domingo, 6 de novembro de 2022

SOBRE A ARTE E A EDUCAÇÃO: REPETIR PORQUE É PRECISO REPETIR

Em 2019, Lídia Jorge foi entrevistada pela jornalista Ana Peixoto (ver aqui). Guardei o vídeo porque nele a escritora explica, de maneira muito clara, muito óbvia até, a importância da arte, na construção da pessoa e no modo como percebe o mundo e se posiciona nele. 

Ora, a arte, como todo o conhecimento com valor construído pela humanidade, para poder beneficiar a pessoa, cada pessoa, precisa de ser ensinada e aprendida. É na escola pública que isso deve acontecer. Deve, mas não acontece. 

A menos que façamos alguma coisa, cada vez acontecerá menos: o currículo, talhado a direito por ditames empresariais, com propósitos de sucesso financeiro, orientado para a eficácia produtiva e para a competição individual, blinda portas, janelas e postigos que permitam aceder a tudo aquilo que possa engrandecer e soltar o pensamento.

Para garantir que assim seja, os responsáveis pela escola pública, desde a tutela aos professores, passando pelos directores, têm-na cedido, ainda que por razões diversas, a múltiplas entidades privadas, sobretudo empresas que, obviamente, não vêem qualquer serventia à arte. 

Não será, no caso de Portugal, o novo e pomposo Plano Nacional das Artes, ou o mais antigo e não menos pomposo Plano Nacional de Leitura que fará o que é preciso fazer para superar esta lamentável situação a que chegámos e da qual não sabemos, não conseguimos sair. A arte precisa de ser integrada "naturalmente" no "fazer pedagógico", como diz uma amiga, requer um "fazer" sistemático, contínuo, empenhado, de proximidade entre professor e alunos, um "fazer" lento de fruição e de dissertação face a obras que têm o magnífico poder de estimular o pensamento, de envolver a pessoa e de a conduzir a uma expressão singular, sua.

Conduzir alguém para além do eu, do quotidiano, do superficial, reflectindo-se isso mesmo na transformação do próprio eu - mas não num sentido qualquer, no que se tem por mais elevado, mais perfeito -, é a função da escola, desejavelmente concretizada por cada professor. Como Lídia Jorge diz noutras entrevistas a propósito da literatura, o que há a fazer é muito simples, é tornar cada professor um leitor... Permito-me acrescentar: um professor-leitor fará a diferença.

Enfim, quero sublinhar que afastar a arte da educação escolar, ainda que dando a ilusão de que ela está lá presente como nunca esteve, não augura nada de bom. Se quisermos ser pragmáticos, antes de mais, para o funcionamento da sociedade.

Deixo o leitor com as preocupantes palavras da escritora, que tomei a liberdade de transcrever do vídeo. São palavras que repete, porque é preciso repeti-las: precisamos de as repetir. Talvez repetindo-as façamos delas modos de agir.

A literatura e a arte (...) cria uma revolução interior nas pessoas. Por mais que as pessoas não gostem da palavra, mas a palavra é importante: revolução tem a ver com o movimento dos astros. E acho que é importante as pessoas sentirem que a arte revoluciona por dentro as pessoas. E eu acredito nesse poder, que é um poder lento, não é alguma coisa cujo poder se veja de imediato. Acredito profundamente nesse poder revigorador, transformador da literatura (...). 

Se pensarmos sobre o que está a acontecer neste momento em relação à literatura... devo dizer que hoje fala-se num mundo pós-literário e é uma coisa que me assusta bastante porque a literatura é a arte mais densa de todas, a mais exigente de todas, aquela que exige de nós uma transfiguração que é feita a partir dos mínimos sinais possíveis, que são os sinais de pequeninas letras escuras sobre papel branco, e isso é uma arte que move todos os nossos sentidos, a partir da matéria prima que é o nosso próprio pensamento. 

A perda de leitores de literatura, que está a acontecer, penso que encaminha as sociedades para um estado de selvajaria, digo-o com todas as letras porque é na literatura, é na leitura que se aprende a criar valores porque a leitura vem ao encontro da necessidade que nós temos de exercitar um cérebro lento, um cérebro onde é possível evitarmos o correr do tempo, minuto a minuto, e entrarmos num tempo subjectivo, onde é possível tirar ilações, fazer comparações, e isso é lento... isso é lento, é muito lento, e a arte que faz isso melhor é, de facto, a literatura. Neste momento o que parece que há é uma espécie de corrida em contramão, estamos todos a correr a uma velocidade vertiginosa para alguma coisa onde não há espaço para a literatura. Eu digo a toda a gente que não perca o hábito de ler e passe o hábito de ler (...) 

Não digo que [o pragmatismo retire] o pensamento, os homens são seres pensantes, mas retira a qualidade do pensamento, transforma o pensamento em alguma coisa de... resposta pragmática para a pessoa sobreviver e retira, portanto, essa paz interior que é necessária para a pessoa poder criar o seu próprio mundo, um mundo que não é necessariamente narcísico (...). 

Esse mundo de subjectividade interior profunda é precisamente o espaço que permite a criação da alteridade, que permite a criação do outro como um ser semelhante a mim (...). Portanto, o que vai faltar, se continuarmos assim, é que o outro, em vez de ser aquele com quem eu compartilho passa a ser aquele com quem eu luto. É um regresso a instintos básicos. 

Hoje, a situação ainda não é alarmante mas há sinais de alarme muito fortes (...) as sociedades, mesmo as desenvolvidas, estão a apostar no «bom condutor da manada» (...). Isto está tão claro, e está clamando para que as pessoas façam uma pausa".

2 comentários:

Alberto disse...

Sem a escola do ensino e da aprendizagem, não podemos esperar mais do que "O bacalhau quer alho", esse indicador fiável do gosto artístico da maioria dos nossos estudantes politécnicos e universitários. Já para se chegar à beleza de "Für Elise", de Beethoven, não basta um talento enorme, também tem de haver escola, ensino e aprendizagem. Infelizmente, o nosso atual ministro da educação aposta mais na desvalorização do ensino ministrado por professores, com o intuito hipócrita de facilitar a aprendizagem aos alunos mais pobres ou intelectualmente menos dotados. Com estas ideias básicas, o ministro, fazendo tábua rasa da sua autonomia científica e pedagógica, obriga os professores a preencherem enormes grelhas de avaliação de cada um dos seus duzentos alunos, ou mais, com parâmetros e critérios que esquadrinham toda a vida académica, emocional e social, impondo-lhes uma única condição: no fim deste processo longo, fraudulento e esquizofrénico, o sucesso escolar de todos e de cada um tem de ser retumbante. Os professores já não reagem, limitam-se a anuir, baixando respeitosamente a cabeça!

Anónimo disse...

O Estado Novo não gostava que as pessoas se interessassem pelas artes e letras, porque estas "corrompiam" as mentes e semeavam ideias e apetites perigosos. Quando perguntaram a Flaubert o que gostaria de ser, respondeu: "um corruptor da juventude". Corruptor, claro, no bom sentido, o sentido que levou Sócrates à cicuta.e também à glória. O facto de o Estado Novo e todas as ditaduras gostarem tão pouco das artes e letras e dos artistas e escritores devia ser um sinal para a nossa democracia gostar muito do que os outros gostavam tão pouco. Portanto, é simplesmente trágico que, nesta altura do campeonato, ainda tenha de se andar a justificar a necessidade e a bondade de se dar, aos meninos, nas escolas, um aproximação empenhada às artes e às letras. É de tal maneira uma evidência, que o termos de andar a justificá-la tresanda a cómico ou mesmo a farsa..
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