o auxílio de desenhos deste último. Mas aparentemente não foi apenas na Libreria Picolomini que Rafael e Pinturicchio colaboraram. De acordo com Ardelio Loppi no seu livro «Il sorriso di Giulia» um Rafael de dezanove anos, sob supervisão de Pinturicchio, seria o autor da Madonna delle Grazie de Vasanello, que por sua vez teria como modelo Giulia Farnese, uma das amantes do Papa Alexandre VI.
Embora Giulia tenha sido condenada pelo seu irmão Alessandro Farnese, o papa Paulo III, à damnatio memoriae, uma tentativa de apagar da memória pública as pessoas consideradas desonrosas, e não sobrevivam quaisquer representações «oficiais» de Giulia, alguns historiadores de arte indicam várias Madonnas pintadas por pintores sortidos, de Rafael a Miguel Ângelo passando por Pinturicchio, cujo modelo seria a bela Giulia. Nomeadamente, a Madonna con Bambino , que actualmente provoca ondas no Vaticano, pintada por Pinturicchio na Sala dei Santi dos apartamentos Bórgia e que Vasari diz ser «um retrato da senhora Giulia Farnese com a aparência de Nossa Senhora, e na mesma pintura a cabeça do papa Alexandre adorando a Madonna».
No último quadro de Rafael, «A transfiguração», podemos ainda apreciar o perfil de uma mulher ajoelhada que muitos pensam ser Giulia. Outros historiadores indicam no entanto que apenas em alguns retratos da época representando mulheres com unicórnios - o animal mitológico era um dos símbolos heráldicos dos Farnese - nomeadamente um por Rafael e outro por Luca Longhi, podemos perceber porque Giulia era referida pelos seus contemporâneos como Giulia La Bella.
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3 comentários:
Tem uma "micro-gralha" na 1ª palavra do 2º parágrafo.
Não quer corrigir?
Obrigadissimo pelo reparo. Já corrigi :-)
Ora essa! Se quiser, pode apagar o meu comentário (e este também)
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