O interessante debate que mantive com o professor Ludwig sobre a natureza da ciência produziu frutos. Permitiu esclarecer as coisas. Penso agora que percebo o que tem o Ludwig em mente. Há duas ideias importantes que o Ludwig defende no último post do debate, "Demarcações", com as quais concordo.
A primeira é que há uma acepção de “ciência”, que é até prévia à revolução científica e que corresponde ao sentido de “episteme” usado pelos gregos, segundo a qual a filosofia, a história e outras disciplinas deste género são tão científicas quanto a física ou a matemática.
A segunda ideia, mais importante, todavia, surge no final do post "Demarcações", de Ludwig: segundo ele, nesta acepção lata de ciência, não há métodos pré-definidos que caracterizem a ciência, nem realidade alguma que escape à ciência. A ciência é o estudo epistemicamente virtuoso de tudo. Bom, ele não usa esta expressão, “epistemicamente virtuoso”. Esta expressão quer dizer apenas que se procura realmente a verdade, e não a vindicação das nossas ideias preferidas ou esperanças ou anseios profundos; que se procura evitar o erro; que se estimula a discussão crítica das ideias; que se procura refutá-las. Para realidades diferentes usamos metodologias diferentes. Basicamente, deitamos mão de tudo o que nos puder ajudar a compreender melhor a realidade. Concordo com esta ideia — já a tinha defendido no post “Ciência e Banha da Cobra”.
Não concordo com a ideia de que isto invalide distinções iluminantes entre diferentes ciências (e talvez Ludwig não queira dizer exactamente isto, apesar de o parecer). A matemática ou a lógica, assim como a filosofia, ocupam-se daquela parte (talvez irritante) da realidade que não parece poder ser estudada pela observação, pela medição, pelos métodos empíricos, enfim, que muitas pessoas identificam com a ciência. Isto porque, como no caso do post da Palmira, "Ciência, Pseudociência e Religião", se usa algo enganadoramente o termo “ciência” como abreviatura de “ciência empírica” — o que inclui a física e a biologia, mas também a história e a arqueologia, mas exclui a lógica e a matemática. Um dos traços do cientismo é desconsiderar sistematicamente toda e qualquer estudo da realidade que não seja um estudo empírico, baseado mais ou menos nos mesmos métodos da física, que é tomada como a rainha das ciências. Isto é um disparate; é tomar um aspecto particular dos métodos da física, que funcionam apenas porque se está a estudar determinados aspectos da realidade, como se tal aspecto fosse definidor da ciência, na sua acepção mais ampla.
O aspecto em que ambos concordamos, Ludwig e eu, é muito importante para o debate sobre o obscurantismo, as pseudociências e as formas supersticiosas e mágicas de viver e entender a religião, como é o caso do criacionismo (saber se há formas sofisticadas e intelectualmente defensáveis de viver e entender a religião é em si outro debate — eu penso que não, mas isso é disputável). Isto porque é muito comum os vendedores de banha da cobra defenderem dois tipos de ideias.
Primeiro, que há “outras realidades” que estão para lá dos métodos da ciência. Tomando o termo “ciência” na acepção ampla, não há tal coisa.
Segundo, que há outras metodologias menos “redutoras” do que as da ciência. Uma vez mais, tomando o termo “ciência” na sua acepção ampla não há tal coisa. Porque nessa acepção ampla, “ciência” é apenas a investigação cuidadosa da realidade, nada mais, deitando mão a tudo o que puder ajudar-nos a compreender melhor a realidade. A única razão pela qual não aceitamos videntes, por exemplo, na previsão meteorológica, ou livros sagrados em filosofia, é porque tais coisas não nos permitem compreender melhor a realidade, dado não terem um índice maior de acerto do que dizer a primeira tolice que nos vier à tola.
Daqui segue-se uma regra simples para detectar a banha da cobra intelectual. Se alguém defende uma ideia e começa logo a arranjar conversas complicadas sobre os limites da "racionalidade lógica" ou da "racionalidade científica" ou qualquer outro comentário sobre os termos da discussão que ponha em causa o carácter limitativo de imaginadas "regras" que nós estamos a impor, é porque é uma fraude. Na ciência, na filosofia, na história, na matemática, ninguém impõe regras arbitrárias de argumentação ou prova. Apenas pedimos provas ou argumentos, sejam lá eles quais forem, e a possibilidade de os estudarmos e discutirmos livremente. Nada mais. E isso, na acepção ampla, é a ciência. Só que este é um uso grego do termo, e não moderno -- se falarmos desta maneira, as pessoas vão pensar que estamos a falar apenas de física, biologia e coisas afins, excluindo a história ou a filosofia.
quinta-feira, 27 de dezembro de 2007
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37 comentários:
Parece-me que existe uma contradição no último parágrafo.
Se existe disponibilidade para estudar e discutir livremente todos os argumentos então não se deve considerar banha da cobra intelectual nem fraude as conversas complicadas sobre os limites da "racionalidade lógica" ou da "racionalidade científica" porque tem de se aceitar a crítica dos termos da própria discussão.
Só que ao aceitar-se esse tipo de discussão, está-se a colocar em causa o boi sagrado da argumentação filosofo-científica: o pensamento crítico. E os filósofos também têm os seus dogmas... ;-)
Essa acepção ampla de ciências, como "investigação cuidadosa" e "epistemicamente virtuosa" ainda sim não delimita suficientemente um conhecimento a se basear a feitura de remédios que curam efetivamente ou objetos que vencem a força da gravidade sem colocar em risco nossa segurança física.
Espíritas alardeiam que fazem investigações cuidadosas o tempo todo, só esquecem de adotar um método que permita falseabilidade atraves de predições deprendidas de seus postulados.
Separar pseudo-ciência da ciência, a meu ver, vai além de tomá-la de forma lata ou demarcá-la com cientismos, elegendo o empirismo como a forma mais pura de se fazer ciências.
Parabens pelo seu artigo, sempre brilhante.
Gilberto Miranda Junior
www.portalphilosophia.org
Desidério,
Essa do «professor» foi um golpe baixo... ou foi retaliação por eu te chamar filósofo? ;)
Ludwig,
percebo que o Desidério tem alguma resistência com os argumentos demarcatórios popperianos, que a meu ver, encerram uma lógica quase que irretocável em sua construção.
Gostaria de conhecer melhor os argumentos que defenestraria os de Popper.
Costumam dizer que a ciência, o conhecimento, ou uma teoria científica precisam ser falseáveis para estarem de acordo com o princípio de falseabilidade de Popper. Pelo que entendi, de minhas leituras dele, não se fala disso. Ele diz, textualmente, que uma Teoria científica precisa ser capaz de depreender predições que possam ser submetidas a testes (isto é, refutadas).
A possibilidade de refutação só se dá quando a teoria científica possui predições observáveis depreendidas de seus postulados (e esses postulados não precisam ter bases empíricas, podem ser deduzidos até de devaneios) São suas predições que precisam ter bases empíricas e controláveis (matematizáveis).
Uma teoria tautológica, que parte de pressupostos e que não seja capaz de prever algum fenômeno de maneira minimamente controlada, não pode ser colocada sob teste, portanto não pode ser falsificável. Logo, por definição lógica, popperiana, não poderia ser considerada um conhecimento científico.
Isso não a exclui de ser um conhecimento: nem racional nem lógico. Só não seria científico. Se eu elaboro uma teoria filosófica, preciso depreender de meus postulados alguma predição que possa ser verificada e testada. Isso seria uma filosofia científica.
Sob seu ponto de vista, eu estaria errado em pensar dessa forma ?
Gilberto M. Jr.
www.portalphilosophia.org
Partilho as ideias de Desidério Murcho quanto à acepção ampla de ciência apresentada aqui. Também me parece que é um disparate reduzir o conceito de ciência aos padrões da física. Parece-me bem a ciência ser investigação cuidadosa da única realidade que existe.
Há em todo o caso, mesmo não seguindo o conceito de ciência de Palmira, diferenças entre ciência “na acepção ampla” e filosofia “na acepção ampla”. A ciência dificilmente contribuirá para a solução dos problemas filosóficos “na acepção ampla”. Os problemas conceptuais da filosofia não são para a ciência. A ciência pode pôr novos problemas conceptuais para os filósofos desenredarem, mas não se move para dar soluções a esses problemas que ela própria vai criando.
Gostava que o Desidério Murcho tecesse algumas considerações sobre esta minha ideia de a filosofia, não só não fazer parte da ciência, mesmo “na acpção ampla”, como dedicar-se a um âmbito que está para além do âmbito da ciência.
Quanto a demarcações e a pensamento conjectural abordado por comentadores anteriores parece-me o seguinte:
Quando se toma um facto idividual como hipótese explicativa de outro facto indivudual, o primeiro funciona como lei geral que explica o segundo, e assim seguimos Popper.
Como segundo Popper ao fim e ao cabo as leis gerais são passíveis de falsificação, potencialmente podem entrar em conflito com leis alternativas tão explicativas como elas. Na descoberta científica as leis são formuladas através da descoberta intermédia de outros factos. Por exemplo em medicina, um diagnóstico segue procedimentos conjecturais porque procura tanto leis gerais como causas específicas e particulares. Assim, as descobertas médicas, sendo descobertas científicas, operam da mesma maneira que a investigação criminal, obedecendo a pensamento conjectural.
As teorias que não forem comprovadas pelos factos são consideradas pseudociência? Se há teorias científicas que não são comprováveis, o que distingue o conhecimento científico da pseudociência?
Será o critério de falsificabilidade de Popper a solução para o problema da demarcação entre ciência e pseudociência? Não me parece.
O critério de Popper ignora a notável obstinação das teorias científicas. Os cientistas não são muito influenciáveis. Não abandonam uma teoria apenas porque os factos a contradizem. Por isso Imre Lakatos veio advogar a metodologia dos programas de investigação científica, para ultrapassar as deficiências das ideias de Popper. Assim, a demarcação não é feita entre teorias científicas e pseudocientíficas, mas antes entre método científico e não científico.
Prezado F Dias, você diz :
"As teorias que não forem comprovadas pelos factos são consideradas pseudociência? Se há teorias científicas que não são comprováveis, o que distingue o conhecimento científico da pseudociência?
Será o critério de falsificabilidade de Popper a solução para o problema da demarcação entre ciência e pseudociência? Não me parece.
O problema não mencionado em sua postagem é que não são as teorias que precisam ser falseáveis. Teoria em si mesma é um modelo explicativo de um determinado fenômeno observável. O que é, e precisa ser falseável, para constituir um conhecimento científico, são as predições depreendidas dos postulados da Teoria. É nesse momento que há a demarcação entre ciência e pseudo-ciência.
Se, de uma Teoria, não de pode depreender predições passíveis de serem submetidas a testes, ela é apenas doutrinária, e requer uma aceitação sumária de seus postulados. Logo, não seria considerada conhecimento científico. Como considerar ciência algo que não pode ser testado ? (isto é, falsificável ?)
Não desprezo com isso a contribuição de Lakatos ao debate, mas Popper ainda possui uma lógica pertinente como critério demarcatório. Ele nunca falou em falseabilidade de Teorias, e sim nas predições que depreenderiam dela e, sobretudo, na necessidade de depreender uma predição que possa ser submetida a testes de refutabilidade.
Gilberto M. Jr.
www.portalphilosophia.org
Caro Gilberto,
Um modelo só escapa à falsificabilidade se dele não se deduzir nada que se possa observar. Mas, nesse caso, é um modelo de quê?
Penso que não aceitar como conhecimento uma hipótese só por ser falsificável. Mas penso que podemos rejeitar qualquer hipótese que não o seja, porque essas não nos podem dizer nada de novo.
Ludwig... Não sei se não estou conseguindo fazer-me entender, mas penso que disse exatamente isso que você falou.
Uma hipótese que não depreende predições que possam ser submetidas a testes, não chega ao status de Teoria Científica, e nem pode. Enquanto não puder ser falseável, ficará no terreno hipotético, e dependendo do método utilizado, ficará até no terreno fantasioso, não é mesmo ?
Penso que Popper ainda foi bem generoso ao colocar o critério de falseabilidade dessa forma, pois dã chances às pseudo-ciências de pelo menos tentar ter alguma credibilidade : basta que predigam algo que possa ser verificado.
Mas sua pergunta é pertinente. No caso de modelos teóricos-hipotéticos explicativos que não predizem coisas que se submetam a testes, seria modelo de que ? Ótima pergunta... Modelos de crenças, diria eu. Pseudo-ciência... Pode até ser algum tipo de conhecimento a ser classificado, mas científico não é, e nunca será...
Gilberto
www.portalphilosophia.org
Eu concordo em parte com o Gilberto e com o F. Dias. O que distingue a ciência do resto do conhecimento é o método científico, a aferição ou teste de um modelo com a realidade.
Não me interessa nada uma teoria ou modelo epistemicamente virtuosos, formalmente muito correctos mas que não servem para nada ou que servem para tudo: justifica tudo e o seu oposto!
Isso não é ciência!
Acrescento que a ciência pretende descrever o mundo com modelos, a investigação da realidade, com métodos empíricos ou teóricos, mas sempre de forma sistemática é a forma de lá chegar. É preciso ter uma ideia, uma hipótese e trabalhá-la até construir o modelo.
Trabalhá-la, testá-la, pode ser num laboratório, num computador ou com papel e lápis. Tanto posso fazer física num sincrotão como na mesa do café com um bloco notas. Isso não é importante. O que é importante é que o modelo a que chego tenha aplicação empírica.
Nesse sentido a ciência é sempre empírica.
Einstein não foi um experimentalista, que me lembre da única vez que foi para o laboratório fez asneira (a famosa experiência EPR) e no entanto é um cientista incontornável.Porque as suas previsões teóricas foram confirmadas experimentalmente ou empiricamente.
Acho que o problema do Desidério, como o de muita gente que nunca pôs a mão na massa em ciência, é confundir experimentalistas com empiristas.
Há ciência que não recorre a experiências, feita pelos teóricos, mas que é ciência. Só não é ciência se não servir para nada nem for confirmada na prática.
Por isso, muitos físicos não consideram a teoria de cordas como ciência mas sim como protociência. Ainda não houve IceCube que confirmasse uma única previsão da teoria...
Pedro, o exemplo de Einstein foi deveras pertinente, até proque sua vida inspirou muito as próprias idéias de Popper.
Einstein encarna o fazer ciências popperiana como um ícone. Sua concepção Teórica permitia predições que, ao seu devido tempo e com toda a resitência da comunidade científica positivista, foi sendo confirmada uma a uma por observação direta.
Isso, no entanto, não o eximiu de cometer gafes, quando inventou a constante cosmológica em sua fórmula para adequar as possíveis evidências à sua concepção mística de universo. Mas como gênio e grande cientista, soube voltar atras.
Essa é a vantagem clara e insofismável do conceito de falseabilidade. Se fosse uma teoria que não pudesse predizer coisas passíveis de refutação, cairia apenas na crendice das preferências...
Gilberto
www.portalphilosophia.org
Caro Gilberto: sem discordar com o espírito geral da discussão, peço-lhe que me deixe corrigir uma ligeireza de um dos seus comentários. Einstein não inventou a Constante Cosmológica do nada, incluiu-a na formulação da Relatividade Geral porque é matematicamente plausível e não adiciona complexidade de maior à teoria.
No entanto, e aí errou, fê-lo porque pretendia utilizá-la para defender a existência de um Universo estático. Mas, como sabemos desde a descoberta da lei de Hubble, este está em expansão, invalidando o seu propósito e a necessidade da dita Constante Cosmológica.
No entanto, no final do século passado descobriu-se que a expansão do Universo não está a travar, como seria obrigatório para um Universo constituido apenas por matéria. De facto, esta expansão é acelerada: a explicação mais simples para este facto recorre, precisamente, à existência de uma Constante Cosmológica!
Como tal, a ideia de Einstein, embora infundada na altura, revelou-se extraordinariamente fecunda.
Prezado Jorge, eu só tenho a agradecer por sua correção. Se bem que eu não disse que ele teria inventado do "nada". De algo, que lhe pareceu plausível, com certeza ele tirou rs... No entanto, ressalta aqui que, crenças pessoais ou concepções filosóficas não são o bastante para se fazer ciências. E isso, penso que você concorda.
Não podemos esquecer, no entanto, a idéia da existência da matéria escura, que caracterizaria essa expansão acelerada. Essa idéia já está tendo base empírica pelas descobertas de buracos negros ou super novas na proximidade dos fenômenos.
Desculpem, contudo, se disser algum erro imperdoável, já que não sou físico, apenas um curioso bem intencionado postulante a filósofo rs.
Caro Gilberto:
Pelo menos tem uma ideia mais realista do que é ciência que o Desidério...
Não concordo nada com este parágrafo da posta:
"Um dos traços do cientismo é desconsiderar sistematicamente toda e qualquer estudo da realidade que não seja um estudo empírico, baseado mais ou menos nos mesmos métodos da física, que é tomada como a rainha das ciências."
Primeiro, não há "física", há físicas. Os métodos usados pelos físicos de partículas, pelos muitos físicos teóricos, pelos físicos de estado sólido, de superfícies, de plasmas, etc... são completamente diferentes.
Há mais semelhanças entre os métodos de alguns químicos, biólogos, etc.. e um físico do estado sólido que entre os muitos métodos da física :)
Depois, não percebo o que é este cientismo. Se é não comprar modelos que não têm nada a ver com a realidade (e daí não são empíricos) então sou cientifista.
Mas até gosto de Picasso e Dali embora ache que os quadros deles não têm nada a ver com a realidade... mas também não o pretendem :)
Depois de facto não gosto muito desta mania de chamar ciência a tudo, mesmo a coisas que não são ciência, filosofia, história,ciências da educação e coisas parecidas. Qual é o problema de a filosofia ser filosofia e a história história?
Não entendo esta necessidade de alguns em redefinirem ciência de forma a abarcarem a sua area de especialidade. Qualquer dia temos as ciências do direito e o Jónatas Machado a reclamar o título de cientista...
Estimado Pedro
Se fizer uma pesquisa no Google por "Ciência Jurídica", "Ciência Filosófica", "Ciência policial", "Ciência Política", "Ciência Nutricional", "Ciência Religiosa", "Ciência Histórica", "Ciência Filosófica", descobrirá que a ciência se vulgarizou, perdeu o seu carácter elitista e qualquer gajo, isto é, cidadão, se tornou cientista de qualquer coisa.
Sem falar na "ciência astrológica" e na "ciência do futebol" como é óbvio.
A ciência está na moda, pedro. É o futuro tornado presente.
Já agora, estimado pedro, existem mestrados e doutoramentos em ciências jurídicas. Um jurista pode também ser um cientista. Os seus piores receios confirmam-se.
Se por ciência se entender a actividade que tem por objectivo produzir conhecimento, buscando a verdade; por função explicar a causalidade e o desenrolar dos fenómenos reais; e por objecto a realidade empírica (onde se inclui a própria actividade científica, ou a ciência e os seus métodos e instrumentos), ou até uma outra parte menos relevante da realidade, por menos útil, porque é meramente formal ou criada e existente apenas na nossa mente, então, não vejo como poderemos excluir dela a filosofia, a história e a matemática, por exemplo.
Assim concebida, a ciência é uma actividade cognitiva, desenvolvida na mente humana e pelo pensamento, e, por isso, produz objectos conceptuais que não podem ser outra coisa se não objectos reconstitutivos da realidade. A ciência, ou a actividade científica, pode ser diversa, consoante o seu objecto concreto e os métodos e os instrumentos que se lhe possam mostrar adequados para colher dados ou confirmar resultados. A expressão da ciência ou o seu resultado é apresentado sob a forma de modelos conceptuais que reconstituem o objecto (modelos discursivos).
Confunde-se, muito frequentemente, a ciência com a actividade de produção de conhecimento sobre a realidade física ou química, respeitantes aos seres inertes ou aos seres vivos, mas a física e a química não esgotam a realidade empírica. Mais grave é a confusão entre ciência e os métodos de obtenção de dados ou de comprovação de resultados, os quais podem incluir actividades e modelos experimentais (quando tal é possível e necessário). A experimentação, contudo, é apenas um dos instrumentos da ciência, que pode ser necessário, ou não, para o desenvolvimento da actividade cognitiva da produção de conhecimento ou para a comprovação dos seus resultados. Mas a ciência é feita pela mente humana e não pelo uso de microscópios, de telescópios ou de ciclotrões; estes apenas podem ajudar a que ela seja feita melhor ou que os seus resultados possam ser confirmados, nos campos em que o seu uso se mostre adequado.
A filosofia é uma actividade que estende o seu objecto ao campo dos valores e da avaliação, instrumentos usados pelos seres humanos para tomarem decisões, e não o restringe à realidade empírica exterior a esta realidade humana, ou não contaminada por aqueles valores, e também ao campo de um dos instrumentos privilegiados da ciência, o das regras do pensamento coerente ou da razão (e não o da explicação do próprio pensamento, objecto das ciências da cognição).
O caso da história é um pouco diferente, porque o seu objecto não é a realidade presente, mas uma realidade passada; neste caso, não só a produção do conhecimento é muito mais difícil, porque os dados recolhidos podem ser mais escassos, dispersos e desconexos, como as hipóteses que formula podem ser mais conjecturais, porque restritas à reinterpretação duma realidade que não existe mais e da qual nalguns casos sequer se tem prova de que tenha existido, por tão vestigiais que os dados podem ser. Mas também ela visa a produção de conhecimento e está sujeita à crítica e à refutação.
A matemática é uma actividade que estabelece relações entre entidades empíricas ou meramente formais, sejam quantitativas ou conceptuais, e que através de algoritmos operatórios permite predizer o resultado daquele relacionamento. A sua utilidade é poder ser aplicada à realidade empírica se nesta ocorrerem relações e operações do mesmo tipo que as usadas num determinado algoritmo matemático, e assim possibilitar predizer mais rapidamente e fielmente os seus resultados. A matemática, mesmo que o seu objecto seja meramente formal, ou que vise uma actividade lúdica (um jogo, por exemplo), está sujeita às regras do pensamento coerente e à parte da filosofia que o estuda, doutro modo não seria matemática.
Julgo poder dizer-se, portanto, que a filosofia, a história ou a matemática fazem parte da ciência, que são ciências ou ramos da ciência, porque todas elas, nos seus campos, buscam a produção de conhecimento, seja sob a forma de explicação da realidade ou sob a forma de instrumentos de produção de conhecimento, e estão sujeitas à crítica e à refutação. Neste aspecto, como Desidério muito bem diz em qualquer lado, a concepção de ciência de Mill é duma límpida clareza.
A teoria da falsificabilidade da ciência, de Popper, pode ser apenas um problema semântico ou coisa mais complicada, que ainda não alcancei. Talvez um termo mais correcto fosse falseabilidade, capacidade de tornar falso (ou de mostrar que é falso), mas mesmo este termo suscita algumas reservas. Se por tal se entender a possibilidade da falsidade do conhecimento científico, por parcial ou errado, e a sua refutação, nada mais banal, porque a ciência não tem do seu objecto referentes de verdade, mas referentes de plausibilidade, e, enquanto actividade humana, não está imune a erros de observação ou ao uso de regras do pensamento erradas; se a verdade fosse prévia à sua busca esta tornar-se-ia redundante, e se o erro estivesse sempre ausente das observações ou do uso das regras do pensamento, eventualmente a ciência produziria sempre verdades, conhecimento certo, e não conhecimento válido, como acontece frequentemente. Deste modo, o conhecimento produzido não é falsificável: é plausível, e neste sentido admitido como hipotética verdade, ou é falso, ainda que mesmo com esta mácula escondida tenha sido validado pela sua utilidade. Um conhecimento que demonstre a falsidade de outro confere-lhe a qualidade de falso e não de falsificável; e ele próprio, ao demonstrar a falsidade do outro, é desfalsificador e não falsificador. Neste sentido, a ciência produz conhecimento desfalsificador. Mas a falsificabilidade popperiana pode ter outro sentido, que de momento me escapa.
JC.
Caros leitores
Muito obrigado pelos vossos numerosos comentários.
Ludwig: não pretendi fazer qualquer ironia; chamei-te professor como marca de respeito intelectual.
Padrão: não há qualquer contradição, dado que os próprios padrões do pensamento crítico podem realmente ser postos em causa, e são-no. Na verdade, o que denuncia as conversas sobre a lógica ser “redutora” é que as pessoas que dizem esses disparates não sabem lógica, e nem sabem sequer que não há UMA lógica hoje em dia, mas várias, e que muitas delas surgiram porque se considera que as outras são... “redutoras”. Mas quando estamos a discutir um assunto qualquer e as pessoas aparecem com essas fantasias mecânicas do “redutor” já se sabe que é fraude intelectual, nada mais; essa pessoa não esta minimamente interessada em estudar cuidadosamente o princípio do terceiro excluído, por exemplo, para saber se há bons contra-exemplos a ele e, se os há, como poderemos fazer uma lógica que não o implique. Se o fizesse, em vez de dizer disparates, saberia que isso foi de facto já feito há mais de 50 anos.
A fraude intelectual detecta-se nisto: uma pessoa põe saudavelmente em causa certas coisas, como tu fazes relativamente a este parágrafo e bem, mas depois não põe em causa as afirmações mais estapafúrdias, desde que vão na direcção desejada.
Caro F Dias
“Os problemas conceptuais da filosofia não são para a ciência.” No sentido restrito, mais comum, de ciência, não. Nem a matemática, nem a lógica, nem a física nem a biologia podem resolver os problemas centrais da filosofia.
Mas se aceitarmos o sentido grego de “ciência” que o Ludwig defende, então a filosofia é ciência. Os problemas da filosofia são problemas sobre a realidade, e em filosofia procuramos resolver esses problemas. Outra coisa é saber se os conseguimos resolver. O que não se pode pensar é que a filosofia não trata de problemas sobre a realidade, o que será tentador pensar se entendermos o carácter conceptual da filosofia como os positivistas lógicos. Para estes, a filosofia não investigava a realidade, cuja investigação era esgotada pelas ciências empíricas como a física ou a biologia; a filosofia investigava a nossa concepção da realidade e não a própria realidade.
Mas hoje em dia poucos filósofos aceitam tal coisa — e eu não aceito. Considero que isto é apenas um preconceito positivista. A filosofia é conceptual, sim, mas não no sentido de se ocupar de conceitos e não da realidade, mas antes no sentido de ser uma investigação não empírica da realidade.
E porquê uma investigação não empírica? Porque somos preguiçosos demais para fazer investigação empírica? Não. Porque os problemas de que nos ocupamos não são susceptíveis de ser estudados empiricamente. Mas esse estudo não é menos científico no sentido grego do termo que o Ludwig defende. Acontece apenas que não faz sentido tentar resolver empiricamente os problemas centrais da filosofia. Os métodos empíricos não são adequados para tentar resolver os problemas da filosofia, tal como não são adequados para tentar resolver os problemas da lógica ou da matemática.
Caros leitores
Relativamente a Popper: Como já disse uma vez, o critério de falsificabilidade de Popper parece correcto porque acerta em alguns aspectos importantes da ciência empírica. Mas não em todos. É como o sistema ptolomaico: acerta em várias coisas, mas nem por isso está correcto. Está errado, porque falha nos pormenores, entre outras coisas. Mas acerta em muitas.
Ora, não podemos ter em filosofia o tipo de atitude do "mais ou menos" que temos na vida comum, mas que obviamente não aceitamos na biologia ou na física. Se uma teoria falha nos pormenores, está errada. Ponto. Mesmo que acerte em muitas coisas.
Eis então alguns dos problemas do falsificacionismo como critério de distinção entre ciência e pseudociência:
1) Aplica-se exclusivamente, caso se aplique de todo, a ciências empíricas como a biologia ou a químia. Não serve para distinguir a matemática da numerologia.
2) Sofre de uma ambiguidade de base: o critério é epistémico ou metafísico? Se for metafísico, não funciona, porque nunca se poderá descobrir, por exemplo, que a água não é H2O, se for necessário que a água é H2O. Terá por isso de ser epistémico. Mas se é epistémico, está mal formulado porque quer dizer apenas que procuramos cuidadosamente objecções, contra-exemplos e refutações. Ora, isto aplica-se a qualquer actividade epistemicamente virtuosa, e não apenas às ciências empíricas, como Popper desejava.
Caro Pedro
“O que é importante é que o modelo a que chego tenha aplicação empírica. Nesse sentido a ciência é sempre empírica.”
Penso que isto é insustentável. A matemática pura, por definição, ou a lógica pura, não tem (globalmente) qualquer aplicação empírica. Algumas partes destas ciências têm aplicação empírica, mas a maior parte não tem. E há inúmeros casos de teorias matemáticas para as quais só se descobriu aplicação empírica muito tempo depois de terem sido criadas — ora, é absurdo dizer que só se tornaram científicas depois de termos descoberto maneira de as aplicar.
Afirma que eu confundo experimentalistas com empiristas, mas não confundo tal coisa. O que não confundo é “ciência” com “ciência empírica”, como o Pedro claramente faz. Quem conhece com alguma profundidade a lógica ou a matemática pura, vê claramente que estas áreas são solidamente científicas num certo sentido, mas não são empíricas (e é claro que não são experimentais). A sua insistência no empírico é porque, como todo o bom positivista cientificista, identifica “ciência” como “física”, que é tomada como modelo para todas as outras ciências. Deste ponto de vista, a biologia é tanto mais “científica” quanto mais for parecida com a física.
O que está na base desta ideia positivista? A fantasia de que o que dá solidez epistémica à ciência é o confronto com a experiência. Isto é falso. Os conhecimentos de senso comum de um agricultor tradicional funcionam e são o resultado do confronto com a experiência, mas estão longe de ser científicos no sentido em que a física é científica — porque lhes falta a sofisticação teórica, o alcance explicativo, a articulação cuidadosa, a precisão e a previsibilidade com alto grau de acerto. Você mostra bem que aceita esta fantasia positivista porque declara que não lhe interessa que uma teoria seja o resultado de procedimentos epistémicos virtuosos se nada tiver a ver com a realidade. Ou seja, concebe que uma teoria possa esgotar as metodologias epistemicamente virtuosas, mas não se dar ao trabalho de confrontar as suas afirmações com a experiência, que você não concebe como um método epistemicamente virtuoso entre outros, adequado apenas quando as nossas afirmações são susceptíveis de ser testadas experimentalmente, mas antes como um método mágico que resolve tudo de uma vez por todas e se aplica a tudo o que for, genuinamente, científico. Ser científico é, do ponto de vista positivista, ser empírico. E isto é insustentável, a menos que façamos jogos de palavras e se entenda “ciência” como “ciência empírica”.
Afirma:
“não gosto muito desta mania de chamar ciência a tudo, mesmo a coisas que não são ciência, filosofia, história,ciências da educação e coisas parecidas. Qual é o problema de a filosofia ser filosofia e a história história?”
Aqui, concordo consigo. Daí o meu debate inicial com o Ludwig. Mas, se não fizermos jogos de palavras, temos de concordar que no sentido amplo que o Ludwig dá ao termo, todas essas coisas são ciência. Aliás, era assim que os filósofos e cientistas gregos viam as coisas. “Episteme” era o género de conhecimento teórico sofisticado, cuidadosamente baseado na razão — métodos epistemicamente virtuosos, como eu prefiro dizer. E o Ludwig tem razão numa coisa: se quisermos contrastar estas coisas com a numerologia, astrologia, criacionismo, etc., o contraste resulta mais nítido se entendermos “ciência” no sentido grego de “episteme”.
Caro Desidério:
Acho que o nosso desacordo tem a ver com o facto de que para mim a ciência é a descrição «epistemicamente virtuosa» da realidade e para o Desidério é simplesmente a investigação dessa realidade.
Se quisermos contrastar a ciência com a pseudo-ciência a sua definição não serve para nada.
Afinal a astrologia, a numerologia, etc. podem reivindicar que são investigações sofisticadas e racionais da realidade; agora o que não podem dizer é que descrevem a realidade porque os seus modelos falham redondamente.
Sobre o conhecimento profundo de matemática, muitos matemáticos começaram como físicos, eu próprio fui monitor de Análise I durante a licenciatura.
Não sei se sabe que hoje em dia é mais ou menos consensual entre os matemáticos que a matemática é uma ciência exacta e empírica :)
Há um livro que fala exactamente disso e que podiam divulgar no DRN:
Mathematics: The science of patterns de Keith Devlin.
Para Devlin, a matemática é uma ciência empírica cujo objecto de estudo são as regularidades (patterns) nos números, no espaço, etc.. que tanto podem ser reais como imaginárias, visuais ou mentais.
Um ex-presidente da Associação americana de Matemática Lynn Arthur Steen defendeu inúmeras vezes esta visão da Matemática como ciência empírica
"Os matemáticos procuram regularidades nos números, no espaço, na ciência, nos computadores e na imaginação. As teorias matemáticas explicam as relações entre regularidades".
Para mim não é ciência algo que não possa ser confrontado com a realidade que pretende descrever.
Não quero dizer com isto que menosprezo ou considero intelectalmente inferiores outras actividades racionais como a filosofia. Simplesmente não são ciência, são outras coisas.
Para mim cientismo é achar que só a ciência é conhecimento válido e a forma de chegar à verdade das coisas, não é achar que há outras formas de chegar à verdade para coisas que a ciência não pode investigar (porque não há forma de aferir a verdade dos modelos, proposições ou o que seja).
Acho que dizer que história é ciência ou que filosofia é ciência é um forma de baralhar as águas e deixar campo aberto a todos os intrujões que se aproveitam disso para vender gato por lebre.
Afinal, se tudo é ciência nesta acepção ampla, porque não há-de a pseudo-ciência de ser ciência?
Caro Gilberto:
Sim, concordo que Einstein recorreu um pouco ao chamado "wishful thinking".
Quanto ao seu comentário
"Não podemos esquecer, no entanto, a idéia da existência da matéria escura, que caracterizaria essa expansão acelerada. Essa idéia já está tendo base empírica pelas descobertas de buracos negros ou super novas na proximidade dos fenômenos."
Refere-se não à matéria escura, mas à energia escura; a primeira é apresentada como uma explicação plausível para a aparente falta de matéria normal no inventório de massa das galáxias e do Universo, e é negra porque não interage com a restante matéria sem ser através da gravidade.
A energia escura é que designa genericamente a entidade responsável pela expansão acelerada do Universo: o modelo mais simples para a dita energia escura é, para muitos, a dita Constante Cosmológica, mas há muitos outros: campos escalares a rolarem num potencial monótono adequado (quinta-essência), alterações ao formalismo da própria Relatividade Geral, efeitos devido à existência de dimensões espaciais extra, etc).
Quanto aos buracos negros ou supernovas, não são nem uma coisa nem outra, mas fenómenos extremos de densidade e pressão em matéria normal.
No entanto, observou-se recentemente a primeira suposta prova (quase) directa da existência de matéria escura - o choque entre dois aglomerados de galáxias: basicamente, a matéria normal (que irradia luz e é, portanto, visível) revela marcas do choque (uma onda de choque, como se da penetração de uma bala se tratasse), enquanto que o perfil gravitacional depreendido das observações (e que indica o comportamento de toda a matéria dos aglomerados) revela que a maior parte desta não interagiu na colisão. Conclui-se assim que a maioria da matéria destes aglomerados de galáxias não interage e é, portanto, escura.
Sobre «Os conhecimentos de senso comum de um agricultor tradicional funcionam e são o resultado do confronto com a experiência»
não são ciência porque o agricultor não põe hipóteses, não as testa, não constrói um modelo, etc.. são apenas conhecimentos de senso comum, e muitas vezes há indução errada por causalidade nesses conhecimentos exactamente porque não foram testados cientifica e sistematicamente de forma a excluir outros parâmetros.
Funcionam por outras razões e não por causa do que o agricultor pensa que funcionam.
Ou seja, é mesmo verdade que "o que dá solidez epistémica à ciência", descrição da realidade através de modelos construídos pelo método científico, é o confronto desses modelos com a realidade, como o próprio Desidério reconhece quando diz que falta ao conhecimento de senso do agricultor "a previsibilidade com alto grau de acerto".
Não faz muito sentido dizer no mesmo parágrafo que é falso e " fantasia de que o que dá solidez epistémica à ciência é o confronto com a experiência" e depois que falta ao agricultor para ser ciência "a precisão e a previsibilidade com alto grau de acerto."
Caro Desidério:
Gosto imenso de o ler sobre filosofia (da qual não percebo nada e aprendo muito com os seus posts) mas sobre ciência nem por isso...
A acepção ampla de ciência era a definição de filosofia antes de a ciência se ter separado da filosofia e agora parece que há quem queira voltar atrás no tempo recuperar a definição mas agora chamar-lhe ciência... Eu pensava que era só o B16 com a insistência na "filosofia natural" mas pelos vistos não...
Não posso falar pelas outras ciências mas em biologia esta sua frase não se aplica de todo:
"do "mais ou menos" que temos na vida comum, mas que obviamente não aceitamos na biologia ou na física. Se uma teoria falha nos pormenores, está errada. Ponto. Mesmo que acerte em muitas coisas."
Isto é completamente errado. Aceitamos de muito bom grado todas as teorias "mais ou menos" que sabemos falharem em pormenores se não tivermos melhor.
Temos de começar por algum lado e raramente se começa com um quadro com todos os pormenores, normalmente começamos com um esboço que não dá conta de promenores. O que fazemos é ir refinando essas teorias até dar conta dos pormenores.
Imaginemos que há um assunto sobre o qual não sabemos nada ou sabemos muito pouco, por exemplo sobre a forma como morrem as células cerebrais por hipóxia (falta de oxigénio) e sobre os mecanismos das lesões hipóxicas-isquémicas cerebrais.
sabemos, muito recentemente aliás, que células cerebrais que foram sujeitas a hipóxia e sobreviveram se suicidam ( apoptose ou morte celular programada) depois de re-oxigenação e que induzindo hipotermia nos tecidos afectados depois ou durante a ressuscitação aumentamos a viabilidade celular. Não fazemos a mínima ideia porquê, apesar da hipóxia ser, pelas razões óbvias, muito estudada!
Qualquer modelo, por muito geral ("errado" nos pormenores), que nos ajude a perceber o que se passa é muito bem-vindo (e científico).
Sabemos que o aumento do Ca++ intranuclear durante a hipoxia aumenta a transcrição de vários genes, incluindo genes apoptóticos da família Bcl-2 responsáveis pela morte celular programada.
Sabemos que o aumento do cálcio intracelular pode levar ao aumento do cálcio intranuclear pela Ca++ATPase de alta afinidade e receptores IP4 localizados na parte externa da membrana nuclear e receptores IP3 localizados na parte interna da membrana nuclear.
Durante a hipoxia, o aumento do Ca++ intracelular é causado pela activação do receptor N-metil-D-aspartato (NMDA). A regulação dos NMDARs em hipóxia está bem estudada mas o quadro completo é mais ou menos desconhecido. Ou seja, temos um modelo geral que não explica muitos pormenores.
Por exemplo, sabemos que a activação de receptores AMPA se traduz na entrada de Na+ para a célula pós-sináptica e na despolarização da membrana o que por sua vez activa os receptores NMDA, com entrada de Ca2+ e consequente excitotoxicidade.
Mas também sabemos que os receptores NMDA são mais sensíveis a curtos episódios de hipóxia que os receptores AMPA.
Mas não vamos dar uma de exigentes e dizer que o que já temos modelado não serve porque "falha nos pormenores, está errada. Ponto."
Tudo depende das áreas da ciência de que se fala, se estão bem estabelecidas, se são emergentes, etc..
Agora concordo com o Pedro, uma teoria sem capacidade de previsão, que não pode ser testada não é ciência, é outra coisa qualquer. É assim que sabemos que o nosso modela tem de ser aperfeiçoado, porque as previsões do modelo falham ou porque o modelo não explica determinados aspectos da realidade (neste caso da hipóxia). Isto apesar de ser um modelo muito sofisticado (mas sem matemática...)
O nosso modelo da hipóxia não é perfeito, é o que temos, e usamo-lo porque não temos melhor. Mas se não o usássemos para o confrontar com a realidade como é que sabíamos que não era perfeito e que não explicava pormenores? Como é que o melhoramos se não por confrono com a realidade?
Acabei de ler o Ludwig na última deste ping-pong sobre ciência e devo dizer que com esta já concordo:
"Eu proponho que é contraditório afirmar que se estuda a realidade sem ser pela observação. O conhecimento exige sempre observação.(...) Acho inútil, e até enganador, distinguir entre ciência empírica e não empírica. Em primeiro lugar porque todo o conhecimento depende de observação."
Acho que o problema é que empirismo tem várias acepções e para o Desidério só tem uma: positivismo lógico. Por isso ele acha que dizer que para algo ser ciência tem de ser empírico é cientismo (mas isso é um problema da filosofia, não da ciência).
Um cientista normalmente nem sonha o que é positivismo lógico :) e para nós um um resultado empírico é uma observação experimental. A ciência é sempre empírica porque é baseada na observação do mundo e não na fé (aliás rejeita completamente teorias assentes na fé e não na realidade).
Como ciência não é filosofia e filosofia não é ciência acho que toda esta discussão resulta daí :)
Quando encontrei este blog sobre ciência eu até pensava que, por ser um espaço associado ao Público, tivesse prioridades de divulgação cientifica que tanta falta faz.
Mas ultimamente, sempro que passo por cá, ou decorre uma quesilia com os criacionistas de serviço ou deparo com textos e comentários que são a antitese do que deveria ser uma postura de divulgação.
Existe uma coisa chamada e.mail que serviria optimamente para dissertações do tipo das assinadas por certos cometadores de serviço, pois não se entendem!E aos divulgadores, se é divulgação que querem fazer, também não ficaria mal aqui e ali expressarem-se em bom português e clarificando conceitos. Ou não têm consciência que, por exemplo, desta última sequência sobre o que é ou não é ciência o que resulta para o leigo é apenas confusão? O que quero dizer com isto é que porventura haverá questões a resolver dentro das comunidades das ciências que talvez não tenham que sobrar para aqui.
Bom Ano a todos.
Caro Pedro
As pseudociências não seguem quaisquer processos epistemicamente virtuosos de investigação; pelo contrário, tudo distorcem para ir dar ao que querem desde o início. O falsificacionismo de Popper é apenas um caso particular da virtude epistémica, nada mais. E aplica-se apenas a ciências empíricas, não se aplica a áreas não empíricas da ciência, como a matemática ou a lógica.
Quanto à ideia de Devlin: os números, por exemplo, estão onde? Já alguém viu algum? O que é exactamente um número? Nós não sabemos empiricamente que 200 mais 340 dá 540. Sabemo-lo pelo pensamento apenas.
A única razão para Devlin e outros defenderem o indefensável é cientismo, e o cientismo é a ideia de que ou é empírico ou é treta. E isto é que é uma grande treta. Qualquer pessoa que não sofra de cientismo sabe que a matemática não é uma disciplina empírica.
Acresce que do facto óbvio de a matemática se aplicar ao universo espaciotemporal (caraças, afinal não a usamos na física?) não se segue que a matemática seja empírica; segue-se apenas que tem aplicação empírica. Só que aqui estamos a chocar com outro dogma positivista. O dogma de que não pode haver conhecimento da parte espaciotemporal do mundo sem ser por via empírica. Ora, isto é falso. Basta pensar na física. A maior parte das coisas que sabemos não o sabemos directamente por via empírica, mas através de raciocínio matemático.
Quanto à ciência na sua acepção ampla: quem defende essa ideia é um cientista, o Ludwig, e não eu. Eu limitei-me a pegar nessa ideia e a mostrar como podemos torná-la plausível. Mas é claro que esta ideia parece altamente implausível se não se ler bem o que está escrito. Nesta perspectiva de Ludwig é ciência tudo o que for uma descrição correcta da realidade, obtida por meios epistemicamente virtuosos. É claro que eu alertei desde a primeira hora: não é assim que se usa o termo “ciência” hoje em dia; hoje em dia usa-se o termo apenas para a física, biologia, etc., e geralmente as pessoas até se esquecem da matemática. Neste sentido restrito, nem a matemática nem a história são ciências, o que não significa obviamente que não sejam áreas de investigação cognitivamente sérias. Ou talvez não; Rutherford afirmou famosamente que além da física tudo era apenas colecções de selos. Claro que isto é um disparate, mas capta o que qualquer cientificista pensa hoje em dia: que ou algo é parecido à física, ou não é ciência, é só uma brincadeira de crianças.
Quanto ao agricultor, não me fiz compreender. O que distingue os acertos do agricultor dos acertos da ciência? É o facto de os acertos do agricultor terem sido por sorte e não obtidos por meios epistemicamente virtuosos — dos quais os testes experimentais que cita são apenas casos particulares. O meu objectivo era mostrar-lhe que o mero acerto com a realidade não é suficiente para fazer de algo ciência; acertar na realidade toda a gente acerta, até a astrologia e o criacionismo.
Olá, Rita
Uma vez mais: deve morder as canelas ao Ludwig e não a mim! É ele que defende a acepção ampla de ciência, Rita. Eu limitei-me a mostrar como tal coisa pode ser tornada minimamente plausível, e mostrei que as raízes de tal ideia são gregas; são pré-modernas. Eu acho que há virtudes nesta ideia, porque pode ajudar a desembaraçar os cientistas do cientismo que compraram de barato na sequência da revolução científica do séc. XVIII.
Note o seguinte: a ciência tal como hoje a conhecemos começou por ser feita FORA das universidades, sobretudo no continente europeu — Newton, nas ilhas, foi uma excepção. Isso aconteceu porque as universidades eram más, estavam agarradas às suas práticas “científicas” e consideravam tolice observar o mundo para ver como ele era. Isso não parecia “científico” — era mais científico citar as autoridades da época. Então, a nova ciência foi-se impondo através de vários jogos políticos de retórica, entre os quais se conta os hinos cantados à observação, à experimentação. Essa retórica persiste nos dias de hoje, e passou-se de oito para oitenta. Hoje a ciência faz-se quase toda nas universidades, mas os cientistas são precisamente como os seus predecessores: aceitam com o mesmo grau de credulidade acrítica a ideia de que sem observação não há ciência, tal e qual como os seus predecessores aceitava a ideia de que a observação não era científica.
Quanto a teorias erradas nos pormenores, nada do que diz contraria o que eu digo, Rita. Se uma teoria está errada nos pormenores, está errada. Ponto. O que se passa é que se não tivermos qualquer alternativa, tentamos ou melhorar a teoria, ou temos de viver com ela até termos outra melhor. Mas sabemos que está errada — apenas funciona em várias aplicações e não temos outra melhor. A chave aqui é “não temos outra melhor”.
Depois pergunta retoricamente: “como melhoramos o nosso modelo se não for pelo confronto com a realidade?” E a mim deu-me vontade de esganá-la! Raios, já leu alguma vez, em todas as muitas tolices que escrevo, que a ciência empírica não deve ser empírica? Que a ciência experimental não deve ser experimental? Que a biologia não deve confrontar e aferir os seus modelos explicativos pela realidade? De certeza que nunca leu tal coisa. Então, qual é o sentido da sua pergunta? Tolice, claro, Rita. Repare: SE aceitarmos como ciência, como o faz Ludwig, áreas que não são empíricas, como a matemática ou a lógica; ENTÃO nem toda a ciência é empírica. Isto não significa que a biologia deixe de ser empírica, claro! Ficou claro, agora? Vou clarificar ainda mais: não defendo, nem nenhum filósofo defende, que ciências como a biologia ou a física ou a cosmologia não são empíricas (mesmo quando não são experimentais, como a cosmologia); defendo que essas ciências SÃO empíricas. Mas a matemática e a lógica não o são. E são ciências? É uma questão de palavras; tanto faz. Chame-lhes o que quiser. Mas chame-lhes como lhes chamar, produzem conhecimento, em muitos casos muitíssimo mais sofisticado e melhor articulado do que a biologia, por exemplo, e não são empíricas.
Quanto à sua concordância com a ideia do Ludwig de que o conhecimento exige sempre observação: não me espanta nada. O que isto significa é uma de duas coisas implausíveis. Ou a matemática e a lógica puras não produzem conhecimento (é a treta que o Ludwig defende). Ou a matemática e a lógica puras afinal são realmente sobre o mundo, como o Pedro aqui tentou defender invocando Devlin (mas fazendo uma confusão do caraças entre a matemática ser empírica e ter aplicação empírica, que são duas coisas completamente diferentes).
Penso que toda esta conversa se limita a uma coisa muito simples. O cientismo inclui a crença de que é a observação cuidadosa da realidade que torna a ciência ciência. E a dificuldade dos cientistas empíricos é em perceber que isso só acontece nas ciências... bem, empíricas. E acontece porque tais métodos epistemicamente virtuosos de confronto cuidadoso com a realidade podem ser aplicados. O mesmo já não acontece na matemática pura nem na lógica pura. Qual é a dificuldade em reconhecer que há outros métodos epistemicamente virtuosos de trabalho? A dificuldade é a crença cientificista de que a observação é o critério mágico que separa a ciência da pseudociência. Não é. A observação é apenas um caso particular de um método epistemicamente virtuoso de estudo da natureza das coisas.
Okay Desidério, agora concordo com (quase tudo) :)
Não tinha percebido que o "culpado" era o Ludwig e pensei que era o Desidério que estava a defender esta acepção ampla de ciência.
Para mim para ser ciência tem de ser empírica mas isso não quer dizer que não haja formas não empíricas de produzir conhecimento. Com uma família nas humanidades era deserdada se achasse que só o pensamento científico é pensamento racional e válido ou coisa no género :)
Não quero entrar na "guerra" se a matemática é ou não ciência (que já reinava nos meus tempos de estudante) mas sejam o que forem, não tenho dúvidas que quer a matemática quer a lógica produzem conhecimento epistemicamente virtuoso.
Gostei mais destas explicações que do post que não deixava claros os pontos que agora foram bem explicadinhos :)
Não deixa de ser interessante o que vem ao cima nestas discussões acerca da ciência e da realidade que constitui o seu objecto.
Pelos vistos, os que reduzem a ciência à produção de conhecimento sobre a realidade empírica ainda não se aperceberam de que a ciência é, ela própria, uma parte da realidade não empírica?
Não se aperceberam, os empiristas, que o conhecimento sobre a realidade empírica não existe na realidade empírica, mas na cabeça dos cientistas?
Ora, que discussões mais infantis...
JC (mas não o Cristo).
A cabeça das pessoas existe na realidade empírica. Tal como os seus pensamentos, no sentido ppsicológico ou não fregiano.
As pessoas, com as suas cabeças, existem na realidade empírica, de que são parte integrante; mas tudo o que elas criam é empírico? Essa agora! Então, porquê tamanha discussão acerca da realidade se tudo se pode reduzir à realidade empírica? O produto do conhecimento, o conhecido, e os construídos mentais usados nessa produção são empíricos ou são reconstituições não empíricas de objectos empíricos e não empíricos?
Não estará confundindo cabeça com pessoa, cérebro com cabeça, mente com cérebro, pensamento com mente, e construído mental com pensamento? Todas as partes de um todo são da mesma natureza?
Se assim não for, um dia destes talvez nos possa apresentar um exemplar desse pensado empírico. Ou, mais fácil, apresentar a si próprio um dos seus pensados. Isto, claro, como algo existente na sua própria cabeça, armazenado num qualquer sítio do seu cérebro, memorizado na sua mente como tal, sem necessidade de ser reconstituído, já que seria empírico. Isto para não falar de alguns dos instrumentos, também eles objectos pensados, usados para produzir outros objectos pensados, tal como algumas afirmações, seus significados e relações. Todos eles existem, num qualquer momento, porque foram criados e podem ser reconstituídos, mas isso apenas faz deles reais, não, necessariamente, reais empíricos.
Não estará confundindo os meios de produzir a coisa com a própria coisa?
Poderei estar enganado, mas já me tinha parecido que isto de dizer alhos, depois bogalhos e ainda nem alhos nem bogalhos era método recorrente usado neste sítio. Com esta discussão acerca da ciência e das suas definições ampla e restrita, antiga e moderna, veio um pouco mais ao de cima. Convinha, então, clarificar, porque leite estragado não é leite, nem fotão é electrão, nem hoje esteve nevoeiro é nevoeiro, nem energia é matéria, nem pensar é pensado, etc., etc.
JC (o tal que não é Cristo).
Murcho, mirrou de vez, desideratado com tanto enfado?
Traduzo, então, para formas mais banais e dar um ar mais descontraído à coisa.
O abstracto e o concreto são uma e a mesma coisa ou, sequer, da mesma natureza? Ah! O abstracto é mero concreto sem sujeito. Apesar desse pequeno hiato podem considerar-se a mesma coisa. Muito bem.
Então, chega-se ao abstracto a partir do concreto, retirando-lhe o sujeito (ou universalizando-o)! Mais frequentemente ou sempre? Sempre, pois então! Do concreto observado para o abstracto pensado. Não, do concreto observado para o concreto pensado (bem, ao menos, assim, ambos são concretos). Como poderia ser de outro modo? Ou o pessoal não parte sempre dos empecilhos concretos, os que lhe tramam a vida, para deles se desenvencilhar? Ou não é a utilidade que comanda a motivação? Engano-me ou já ouvi isso em qualquer lado, dito por um velho sábio de barbas.
Pela minha parte, gosto mais de outra versão. A de que blomas e cromas, relacionando-se por tromas dão como resultado dromas; e que sendo todos palermices abstractas, nada, mas mesmo nada empíricas e apenas pensadas (lá está, mas porque não poderão ser concretos pensados, também como dizia o outro?), e pensadas antes mesmo de conhecidos quaisquer sujeitos ou relações concretos de que sejam travestis, criadas por palermas sem mais nada onde gastar a vida, por vezes acabam por ser encontrados os sujeitos que lhe vistam a pele ou estabeçam relações similares. E, contudo, neste caso, as palermices abstractas foram inventadas e, portanto, conhecidas com primazia. Sorte do catano, não passa disso. Pois, por isso há quem jogue.
Se concreto não é abstracto, ou se abstracto é um outro concreto, um concreto pensado, travesti do primeiro, ou vice-versa, então, mesmo que sejam ambos concretos não são concretos da mesma qualidade. Neste caso haveria concretos de duas qualidades. E se a ordem por que são conhecidos não é exclusiva, por mais frequente que seja partir do concreto para o abstracto (ou para o concreto pensado), porquê negar a existência desta realidade dual e da primazia não exclusiva?
JC (que não é o Cristo nem tem crista).
a ciencia é a forma de como encontramos o resultado. é a maneira ou a medotologia utilizada?
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