terça-feira, 1 de junho de 2010

O FIM DAS HUMANIDADES? (1)

Novo post de Eugénio Lisboa:

Por todo o lado – e não só em Portugal – se começa a murmurar e até mesmo a proclamar em voz alta e indiciadora de algum pânico o fim dos estudos humanísticos, alegadamente cilindrados pela proeminência devastadora da cultura científica que, primeiro lentamente, depois em aceleração assustadora, se tem vindo a impor e a tomar conta do palco nos teatros do mundo. Como é de regra, também nesta história, não há culpados, de um lado, e inocentes, do outro. As culpas distribuem-se cartesianamente bem pelos dois lados e alguma inocência também. Quando, em 1959, C. P. Snow lançou o grito de alarme, com o seu célebre ensaio sobre As Duas Culturas, embora não estivesse a dizer nada de novo, levantou ondas de aplauso sonoro, simultaneamente com gritos de indignação e mesmo, nalguns casos, com feios exemplos de vitupério e de vitríolo. A reacção do célebre académico de Cambridge, F. R. Leavis, considerado pelos britânicos como o maior crítico literário do nosso tempo, ultrapassou, em violência e desaforo, tudo quanto a tradicional cautela universitária tem por costume aconselhar. Reacções destas não pareciam sugerir – como visara Snow – a futura construção de pontes que ligassem a cultura humanística à cultura científica. O bioquímico Michael Yudkin, aludindo à controvérsia e entrando nela em cheio, fazia uma lúgubre profecia, nestes termos: “Há, infelizmente, dúzias de culturas no uso que Sir Charles faz do termo, mesmo que o fosso entre o cientista e o não-cientista seja provavelmente o maior... Não haverá [no futuro] construção de pontes através desse fosso, não aparecerão modernos Leonardos, não haverá migração de cientistas para a literatura. Em vez disso, verificar-se-á a atrofia da cultura tradicional e uma gradual anexação feita pelo científico – anexação não de território mas de homens. Talvez não passe muito tempo até se chegar a uma cultura única que vai ficar.”

Nada disto fora a intenção de Sir Charles Snow, ao escrever o ensaio sobre As Duas Culturas. Num texto que publicou quatro anos depois (1963), Snow confessa, com alguma candura, que não esperava muito, em termos de reacção ao seu livro: “Não esperava grande coisa”, observa ele na adenda intitulada "Two Cultures: A Second Look”. E acrescentava: “Muita gente andava a dizer coisas semelhantes. Pareceu-me que era tempo de se falar a uma só voz.” Nesta mesma adenda, ele resume, deste modo, a modesta intenção do seu ensaio, que tanto ruído viria a produzir: “Na nossa sociedade (isto é, na sociedade avançada do ocidente) perdemos a mais ínfima pretensão a uma cultura comum. Pessoas educadas com a mais elevada intensidade sabe-se que deixaram de saber comunicar umas com as outras no plano das suas maiores preocupações intelectuais. Isto é grave para a nossa vida criativa e intelectual e ainda mais grave para a nossa vida normal.” E dizia ainda: “Dei o mais agudo exemplo desta falta de comunicação sob a forma de dois grupos de pessoas que representavam o que eu baptizei de ´as duas culturas´. Um destes grupos incluía os cientistas, cujo peso, realização e influência não precisam de ser realçados. O outro grupo continha os intelectuais da literatura. Entre estes dois grupos – os cientistas e os intelectuais da literatura – existe pouca comunicação e, em vez de um sentimento de companheirismo, verifica-se algo de muito parecido com hostilidade.” Snow acrescenta ainda, com alguma melancolia, que pretendera, com o seu ensaio, descrever apenas com alguma grosseira aproximação, um estado de coisas – o fosso entre duas culturas -, fosso esse que detestava. Para sua surpresa, verificou que alguns comentadores presumiram que ele o aprovava.

Esta “desaproximação” entre estes dois universos vinha de longe. Já os pensadores gregos do período romano, nota Asimov com alguma ironia, no seu utilíssimo New Guide to Science, se “viram cada vez mais arrastados para os subtis prazeres da filosofia moral e para longe da aparente esterilidade da filosofia natural”. E acrescentava: “O cristianismo , com a sua ênfase na natureza de Deus e da sua relação com o homem, introduziu uma dimensão inteiramente nova no tema da filosofia moral, que aumentou a sua superioridade aparente enquanto trabalho intelectual, relativamente à filosofia natural. Entre 200 d.C. e 1200 d.C. os europeus preocuparam-se quase exclusivamente com a filosofia moral, em particular com a teologia. A filosofia natural [isto é, a ciência) foi quase esquecida.”

Deve-se aos árabes a preservação de Aristóteles e Ptolomeu – arautos da filosofia natural, mesmo com os seus erros colossais – e foi, graças a isto, escreve ainda Asimov, que “as principais figuras do Renascimento deslocaram o centro do interesse das matérias relativas a Deus para as obras da humanidade” e, por isso, estas foram designadas de “humanistas”. Os grandes cientistas do Renascimento acabaram por virar resolutamente as costas aos preconceitos típicos dos pensadores gregos, mesmo dos grandes, os quais veneravam sobretudo a “perfeição”, a “beleza” do método dedutivo e não a menor esbelteza ou elegância do indutivo. Para os gregos, confirmar uma teoria pelo processo “grosseiro” da experimentação e da verificação estava fora do seu horizonte. Asimov nota, com ironia perversa, que “não se sabe se Aristóteles alguma vez deixou cair duas pedras de peso diferente a fim de verificar o seu pressuposto de que a velocidade da queda é proporcional ao peso do objecto.” E Bertrand Russell observaria, com a sua acutilância felina, que Aristóteles poderia ter evitado afirmar que as mulheres têm menos dentes do que os homens, pelo processo expedito de pedir à Sra. Aristóteles que abrisse a boca. Galileu, no Renascimento, pediu vénia ao grande filósofo grego e foi, ainda assim, verificar, com dois objectos de peso diferente, que a afirmação milenar do grande filósofo era falsa: o peso do objecto que cai não tem qualquer influência na aceleração do movimento. Citando de novo Asimov, “verificar uma teoria perfeita usando instrumentos imperfeitos não impressionava os filósofos gregos como modo válido de obter conhecimento.” Era por causa deste amor à esbelteza do conhecimento dedutivo que os astrónomos andaram mais de mil anos a dizer que os movimentos dos astros em torno de outros astros se faziam percorrendo circunferências porque, sendo a circunferência uma curva perfeita e, nos céus, por ali não haver corrupção, só haveria lugar para a perfeição, o movimento de um astro em torno de outro astro teria que obedecer a esse mandato de perfeição. Mesmo quando a observação directa e o registo implacável dos factos recomendavam a elipse, alguns grandes astrónomos, como Copérnico, já em pleno Renascimento, obstinavam-se na circunferência preferindo duvidar dos factos da observação e privilegiar o apetite de elegância. Mas foi a partir do século XVI que o cientista passou a usar o método indutivo como “processo essencial de obter conhecimento”. Galileu, Tycho Brahe e Kepler abriram o caminho à monumental construção de Newton, que são as suas três simples e elegantes leis do movimento: simples e elegantes mas verdadeiras porque verificáveis experimentalmente e não verdadeiras por serem simples e belas... Newton, porventura o maior cientista de todos os tempos, foi idolatrado e a eminência do seu feito veio a constituir-se num potente motor de arranque para a extraordinária evolução que a ciência experimentou a partir dele. Mas foi, sobretudo, a partir da Segunda Guerra Mundial, que se começou a assistir a uma aceleração estonteante no progresso da investigação científica em todos os campos. Na física, na química, na astronomia, na biologia, na medicina. Em alargamento e em profundidade, aprende-se hoje mais em cinco anos do que se aprendia antes em dois milénios. Um aluno do secundário sabe hoje mais do que sabia Newton ou Galileu. E, com isto, vai-se criando, no domínio da ciência, uma linguagem cada vez mais opaca para o leigo nestas matérias. Como nota Asimov, no precioso livro que já citei: “As publicações de cientistas relativas ao seu trabalho individual nunca foram tão copiosas – e tão ilegíveis para toda a gente excepto os especialistas dos mesmos ramos. Isto transformou-se num prejuízo para a própria ciência, pois os avanços básicos do conhecimento científico decorrem muitas vezes da fertilização de conhecimentos entre diferentes especialidades.” E acrescenta: “Ainda pior, a ciência perdeu cada vez mais o contacto com os não cientistas. Nestas circunstâncias, os cientistas acabaram por ser vistos quase como mágicos – mais temidos que admirados. E a impressão de que a ciência é uma magia incompreensível, apenas compreendida por alguns escolhidos que são suspeitamente diferentes da humanidade normal, tende a afastar muitos jovens da ciência.”

Eugénio Lisboa
(CONTINUA)

1 comentário:

Anónimo disse...

Ingenuidades, sr. Eugénio, ingenuidades! JCN

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