sexta-feira, 3 de abril de 2009

Por onde passa o literário?

Transcrevemos um texto de João Boavida, antes publicado no jornal As Beiras, sobre a diversidade do estilo de escrita de grandes escritores.

Agustina Bessa-Luís não revê os textos. Enche páginas e páginas de letra apertada e quase sem margens. Depois, mais tarde, o marido passa-as à máquina, lê-lhas, ela, ao ouvir, mete uma ou outra emenda, e toca para a tipografia. Lobo Antunes, que em caligrafia também é de miudezas, escreve (ainda?) em folhas do hospital, e depois alguém as dactilografa, tal como fazia Vergílio Ferreira. Marcel Proust ia colando aos linguados manuscritos tiras de papel com acrescentos até obter autênticos franjados. Que abanariam ao vento se ele abrisse as janelas do quarto, coisa que por nada deste mundo fazia. Jorge de Sena confiava na força da sua pujante e espontânea inspiração, daí os labirintos sintácticos em que se enredava. Coisa que não se vê em Eça de Queirós, que corrigia sem cessar até sobre as provas tipográficas, e apresenta sempre uma prosa sintacticamente transparente. Cardoso Pires confessou “pensar muito com o aparo”; o que significa medir e escolher as palavras e ter um bom ouvido para a prosa. Aquilino escrevia pausadamente, e sobre o texto dactilografado introduzia, à mão, rasuras e acrescentos, para o toque gongórico que era a sua imagem de marca. Quando a confusão já era muita passava a limpo. Consta que “A morte de Ivan Ilich”, de Leão Tolstoi, teve catorze versões, o que significa trabalho exaustivo sobre um texto que parece escrito à primeira. Lobo Antunes não emenda grande coisa, mas faz também sucessivas versões do mesmo livro até o achar maduro.

Ana Grigorievna Snitkina, segunda esposa de Dostoievski, lamenta, nas “Memórias”, que o grande escritor russo, sempre apertado por credores e ansioso pelos direitos de autor, não tivesse tempo para grandes emendas, e muito menos para sucessivas versões. Que o conde Tolstoi podia fazer, porque tinha terras e trezentas “almas” a trabalhar para ele. Além da mulher, Sofia Berhs, que lhe passava a limpo páginas e páginas de várias versões. Não é no apuro estilístico que está o melhor de Dostoievski, curiosamente, um dos modelos de Agustina. Mas é caso para perguntar se não teria sido ainda melhor se ele tem podido dar-se a esse “luxo”. Mas nunca Ana Gregorievna teria escrito isto, se Dostoievski fosse mais abonado e mais estilista. De facto, era uma jovem estenógrafa, que ele contratou para lhe ditar o seu romance “O jogador”, quando viu que o tempo era já tão curto que, escrevendo normalmente, era impossível cumprir os prazos. E como, se o não conseguisse, pelo contrato ruinoso que assinara, perderia todos os direitos, com a jovem estenógrafa, com quem veio a casar, fê-lo em vinte cinco dias. Embora rápido, não ganhou ao nosso Camilo, que, mesmo sem estenógrafa, escreveu o “Amor de perdição” em quinze dias, preso na cadeia da Relação. Teve a seu favor o não ter outras distracções, mas, mesmo assim, é obra! Camilo também nunca teve muito tempo para apuros de estilo, pelos mesmos desgraçados apertos económicos; e ainda bem para os seus espontâneos maravilhosos.

Tudo isto para perguntar: por onde passa o literário? Aquilo que faz a obra literária é o quê? Onde está o específico dessa arte que suporta todas as variações estilísticas e formais, e até algum descuido? E que preza acima de tudo humanidade, originalidade e força interior? E que, contrariando moldes, não dispensa um toque pessoal de engenho e arte sobre a matéria-prima que são as palavras e as frases? “O primeiro verso é-te dado”, dizia Torga, “os outros terás que os conquistar”. Isto explica alguma coisa?

João Boavida

1 comentário:

Carlos Faria disse...

Tema polémico, onde muitos se encheram de preconceitos infundados sem saber porquê e outros os alimentaram para fins menos altruistas.

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