Post convidado que antes foi publicado no Diário “As Beiras”. A propósito do centenário do nascimento de Miguel Torga, o texto de João Boavida sugere-nos a leitura e a viagem.
Cem anos são cem anos, e embora ainda não se saiba se é pouco ou muito, não sou indiferente a um poeta que marcou a cidade de Coimbra, desde que a conheço, para além da grande figura literária que é. Há duas ou três coisas que sempre admirei em Miguel Torga. Uma, talvez a que durante muitos anos foi a mais falada, tem que ver com a resistência no puro sentido da palavra. Foi um resistente de primeira qualidade; uma referência intelectual e moral que incomodava o regime salazarista, e era uma esperança para todos nós de liberdade política e de ressurreição cultural e social.
Mas em Miguel Torga agrada-me sobretudo a coerência da pessoa e a dimensão oficinal da obra. Tudo nele parecia coerente: a figura, como que ainda há pouco tirada da rocha, os lugares que habitava (os móveis do consultório, presos ao passado, a velha máquina de escrever e a sacrificada secretária cumprindo missão) e sobretudo o ar esforçado que transmitia. Sentia-se nele a eterna moral do trabalho com esforço, a grandeza humana do fazer e refazer incessantemente, o honrado labor do artesão insatisfeito que nunca acha a obra acabada. E a que a simplicidade dos livros e a desprotecção editorial e visual em que apareciam tornavam no símbolo de trabalho solitário, humilde, mas com o orgulho da sua humildade desprotegida mas forte. Sempre admirei os escritores que trabalham a palavra; só esses o são de facto, e Torga dava essa ideia (di-lo muitas vezes no Diário) e toda a obra o manifesta. Nada na sua escrita é espontâneo ou repentista; ou mesmo que o seja como intuição e inspiração, nunca a ideia dispensa o trabalho, o escopro, a plaina e a grosa de quem elimina o inútil, corta e alisa à procura da forma intuída no início, e tão difícil de alcançar.
O melhor dele é a escolha da medida certa, do equilíbrio (a regra de oiro de todo o artista) entre o simples e o complexo, o explícito e o implícito, o dito e o sugerido, essa forma ideal de que cada poema, ou conto, se deve aproximar o mais possível, mas que, como diz frequentemente, poucas vezes terá alcançado, para a sua insatisfação de artista. Torga sempre foi, neste domínio, um dos melhores exemplos da literatura portuguesa do século XX. É neste sentido uma poesia mais decantada que, por exemplo, a de Régio ou a de Nemésio, ou mesmo a de Sophia de Mello Breyner, seus contemporâneos; mais trabalhada, e por isso mais clássica. O que o afasta talvez dos gostos mais modernos da poesia, mas, como se sabe, nestas coisas não se deve correr a foguetes.
Além disso Torga insere-se como poucos (só Aquilino se lhe compara) na terra portuguesa, e acima de tudo, no Douro. Talvez não seja fácil apreciá-lo a partir de uma certa Lisboa que nunca viveu a emoção essencial e ancestral da largueza dos montes e do vento nas fragas; que o sabe da literatura mas não o sentiu com a dimensão que isso pode ter. Torga compreende-se como anseio do alto da Galafura, por exemplo; mais como anseio que como obtenção. Ali, naquela proa rochosa onde S. Leonardo toma com tristeza a barca que o leva à eternidade (é lindíssimo o poema, no volume IX do Diário, e voltado a Poente na parede da capela) quem, face à beleza, não sente uma ansiedade à procura de saída, pelo alto, mas se confronta também com a limitada condição humana? Foi este o seu combate, imagem pessoal da luta entre a desmesura da paisagem duriense e o amor do homem a dominá-la e a torná-la mais bela ainda. O grande tema de Torga é este, e duplo: a limitação do homem face ao mistério do Mundo, que o seduz, e a força frágil do artista face à ansiedade da criação, que procura sublimar.
S. Leonardo da Galafura
À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.
Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.
Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!
(Miguel Torga, in Diário IX)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
O corpo e a mente
Por A. Galopim de Carvalho Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
Cap. 43 do livro "Bibliotecas. Uma maratona de pessoas e livros", de Abílio Guimarães, publicado pela Entrefolhos , que vou apr...
6 comentários:
"Nada na sua escrita é espontâneo ou repentista; ou mesmo que o seja como intuição e inspiração, nunca a ideia dispensa o trabalho, o escopro, a plaina e a grosa de quem elimina o inútil, corta e alisa à procura da forma intuída no início, e tão difícil de alcançar."
Destaco esta passagem do texto de João Boavida, não só me parece caracterizar bem a obra de Torga como, num tempo de "refeições" rápidas como o actual, é uma máxima que deve ser difundida junto dos jovens. Pelos menos, dos artistas.
Existe a ideia generalizada que a obra de arte é resultado da inspiração súbita ou da iluminação instantânea do seu criador. Eu discordo dela. Não é que não haja grandes génios para quem (visto por nós, de fora) tudo parece fácil mas prefiro a ideia de que uma obra de arte são 10% de inspiração e 90% de suor, como princípio para um sólido alicerce. O valor da inspiração inicial pode ser enorme, mas também pode ser só mais uma ilusão. É curto como a manta que ou tapa pés ou tapa cabeça.
A valorização do esforço e a divulgação do seu mérito não é um dos apanágios do sistema de ensino porque, coitadinhas das crianças, para quê estar a aborrece-las tentando ensiná-las a contar e a escrever correctamente se elas já têm as calculadoras e o corrector do word.
Artur Figueiredo
A propósito do último parágrafo do comentário anterior, a ideia amplamente difundida de que o esforço não é boa "peça" ...convém lembrar que o sucesso não é obra do acaso, não é milagre e não se consegue sem muito trabalho, muita dedicação e muito esforço, ponto. Não incutir isto nas crianças desde a mais tenra idade, não é boa pedagogia, nem bom ensino.
Também há muito boa gente, no ensino e na pedagogia, que confunde sucesso escolar com sucesso educativo. E para muitos é tudo igual, mas na verdade, não é. O sucesso educativo, o tão desejado, é muitas vezes confundido com o sucesso Institucional (escolar), ou seja aquele que é identificado com a passagem de ano, de ciclo, de disciplina, a obtenção de um diploma, etc. Isto, como é óbvio, não significa que os alunos aprendam ou tenham grandes conhecimentos... Diria que não é deste sucesso que o país precisa, ou talvez precise para as estatísticas, mas não para o seu desenvolvimento. E, nem mesmo assim, à custa de tantas reformas e contra reformas e da panóplia de documentos e normativos que entopem a vida das escolas, o nível de insucesso baixou nos últimos dez anos, pelo contrário, a tendência é de um ligeiro aumento, com excepção para o 1º ciclo. Podemos confirmá-lo pelos dados estatísticos do INE de 2006 referente ao ano anterior. Isto só prova que defender a passagem administrativa ou automática (chamem-lhe o que quiserem) não resulta, nem à custa de tanto facilitismo (não só as calculadoras ou os correctores de word de que fala o comentador anterior)...
Só para completar a ideia que perdi no post anterior: em relação ao sucesso educativo, este é muito mais abrangente que o sucesso escolar. Refere-se a uma formação integral, do "homem todo".
Esta também é competência da escola, embora muitos defendam que não, que a escola só serve para transmitir conhecimento. A escola tem, entre muitas outras funções, a tranmissão conhecimentos, mas também a trasmissão de valores...
Esta ideia, da formação do homem inteiro, e não só intelectualmente, não é uma inovação do séc. XXI, é uma ideia que vem dos Gregos e que está presente na Paidéia Grega, e talvez não fosse má ideia tomámo-la como referência na nossa Educação. Penso que é essa a ideia que está presente em todas as orientações da OCDE, embora a nossa LBSE não lhe dê grande valor; pelo contrário, as ideias que repassam por lá são mesmo de que tudo vale, e todos os valores são relativos...
So podemos saber se uma criança foi bem preparada, segundo os cânones da educação total (ou integral), quando ela atingir a maioridade.
gug
http://grand-unification-blog-html.blogspot.com/
GUG - GRACELI GRAND UNIFICATION - Sinfonia Complet
Enviar um comentário