O consórcio público começou por desenvolver as metodologias para sequenciar o genoma humano num tempo útil e não ao longo de várias gerações. Essa tecnologia não existia em 1990: não se sabia bem como pegar num ADN tão grande e parti-lo em bocados complementares mas com pequenas sobreposições sem perder nada (pois não é possível sequenciar mais de 1000 bases de cada vez e lembremos que estamos a falar de um total de 3 000 0000 000 de bases), não existiam os programas de computador suficientemente fiáveis para ler as sobreposições de sequências de vários fragmentos e ordená-las de forma correcta e os aparelhos de sequenciação eram bem mais limitados. Foi preciso construir livrarias genéticas, ou seja porções de ADN que se sabe muito bem a que sítio do genoma é que pertencem. Para desenvolver estes métodos o consórcio público avançou em paralelo com a sequenciação de genomas mais pequenos, como o da mosca do vinagre. E isto permitiu desenvolver processos fiáveis e robustos que permitiram sequenciar a totalidade do genoma humano com um grande rigor.
A Celera Genomics entrou na corrida com um outro método, chamado Shotgun sequencing, ou método da caçadeira, que basicamente consiste em partir o ADN em bocados aleatórios, sequenciar o que se encontra e depois tentar a partir de sobreposições dos vários bocados identificar quais são contíguos e reconstruir a sequencia completa original usando programas de computador. Isto resulta bem para genomas pequenos, mas para o genoma humano não resulta tão bem: a Celera Genomics completou o genoma de Craig Venter (coisa pouco narcisista e egocêntrica, o genoma do consórcio público é de múltiplos dadores) usando a sequência do consórcio público para preencher os bocados que lhe faltavam.
A Celera Genomics também entrou na corrida com outras motivações: pretendia efectivamente patentear genes e condicionar o acesso à sequência. Acesso parcial gratuito a grupos de investigação sem fins lucrativos, mas o genoma completo seria a pagar ou mediante requisões e acordos de confidêncialidade. Numa outra fase queria "dar um avanço" de seis meses no conhecimento da sequência aos clientes pagantes, sobre o resto da comunidade científica. Claro que tudo isto é eticamente inaceitável. Patenteiam-se invenções, não o conhecimento. Há quem ache que a sequência do ADN humano é uma invenção divina, mas certamente não é uma invenção de Craig Venter.
Hoje a sequência do ADN humano é de livre acesso muito graças ao esforço do consórcio público que divulgava os resultados da sequenciação no final de cada dia, à medida que os ia obtendo, fazendo cair a sequência no domínio público.
Mas, para os media e generalidade do público, a história que ficou foi a de que a Celera Genomics fez em dois anos o mesmo que o consórcio público fez em dez, e que talvez tenha havido um desperdício de fundos públicos numa estrutura ineficiente quando comparada com a agilidade de uma única empresa privada.
Mas Craig Venter não desistiu de roubar património genético, usando as chamadas leis de propriedade intelectual. Nos anos seguintes, entre outras coisas perscrutou o fundo dos mares à procura de organismos desconhecidos com alguma utilidade para patentear. E agora surge com o progresso notável da vida artificial. E é verdadeiramente notável, reconheçamos: introduziu um material genético completamente sintético dentro de uma bactéria, que começou a expressá-lo e se transformou nessa outra bactéria sintética. Fazendo uma especulação de ficção científica, e tendo em conta a sequenciação recente do genoma do Neandertal, conceptualmente poderíamos pensar num Neandertal sintético a andar entre nós. Claro que há obstáculos técnicos grandes (as bactérias são seres unicelulares sem um compartimento para o material genético e têm um único cromossoma) e gritantes questões éticas, naturalmente.
Os media mais uma vez bateram palmas aos sucessos de Craig Venter. E este mais uma vez submeteu uma montanha de patentes. O que é bastante perigoso, porque o ADN sintético pode ter sido feito em laboratório, mas usando a sequência de uma série de genes que não foram inventados pelo Craig Venter e que existem em organismos naturais.
Há a ideia de que as patentes servem para proteger os inventores e criadores. Não servem. Servem para que as invenções inovadoras apenas possam ser exploradas por quem tenha um exército planetário de advogados para travar batalhas legais nos tribunais de todo o mundo. Por isso o mercado farmacêutico mundial está na mão de meia dúzia de empresas. Também há a ideia de que esta protecção das patentes estimula a inovação: isso é mais um mito ou uma convicção subjectiva do que um facto demonstrável. Há alternativas e limites às patentes.
E mesmo considerando as patentes como necessárias, o conhecimento não se protege, partilha-se (claro que há excepções bem conhecidas, nomeadamente no campo militar). Mas uma coisa é conhecimento fundamental, outra é uma aplicação tecnológica para produzir um bem ou serviço.
2 comentários:
TED: Craig Venter unveils "synthetic life"
Neste vídeo da TED Craig Venter explica o que foi feito.
http://www.richardprins.com/2010/05/ted-craig-venter-unveils-synthetic-life/
Américo Tavares
Com estes ladrões... posso eu; o que me atormenta são os sorrateiros larápios do Museu Regional de Arqueologia, confiado à guarda da autarquia arganilense... que tão mal o tem guardado! Onde foi parar a ara romana do concelho de Góis e a centena e meia de projécteis de catapulta, em ferro, do acampamento romano da Lomba do Canho, nas imediações da vila?... Isso gostava eu de saber! JCN
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