domingo, 15 de julho de 2007

Bombas de mau cheiro

Entre os principais culpados de maus cheiros sortidos estão as aminas (compostos de azoto) e os compostos que contêm enxofre, selénio ou telúrio, para as quais possuímos um limite olfactivo baixo, isto é, detectamos mesmo em baixas concentrações, para alguns compostos de enxofre tão baixas quanto uma molécula num bilião.

Algumas aminas e os compostos contendo enxofre - com rarissimas excepções, os compostos de enxofre não se recomendam pela fragrância - estão entre os compostos mais pestilentos que existem. Por exemplo, duas diaminas muito simples, 1,4-diaminobutano e 1,5-diaminopentano, são mais conhecidas pelos seus nomes de «guerra», putrescina e cadaverina, respectivamente, sendo ambas resultantes da decomposição de aminoácidos e as principais responsáveis pelo cheiro que emana de cadáveres em putrefacção.

Para mim (e para o Guiness Book), os campeões do mau-cheiro são os compostos voláteis de enxofre (CVS), responsáveis, por exemplo, pela arma característica das doninhas - uma mistura de tióis de baixo peso molecular - pela halitose e mau hálito em geral - CVS formados pela acção da fauna microbiana da boca sobre proteínas - e pelo cheiro característico das fábricas de celulose - desta vez compostos de enxofre produzidos pelo processo de sulfatação da pasta de papel.

Embora pessoalmente discorde do campeão absoluto que o Guiness escolheu, o etanotiol adicionado em ppbs (partes por bilião) ao gás de cidade e garrafa para se detectar fugas dos de outra forma inodoros propano e butano, considero os tióis, compostos análogos aos alcoóis com enxofre em vez de oxigénio, verdadeiros campeões do mau cheiro.

De facto, todos os tióis (do grego theion, enxofre), também conhecidos como mercaptanos (de mercurium captans, uma vez que o enxofre reage com o mercúrio sendo ainda hoje uma forma de neutralizar este metal líquido), com que trabalhei, do metanotiol (o tiol de mais baixo peso molecular), com o seu cheiro inconfundível a couves podres, ao tiofenol, a essência pura e concentrada do que emana de pneus queimados, são pestilentos. São ainda especialmente desagradáveis porque para além do mais o cheiro é muito persistente, "agarrando-se" a tudo, do cabelo à roupa, permanecendo uma sensação (mal)odorífera muitas horas após a barrela mais completa.

Mas nem todos os compostos de enxofre estão associados a mau cheiro, existindo excepções como os derivados de furfuril-mercaptano, alguns encontrados no agradável cheiro a café torrado. Aliás, existem alguns compostos de enxofre insuspeitos em muitas notas fragrantes de alimentos sortidos , ilustradas neste artigo (em formato pdf).

De igual forma, os dois tióis nesta figura (os que apresentam o grupo SH) distinguem-se dos seus primos pelo facto de apresentarem um agradável odor frutado: o segundo é conhecido como o mercaptano da toranja e o primeiro é mesmo utilizado na indústria alimentar como aditivo, concedendo sabor a fruta, especialmente goiaba e maracujá. O último, um sulfureto de alilo, embora pestilento em concentração elevada, tem os seus admiradores, sendo um dos principais responsáveis pelo cheiro característico do alho.

De facto, todos os integrantes do género Allium, que inclui cerca de 1250 espécies constantes na sua maioria da farmacopeia tradicional de inúmeras culturas, são conhecidos pela sua pungência, concedida essencialmente por compostos de enxofre.

Os mais utilizados membros deste género, o alho (Allium sativum) e a cebola (Allium cepa), são espécies que se conhecem desde épocas remotas, existindo indicações do seu consumo por caldeus, gregos e romanos (embora tenha sido banido dos templos destinados à deusa Cibele, o alho era consumido em doses massivas como forma de protecção pelos legionários). No antigo Egipto ambos eram muito utilizados na alimentação e medicina e a cebola, associada a mitologias sortidas, integrava o quotidiano religioso, sendo omnipresente por exemplo na mumificação. De igual forma, o alho foi quasi universalmente utilizado como forma de protecção contra demónios, espíritos e mau-olhado (e depois de Bram Stoker como a mais poderosa arma anti-vampiros...).

Todos conhecem o efeito lacrimejante da cebola, ou mais concretamente, do propanotial-S-óxido que tem origem no ácido propenilsulfénico formado por enzimas chamadas alinases a partir do sulfóxido do aminoácido cisteína. Este esquema explica porque razão podemos triturar, cortar e manipular alho à vontade, sem choros mais ou menos convulsivos, uma vez que este não apresenta a enzima «sintase do factor lacrimogéneo» e assim o ácido propenilsulfénico converte-se no odorífero tiossulfinato sem resquícios de lágrimas.

Recordo um festival (mais concretamente o cheiro) do alho em Gilroy, Califórnia, onde toda a comida disponível era confeccionada com alho, do gelado às batatas fritas, mas tal como nem todos os povos se converteram no passado às delícias gastronómicas do que chamavam «rosa fétida», nos primórdios do século XX era comum nos Estados Unidos chamar depreciativamente ao alho «baunilha do Bronx» ou «perfume italiano».

Como diz Garcia de Orta no sétimo dos seus «Colóquios dos Simples», A cousa que me mais mal cheira do mundo he assa fetida; e nos bredos não me cheirou mal; e não vos maravilheis muito disso, que a cebolla e o alho tem muito mão cheiro, e os comeres adubados com ellas muito bom.

Da assa fétida (Ferula assafaetida ou Esterco-do-Diabo), a campeã do mau cheiro para Orta, igualmente rica em compostos de enxofre, refiro apenas que o cientista sobre esta planta, associada na Idade Média à conjuração de demónios sortidos, afirma ser utilizada (certamente não como afrodísiaco de efeito nasal) para «levantar o membro» e para as «festas de Vénus» (artigo em pdf sobre as mezinhas utilizadas no Brasil colonial para «desenfeitiçar» o berço da criação).

2 comentários:

Anónimo disse...

A todos,

Com muita satisfação digo que este post da Palmira é uma excelente lição de química orgânica. Não só pelos conceitos que aborda mas fundamentalmetne pela forma como são apresentados. É informativo, instrutivo, rigoroso e bastante apelativo. Além das difinições necessárias dos termos, das reacções químicas envolvidas, recorre à história para ensinar química (uma disciplina em decadência), de resto, uma estratégia que me parece muito apropriada e da qual sou adepta. Como poderemos testemunhar, não é difícil ler este texto, nem antipatizar com as palavras menos comuns a nós, porque elas estão relacionadas com o que conhecemos, com o que nos rodeia. À partida suscita logo a nossa curiosidade, direi eu. Recomendo, vivamente, esta táctica/exemplo aqui bem sublinhado, aos professores de todos os graus de ensino. Ou seja, conjugar a ciência com a sua perspectiva humana e histórica será uma forma de nós (leigos, alunos, professores...) nos equiparmos cultural e intelectualmente.

Maria Elvira Callapez

Palmira F. da Silva disse...

Olá Elvira:

Muito obrigado pela apreciação :-)

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