sábado, 21 de julho de 2007

Filosofia debaixo do Sol


"Há mais coisas nos céus e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia", declara Hamlet na peça de Shakespeare. Contudo, quando se aproxima o Verão português, é mais justo dizer que há mais filosofia debaixo do Sol do que sonham os nossos veraneantes. É uma ironia subtil que a imprensa cultural portuguesa reaja ao Verão armada de policiais, quando a filosofia nasceu há 2500 anos num país cujo clima estival é muito semelhante ao nosso: a Grécia. "Filosofia" e "Verão" não rimam, dizem-nos. Contudo, parecem não apenas rimar como ser congéneres.

Provavelmente, o obstáculo de maior monta à filosofia foi o contacto que todos tivemos com esta disciplina no ensino secundário e universitário, onde surge como uma espécie de história de ideias estouvadas proferidas enigmaticamente por personagens de ares tresloucados mortos há séculos. E é por isso que a máxima de que há mais filosofia debaixo do Sol do que sonham os nossos veraneantes é justa. Pois nunca houve tantos filósofos como hoje, e o panorama internacional em filosofia nunca foi tão estimulante; mas o nosso sistema de ensino comprou em contrabando a ideia de que a filosofia morreu — e acabou por matá-la. Pois morre a filosofia sempre que lhe retiramos a capacidade crítica para avaliar a autenticidade dos problemas, a justeza das teorias e a solidez dos argumentos, substituindo-a por jogos de palavras e de citações, associações de ideias infantis e falsas profundidades de astrólogo. Como não preferir a isto ao imperial e ao tremoço, à toalha e ao bronzeador, ao chinelo e ao colchão?

O que vem então a ser a filosofia, que deu os primeiros passos num clima estival como o nosso? Não é senão o estudo de problemas que podemos caracterizar como "conceptuais". A filosofia não é sociologia de café, nem psicologia especulativa, nem poesia em prosa. A filosofia ocupa-se de problemas para os quais não há métodos formais ou científicos de solução. Problemas como a natureza da existência e da verdade, do bem moral e do conhecimento; e problemas mais concretos como a eutanásia ou o aborto, os direitos dos animais ou a natureza da arte.

A cega mentalidade positivista conduz ao falso pensamento segundo o qual se um problema não tem solução científica, não vale a pena pensar nele, ou pelo menos não podemos pensar nele com rigor e seriedade, subtileza e elevação. Esta é outra forma de enveredar pela ideia já denunciada da morte da filosofia. A ironia é que este pensamento é já ele filosófico e não científico, e quem o profere ver-se-á grego para o defender, precisamente por não ter qualquer formação filosófica. É esta a inteligência que Deus nos deu, diz o poeta.

O coração da filosofia é a argumentação, e por isso o conhecimento da lógica, formal e informal, é uma condição sem a qual não é possível estudar filosofia. Não basta proferir um pensamento filosófico para ele poder ser aceite como moeda legítima; é preciso que esse pensamento resista ao nosso melhor olhar crítico. Que razões há em seu favor? E que razões há contra ele?

Tomemos um exemplo: a ideia muito popular de que "tudo é relativo". A filosofia liberta-nos do dogmatismo que consiste em repetir sem pensar que tudo é relativo só porque está na moda pensar que tudo é relativo. A filosofia permite-nos dar um passo atrás e olhar criticamente para os nossos preconceitos culturais. Que razões temos para pensar que tudo é relativo? E são essas razões também elas relativas? Mas nesse caso, tanto podemos aceitá-las como não as aceitar e portanto a ideia de que tudo é relativo não consegue desalojar a ideia contrária — que é a ideia de que algumas coisas não são relativas, e não a ideia plausivelmente falsa de que nada é relativo. Argumento e contra-argumento, exemplo e contra-exemplo — é este o coração da filosofia, que nos devolve o gosto pelo pensamento sem peias, pela tentativa inelutável de resolver problemas, melhorar teorias, encontrar argumentos. O que se pode perfeitamente fazer à beira-mar, conversando com outro ser humano. Ao Sol.

4 comentários:

Anónimo disse...

Desta feita, não se pense que o “desprezo olímpico” pela Filosofia aportou em praias lusitanas, como uma “medida luminosa” dos corifeus do ensino em Portugal. Trata-se de um plágio "démodé", apenas! Segundo Georges Gusdorf, autor da extensa e valiosa obra "Da História das Ciências à Historia do Pensamento", em meados da década de 60, do século das luzes, docentes da Faculdade de Medicina de Paris preveniam, "ex cathedra", a família e os interessados que a passagem por um estágio de Filosofia representava para os futuros médicos uma deplorável perda de tempo e de INTELIGÊNCIA (as maiúsculas são da minha responsabilidade). E isto é tanto mais insólito porquanto cientistas, honrados com o Prémio Nobel, deambularam com muito mérito pelas alamedas frondosas da amizade pela Sabedoria. Razão para Georges Gusdorg (atrás citado) nos dizer: "O fascínio tecnicista e cientista é um sinal dos tempos, cujas repercussões se fazem sentir na organização, ou antes na desorganização do ensino a todos os níveis". Em Portugal,em princípios deste século, mais que desorganização,trata-se de um verdadeiro crime ao ensino do racicínio lógico a que nem o tempo e a barreira dos Pirinéus serviu de cortina! Assim, neste extremo da Europa este facto, em que as reformas curriculares se sucedem vertiginosamente, conduziu, à desvalorização da Filosofia e ao seu compromisso com princípios éticos em contraponto a uma "Ciência sem Consciência" (Edgar Morin). E isto perante a complacência de um povo que reclama por tudo e por nada, e se cala em temas que jogam em desfavor da sua juventude. Louvavelmente, exceptua-se este artigo estival que se aplaude: o convívio coloquial ao sol e à beira-mar não deve servir de pretexto para esturricar os miolos com conversas desmioladas! (A chamada de atenção para este "statu quo" foi por mim desenvolvida anteriormente em extenso artigo de opinião, no Diário de Coimbra ,13.Fev.2006, intitulado "O Exame Nacional de Filosofia").

Anónimo disse...

Onde escrevi,"racicínio", devia ter escrito RACIOCÍNIO.

Desidério Murcho disse...

Caro Rui

Gostaria de ler o seu artigo, mas não o encontrei no Google. Será que poderia enviar-me por e-mail? Talvez até seja de divulgar aqui no DRN.

Tem razão em apontar o cientisto serôdio como uma das causas da desvalorização da filosofia no ensino. Mas no momento actual não é disso que se trata, pois é a mesma mentalidade que desvaloriza a química, a geografia e a matemática no ensino.

Anónimo disse...

Curioso é que Platão associe a Idéia do Bem ao Sol, que é aquilo que nos permite ver, ter conhecimento.

Diria então que se faça de "ao Sol" uma espécie de ordem: "ao Sol!"

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