domingo, 11 de outubro de 2009

“Há coisas que não podemos tolerar”

“Há coisas que não podemos tolerar”, escreveu e voltou a escrever o conhecido filósofo da ciência Karl Popper. Faço minhas estas palavras para afirmar que no campo da educação formal há ideias e práticas que não podemos, como pais, educadores e sociedade, continuar a tolerar.

E não podemos continuar a tolerá-las porque estão inequivocamente erradas, tanto sob o ponto de vista científico como sob o ponto de vista ético.

Assim, não podemos permitir que as nossas crianças e jovens sejam sujeitos a elas, porque se o forem estaremos a prejudicá-los em vez de os beneficiar, ou seja, estaremos a fazer o contrário daquilo que deve ser a vocação da Escola. Tão simples como isto!

As ideias e práticas que à força se querem fazer passar por pedagógicas e a que sujeitamos as nossas crianças e jovens são muitas, eu sei… Porém, neste texto, detenho-me apenas numa, a que já me referi aqui e aqui: a devassa da vida privada e intíma dos alunos e das suas famílias.

Os diplomas normativo-legais, os currículos e os programas que regulam e dão substância ao ensino estão repletos de intenções e recomendações para que se recorra às experiências dos alunos, à autenticidade do seu dia-a-dia, ao seu contexto social e afectivo, à sua realidade concreta e imediata, às relações interpessoais em seu redor, aos seus testemunhos sinceros, aos seus sentimentos… O mesmo está patente nos manuais escolares, nos projectos educativos de escola e de turma e em mil outros documentos que andam por aí a ditar o que os professores devem pensar e fazer.

Descobri que esta lógica etnográfica, como se lhe chama, também invadiu as orientações (ou prescrições?) dos serviços de educação das câmaras municipais, de Associações de Pais e Encarregados de Educação e congéneres que reclamam (e assumem, efectivamente) a legitimidade que a lei lhes confere de serem parte nos desígnios do ensino que tem lugar no recinto da Escola Básica. Todas estas entidades têm vários programas, planos, projectos com o respectivo logótipo, devidamente fotocopiados ou encadernados, prontos a aplicar…

Os temas são sobrepostos aos que as crianças já viram tratados nas actividades de aprendizagem regular: saúde, família, higiene, cidadania, regras de trânsito, economia, segurança na Internet, educação para os média, interculturalidade, tolerância… e, o que está agora muito na moda, empreendedorismo. Enfim, tudo o que permite o discurso elementar e castrador do educar “para a vida real”, “para o quotidiano”, “para o que é útil”.

Nada de leitura de autores clássicos, nem apreciação de quadros ou esculturas que constituam um referencial estético, nem exploração de obras de compositores que toquem a alma, nem recriação de peças de teatro que conduzam a mundos complexos de palavras e emoções…

Muitos desses programas, planos, projectos são encomendados a universidades e empresas. A formação das pessoas que os elaboram é diversa, desde médicos e enfermeiros, passando por economistas e gestores, dinamizadores e animadores sociais, até psicólogos de formação diversa… Pedagogos, devem estar em minoria, porque não os tenho visto referidos.

Para que o leitor tenha uma ideia mais concreta do que falo, se é que não a tem já, detenho-me num módulo designado por “Quem faz o quê na família?” e que faz parte dum programa que tem por título “Quem faz o quê?. Este módulo foi produzido por um departamento investigação e publicações psicológicas e nele se diz, logo a abrir, poder ser aplicado a crianças a partir do 2.º ano de escolaridade, com sete anos, portanto. Passo a descrevê-lo.

O módulo comporta quatro temas: espaços da casa, papéis familiares, actividade da família, equipamentos e materiais da casa. Cada um destes temas deve ser concretizado em quatro actividades.

As actividades do primeiro tema são: Importância da casa da família; descoberta dos espaços da família; construção e conservação duma casa; “espaços de vida da minha família”. As actividades do segundo tema são: Pessoas da família; imagens da família; funções dos membros da casa; “as pessoas da minha família”. As actividades do terceiro tema são: Actividades familiares; situações de vida da família; uma história de vida da família; “as actividades da minha família”. As actividades do quarto tema são: Recheio da casa; equipamentos e dependências da casa; materiais e actividades da vida familiar; “os equipamentos e materiais usados na minha família”. As crianças têm, portanto, de listar as divisões, os equipamentos e materiais da sua casa, fazer o retrato da sua família, dizer os seus nomes, o que fazem e indicar o parentesco com elas… Tudo isto deve ser escrito em fichas e, claro, depois partilhado em grupo.

Assombro-me com a tarefa de elaboração do cartaz “A minha família”, que comporta diversas colunas onde todas as crianças devem sistematizar: locais, pessoas, actividades, equipamentos e materiais relacionados com a vida da família. E também com a exposição que, no final, se fará dos trabalhos produzidos, por exemplo, a reconstrução da casa com plasticina ou “peças de lego”. E também com o pedido às crianças para que exemplifiquem, através de mímica, uma actividade habitual da vida da sua família. E também com o pedido para que completem a frase: “O que os membros da minha família fazem por mim…”. E também com o pedido para que refiram a morada de casa e que recolham fotografias da família… Nada melhor para as crianças estabeleçam entre si as respectivas diferenças sociais, económicas, afectivas e outras...

Mas o pior é o pedido que lhe é endereçado para que “escolham uma ocorrência ou situação da vida da família (ex., aniversário, período de férias, um dia de semana, uma situação fora do comum, por exemplo, uma doença, etc.) e construam uma história relacionada com essa situação para posteriormente ser representada para os outros…”.

Bem... não sei se será mesmo o pior, pois também lhes é pedido que, “em diálogo com o grupo”, exprimam “o que pensam e sentem sobre si próprios, como pessoas e como membros da sua Família…”

O que é que as crianças aprendem com isto? Aprendem a expor-se, a serem expostas e a expor as pessoas que lhe são próximas ao conhecimento público.

Isto não é Pedagogia, nem Ética, nem Educação. Isto é uma coisa que não devemos tolerar.

Nota: Deliberadamente, não identifiquei o documento em causa, talvez o devesse ter feito, mas não o fiz porque como ele, infelizmente, há muitos. Depois de ter escrito este texto chegou-me às mãos outro que, ainda que pareça impossível, consegue ser pior.

9 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Muito pertinente. Eu, professor do ensino secundário, sempre me arrepiei com as fichas sócio-biográficas pedidas pelos directores de turma aos alunos: onde muitas vezes se pergunta desde a profissão dos pais até ao nº de divisões da casa.É que nunca percebi para que há-de um professor querer saber tais coisas. E sempre me contentei com o desafio de descobrir talentos e qualidades no respeito escrupuloso pela privacidade. Curiosamente, desconhecer os alunos, nesse sentido, permite evitar preconceitos e tratá-los a todos de modo menos preferencial e mais isento. Então, quando ensino hereditariedade e há exercícios no manual, como acontecia o ano passado, em que se pede aos alunos que façam uma lista de aspectos hereditários (cor dos olhos, grupo sanguíneo...) da família e construam uma árvore genealógica, "proíbo-os" simplesmente de me mostrarem qualquer resposta... Não fosse o caso de algum com olhos escuros ter pais com olhos claros! Depois como é que eu me saía? É que na escola ao lado da minha ainda o ano passado um professor ficou com duas costelas a furar um pulmão, por uma coisa de nada...
Por isso, todos os esforços são poucos para denunciar e tentar afastar tanto irresponsável do "edifício" do ministério da educação.

Helena Damião disse...

Caro José Batista da Ascenção
Agradeço o seu comentário. Corrobora o que penso e ensino a pessoas que irão ter ou já têm responsabilidades educativas.
Entendo que só há uma maneira de fazer face a este tipo de abordagem que se apresenta como pedagógica mas que de modo algum o é: a nossa recusa esclarecida, e a opção por abordagens com boas provas dadas ao nível do desenvolvimento cognitivo e moral dos alunos e,claro, eticamente aceitáveis.
Cumprimentos,
Maria Helena Damião

Isabel Martins disse...

Concordo em absoluto. Em vez de ensinarmos o valor da privacidade, estimula-se uma desavergonhada e inconsciente exposição. ´
Parece-me que esta situação se prende com o desnorte relativamente ao que se pretende com a Escola e, em particular, com a função do professor. Considera-se hoje que o professor e a Escola devem imiscuir-se em todos os domínios da vida das nossas crianças e jovens. E logo desde tenra idade...

Oscar Maximo disse...

Então, já que se fala sempre no raio da constituição - a tal que diz, erradamente e por outras palavras, que há dinheiro para os direitos adquiridos - essa constituição não fala no direito á vida privada? É por esse tribunal a pronunciar-se, qualquer pai o pode fazer, penso eu.

Miguel Galrinho disse...

Penso que, de uma forma geral na nossa sociedade de hoje, a noção de privado e de intimidade está a desaparecer cada vez mais.

Actualmente, temos a divulgação muito facilitada através das tecnologias de comunicação e de informação, em particular da internet. E ainda bem que assim é, pois as vantagens são imensas a vários níveis.

No entanto, essa facilidade de divulgação e de comunicação está-se a tornar também, infelizmente, numa facilidade de exposição da intimidade das próprias pessoas, por exemplo através da internet, com hi5, facebook e outras redes sociais. As pessoas habituaram-se a isso, e cada vez mais divulgam a sua vida aos outros, seja por meios pessoais ou impessoais. Pior: fazem-no de completa livre vontade, sem que isso lhes faça a menor confusão.

Documentos como esse que refere, e que analisa com grande pertinência, são apenas um pequeno reflexo de uma sociedade que cada vez menos distingue o que deve ser público do que deve ser privado.

Puto disse...

Quando estudei ja era assim. Porque e que so se indignam agora? Porque e que quado me tentei insurgir contra isto sofri brutalmente pelos colegas de profissao da Helena Damiao?

Afinal, onde esta a novidade?

Helena Ribeiro disse...

Pois, isto está mesmo medonho. E depois surgem títulos como este: "Todos os rapazes são gatos", "obra" para leitura do 8º ano.

E se os Directores de Turma não se imiscuírem na vida privada dos alunos e suas famílias, são considerados maus profissionais.

E se os professores propõem leituras de qualidade -clássicos-, são desprezados entre os seus pares.

E se um aluno mais atento se indigna contra as intrusões abusivas à sua vida particular, é encaminhado para o psicólogo da escola, com a concordância dos encarregados de educação.

E as pessoas com conhecimentos e postura ética são postas de parte.

Isto está tudo mesmo muito estranho.

Fartinho da Silva disse...

Enquanto não se recentrar a missão da escola, do professor, do encarregado de educação e do estudante não vamos lá! A "escola" pública é uma enorme confusão e representa tudo aquilo que não se deve fazer! Como diz um amigo meu - gestor de profissão - se aplicasse na minha organização os princípios entrópicos de organização da "escola" estava falido e tinha problemas muito complicados com a justiça...

Anónimo disse...

Boa noite,Chamo-me Isabel sou licenciada em História ramo educacional pela FLUP,Prezo muito em fazer das minhas aulas uma experiência aberta ,motivando os alunos a criatividade do seu pensamento em relação á História , o mesmo será dizer a tudo , até mesmo o que os aflige.Passso a transcrever o que me dizem " esta professora é muito á frente"Tenho tido bons resultados e feito amigos entre os meus alunos .Relativamente ao artigo acima, concordo plenamente. Realmente nas escolas o assunto em epígrafe é muito mal tratado.Não só em inqueritos que se fazem aos alunos, mas também quando ha problemas graves de disciplina que facilmente saiem do sigilo que deveriam ter .Bem aflige-me também , o que me traz aqui, e isso são ss seguintes fenómenos que passo a enumerar de entre muitos:
Amy whinehouse-Como é possivel,falar-se a toda a hora , nos meios de comunicação social ,da pessoa em causa sabendo que tinha problemas de adição graves, os quais , não conseguiu ultrapassar , morrendo por isso mesmo...."Mais um album vendido de Amy ..."

Zé Pedro ,dos Chutos e Pontapés- Alcoolico por opção . Teve necessidade de um transplante de fígado e a comunicação social vem num programa qualquer chamar-lhe exemplo de vida?
Mas que exemplo de vida foi esse?Alguém me pode dizer? Embebedar-se até nao poder mais e depois ainda ter direito a um transplante?
Quando se lê algo sobre a Amy ou se ouve algo como ouvi, na TV sobre o Zé Pedro fico atónita... mas que tipo de valores transmitem estas pessoas para a juventude?
Todos sabemos que a droga e o alcool está a ser um flagelo entre a população jovem, e o que faz a Tv e os jornais enaltecem estas pessoas , do nada.Sim, porque é isso que eu sinto, quando leio ou ouço coisas assim....
Não percebo....
Gostaria que alguém me respondesse.Muito obrigado pelo tempo dispendido e desculpem pelo desabafo.

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