segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A CIÊNCIA EM 1910 EM COIMBRA


Entrevista de António Piedade ao historiador de ciência Décio Ruivo Martins, co-autor do livro recente "Breve história da ciência em Portugal" (Imprensa da Universidade de Coimbra e Gradiva):

António Piedade – A Implantação da 1ª República altera de alguma forma o ensino das Ciências na Universidade de Coimbra?

Décio Ruivo Martins – Na Universidade de Coimbra, desde a Reforma Pombalina da Universidade, o ensino das ciências era da responsabilidade de duas Faculdades: de Filosofia e de Matemática. Ao longo de todo o século XIX verificou-se sempre uma complementaridade científica e pedagógica destas duas instituições. As sucessivas reformas que se observaram tiveram por base aquele princípio, embora sempre tivessem um estatuto de autonomia na organização universitária. Também se verificou alguma articulação com a Faculdade de Medicina.

A ideia de criação de uma Faculdade de Ciências em Coimbra é muito anterior a 1911. Cerca de 50 anos antes, em 1866, começaram a ser discutidos nos meios académicos três cenários para a reorganização do ensino das Ciências na Universidade de Coimbra.
- Fusão das duas Faculdades de Filosofia e Matemática, numa só Faculdade de Ciências, com um organograma curricular com 16 cadeiras, divididas em 3 secções.
- Designar a Faculdade de Filosofia como Faculdade Central de Ciências.
- Divisão da Faculdade de Filosofia, sem a integração da Faculdade de Matemática, em três secções: Ciências Físico-Químicas; Ciências Histórico-naturais; Ciências aplicadas. Cada uma delas com onze cadeiras distribuídas por cinco anos.

A 9 de Janeiro de 1867 o Conselho da Faculdade Filosofia principiou a discussão de um projecto de reforma. Neste Conselho foi proposta a divisão em três secções, compreendendo a primeira as sciencias physico–chimicas, a segunda as historico–naturaes, e a terceira as sciencias technologicas. Este projecto voltaria a ser discutido a 19 de Janeiro de 1867, no qual foi votada uma proposta de fusão das Faculdades de Filosofia e Matemática numa só Faculdade de Ciências. Esta proposta foi rejeitada, sendo contudo de realçar a antecipação com que a reorganização do ensino que conduziu à criação da Faculdade de Ciências começou a germinar.

Esta questão voltou a ser objecto de debate nos meios académicos. A 6 de Maio de 1882 voltou a ser debatida a proposta de divisão da Faculdade de Filosofia em duas secções: sciencias physico–chimicas, e historico–naturaes. O Conselho da Faculdade de Filosofia voltou a expressar o desejo de uma reunião efectiva com a Faculdade de Matemática, resolução que, no entanto, não dependia exclusivamente da vontade expressa pelo corpo docente daquela Faculdade. Apenas na reforma de 1901 foi formalizada a divisão da Faculdade naquelas duas secções.

Estes acontecimentos permitem admitir que um dos cenários defendidos em 1867 poderia ter conduzido a uma profunda reforma do ensino que anteciparia em cerca de um século a criação de uma Faculdade de Ciências e Tecnologia em Coimbra, caso a criação da secção de sciencias technologicas tivesse tido melhor acolhimento. Se assim tivesse acontecido, muito provavelmente, neste momento teríamos uma escola de engenharia a comemorar um século e meio de existência. Foi neste contexto que chegámos em Coimbra a 1911.

AP - Detecta-se alguma expansão no número de alunos que frequentam a então nova Faculdade de Ciências?

DRM - Em relação ao número de alunos, no ano lectivo de 1909/1910 as Faculdades de Filosofia e de Matemática foram frequentadas por 246 alunos, número que aumentou para 368 no ano seguinte. No ano lectivo de 1911/1912 (primeiro ano de funcionamento Faculdade de Ciências) estavam matriculados 354 alunos, e em 1912/1913, 382 alunos. Deste modo, verificou-se um crescimento muito lento mas constante do número de alunos. Este facto demonstra que a entrada em vigor da nova organização da Faculdade, aparentemente não provocou alterações significativas, pelo menos no número de alunos, que pudessem cobrir as necessidades do país.

AP - E no que diz respeito às eventuais colaborações entre a investigação que por cá se fazia com aquela que florescia, paradigmaticamente, no seio da comunidade científica internacional?

DRM – A produção científica em Portugal no início do século XX não atingiu o brilhantismo observado noutros países europeus. Contudo, as viagens científicas ao longo de toda a segunda metade do século XIX e início do século XX, realizadas pelos professores das Faculdades de Filosofia e de Matemática da Universidade de Coimbra, posteriormente Faculdade de Ciências, possibilitaram o contacto com os mais conceituados centros universitários europeus, tendo algum reflexo no ensino e na natureza dos temas abordados nas teses académicas.

AP – Pode dar alguns exemplos?

DRM - António dos Santos Viegas terá sido, entre os físicos portugueses, aquele que, ao longo de toda segunda metade do século XIX, mais contribuiu para promover o desenvolvimento do ensino e incentivar a produção científica de jovens estudantes. Viegas morreu em 1914, com 79 anos de idade. Quase até ao fim da sua vida manteve uma intensa actividade ligada ao ensino da Física. Foi ele que, em 1891, instalou em Coimbra o primeiro sismógrafo e até à sua morte teve uma acção decisiva para os primeiros passos desta área científica em Portugal. Coimbra possuía o único sismógrafo que se encontrava em funcionamento em Portugal no momento do devastador sismo de 1909, com epicentro localizado perto de Benavente. Este sismógrafo ainda se encontra no Instituto Geofísico, mas, infelizmente, tal como em muitas outras situações a incúria relativamente à preservação do nosso património científico fez com que o respectivo sismograma desaparecesse dos nossos arquivos.

Os conhecimentos sobre a Física das Radiações começaram desde muito cedo a ter aplicações médicas, inaugurando em Coimbra uma tradição de colaboração entre o Gabinete de Física e a Faculdade de Medicina que se prolongou, chegando até aos dias de hoje. Disso foi exemplo a criação do Laboratório de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Em 1901, apenas cinco anos após a descoberta de raios X, o decreto nº 4, de 24 de Dezembro, estabeleceu as Bases para a Reorganização da Universidade de Coimbra. Este decreto criou o Gabinete de Radioscopia e Radiografia no Hospital da Universidade de Coimbra.

Outro exemplo foi o desenvolvimento do Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra, que muito ficou a dever a Francisco da Costa Lobo, pioneiro da Astrofísica em Portugal. Em 1907 Costa Lobo visitou os principais observatórios da Europa a fim de desenvolver em Coimbra o estudo do Sol. Em 1912 começou a tomar medidas que conduziram à instalação de um espectroheliógrafo com características análogas às do que existia Observatório de Paris (Meudon), contando com o apoio de Deslandres, director do Observatório francês. Os registos feitos em Coimbra passaram a ser regularmente enviados para o Observatório de francês de Meudon, e também para Zurique, na Suíça, para serem incluídas no Bulletin for Character Figures of Solar Phenomena, uma publicação da União Astronómica Internacional, na época dirigida por William O. Brunner. Ainda hoje este instrumento se mantém em funcionamento e o Observatório de Coimbra possui uma das mais completas colecções de fotografias do Sol, cujo valor é internacionalmente reconhecido.

Outro nome incontornável foi Mário Silva. Licenciado em Coimbra em 1922, partiu passados três anos para trabalhar no Instituto do Rádio de Paris, dirigido por Madame Curie, tendo-se doutorado sob a sua orientação. Na capital francesa estudou com Langevin e de Broglie e conheceu Einstein, Bohr, Lorentz, e Thomson. Em 1929 Langevin visitou Portugal para tendo proferido uma série de conferências sobre a Teoria da Relatividade em Lisboa, Coimbra e Porto. Depois de concluir o doutoramento em Paris, Silva regressou à Universidade de Coimbra, tornando-se professor da Faculdade de Ciências e investigando em física nuclear. Com Álvaro de Matos, seu colega de Medicina, Silva criou o Instituto do Rádio de Coimbra, tendo convidado Madame Curie a vir a Coimbra inaugurá-lo. Apesar de estar pronto a funcionar e de aquela famosa cientista ter aceite vir a Coimbra, aquele que deveria ter sido o nosso primeiro Instituto de Física Nuclear e Instituto de Oncologia nunca chegou a abrir. Em 1947, Silva foi vítima de reforma compulsiva, juntamente com outros professores portugueses por ordem do governo de Salazar. Mais uma vez, e como já tinha acontecido no passado, a intolerância impedia o florescimento da actividade científica. Só pouco antes da Revolução de 1974 Silva foi reabilitado. Um dos projectos mais ambiciosos de Mário Silva foi a criação de uma Escola de Física Nuclear, em 1940, aproveitando a estadia em Coimbra de alguns dos melhores cientistas de então: Benedetti, Beck e Proca, todos eles refugiados da Segunda Guerra Mundial e todos eles com passagem pelo Instituto do Rádio em Paris. A proposta de Silva da sua contratação como professores foi rejeitada. Beck chegou a estar preso pela polícia política por ser refugiado de guerra e, juntamente com Benedetti, foi expulso do país. Beck foi para a Argentina, tendo trabalhado na Universidade de Córdoba; Benedetti notabilizou-se como professor no Carnegie Institute of Technology, nos Estados Unidos; e Proca regressou a Paris.

Noutra área científica, Aurélio Quintanilha começou a sua carreira na Universidade de Coimbra em 1919 tendo sido nomeado catedrático em 1926. O seu percurso internacional iniciou-se dois anos depois, após uma longa viagem de estudo pela Europa, passando pela Universidade de Berlim, onde estagiou com o alemão Kniep no Instituto de Fisiologia de Plantas. Após a morte deste estagiou sob a orientação de Hartmann, no Instituto Kaiser Wilhelm de Biologia (hoje na Universidade Livre de Berlim). A sua estada na Alemanha permitiu-lhe contactar com jovens cientistas que viriam a alcançar notoriedade em diversas áreas da Biologia, com destaque para a genética. Regressou a Portugal, em 1931, retomando a docência em Coimbra, mas foi expulso da função pública, em 1935.

Para já não falar de Egas Moniz, o noso Prémio Nobel em ciências, que em 1010 estava em Coimbra antes de se mudar para Lisboa no ano seguinte...

AP – E nos jornais da época? Havia divulgação de assuntos científicos e tecnológicos?

DRM – Os acontecimentos de relevo que em matéria científica iam acontecendo em Portugal, e particularmente em Coimbra, só raramente eram objecto de notícias na imprensa portuguesa. Contudo, em Fevereiro de 1896, pouco mais de um mês depois da descoberta dos raios X, fizeram-se as primeiras experiências em Coimbra, algumas delas para utilização daquele tipo de radiações no diagnóstico clínico. O material utilizado nestas experiências pode actualmente ser vista na exposição permanente do Museu da Ciência. No dia 1 de Março de 1896, o jornal O Século publicou em toda a sua primeira página um extenso artigo intitulado A Photographia atravez dos corpos opacos, onde se dava uma notícia das primeiras experiências feitas em Portugal. Esta foi, talvez, uma das raras notícias publicadas na imprensa diária, dando destaque a acontecimentos científicos noticiados pela imprensa portuguesa.

Para comprovar a indiferença com que a imprensa portuguesa tratava as questões científicas, refira-se por exemplo que Einstein desembarcou em Lisboa a 11 de Março de 1925 efectuando uma visita de um dia à capital portuguesa. Do seu diário de viagem conclui-se que esteve no Castelo de São Jorge e no Mosteiro dos Jerónimos. No entanto, à passagem por Portugal de tão prestigiado cientista a imprensa portuguesa não dedicou uma única linha. O mesmo já não sucedeu relativamente à vinda a Portugal de Paul Langevin, em Dezembro de 1929, tendo sido dado breve destaque às conferências científicas sobre a Teoria da Relatividade por ele proferidas em Lisboa, Coimbra e Porto.

O panorama da imprensa portuguesa foi sempre muito pobre relativamente aos avanços da ciência. Havia, no entanto, excepções: os jornais académicos. Devemos dar o devido destaque à revista O Instituto, que foi um dos mais importantes veículos usados para a divulgação científica e literária. Travava-se de uma revista publicada pela sociedade académica coimbrã com o mesmo nome, o Instituto de Coimbra, que, fundado em 1852, reuniu não só um vasto leque de académicos nacionais, a maior parte dos quais professores da Universidade de Coimbra, mas também académicos estrangeiros de grande prestígio internacional, numa actividade que se desenvolveu ao longo de quase século e meio. São inúmeros os artigos científicos em várias áreas publicados nesta revista ao longo da sua história. Actualmente todo o espólio do Instituto de Coimbra encontra-se à guarda da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e a colecção completa da revista foi digitalizada, estando acessível na íntegra na Internet (aqui).

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