Aquele único exemplo
de fortaleza heróica e de ousadia,
que mereceu, no templo
da eternidade, ter perpétuo dia
o grão filho de Thétis, que dez anos
flagelo foi dos míseros Troianos;
não menos ensinado
foi nas ervas e médica notícia
que destro e costumado
no soberbo exercício da milícia:
assi qu’as mãos que a tantos morte deram,
também a muitos vida dar puderam.
(...)
O fruto daquella Orta onde florecem
Prantas novas, que os doutos não conhecem.
Olhai que em vossos annos
Produze huma Orta insigne varias ervas
Nos campos lusitanos,
As quaes, aquellas doutas protervas
Medea e Circe nunca conheceram,
Posto que as leis da Magica excederam
Excerto do poema «Aquele único exemplo», Ode VIII, de Camões ao Conde de Redondo, Vice-Rei da Índia. O poema é uma homenagem ao livro de Garcia da Orta «Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da India, e assi dalgumas frutas achadas nella, onde se tratam algumas cousas tocantes a medicina prática, e outras cousas boas pera saber», já referido pelo Carlos.
Já por diversas vezes temos abordado o método científico no De Rerum Natura. Mas poucos saberão que um dos pais do método científico e por conseguinte um dos precursores da ciência moderna é o português Garcia d’Orta.
Garcia d’Orta nasceu em Castelo de Vide entre 1499 e e os primeiros anos do século XVI, filho de Fernão (Isaac) d'Orta, cristão novo, e Leonor Gomes. Frequentou as Universidades de Salamanca e Alcalá de Henares, onde Antonio Martínez de Calá, conhecido como Antonio de Nebrija, leccionou a primeira cadeira de Botânica da Península Ibérica.
Por influência de outro grande nome da ciência nacional, Pedro Nunes, de quem foi colega em Espanha, e de seu tio Francisco da Orta (igualmente médico), conseguiu concretizar uma das suas ambições, e ingressou no corpo docente da Universidade de Coimbra em 1530. Mas em 1534, quiçá temendo a Inquisição que expulsara o pai de Espanha - pelo édito de 31 de Março de 1482 dos Reis católicos - e a concomitante perseguição aos cristãos-novos, que já se esboçava, ou talvez porque como afirmou nos colóquios «Tenho grande desejo de saber das drogas medicinais e destoutras mezinhas simples (...) assi queria saber como usão dellas os físicos indianos, e também queria saber dalgumas outras plantas e fruitas desta terra», partiu para a Índia ao serviço do seu «amo e amigo», o capitão-mor Martim Afonso de Sousa a quem os Colóquios são dedicados.
O capitão-mor regressa a Portugal no final de 1538, mas Garcia de Orta permanece na Índia porque os seus receios se tinham entretanto concretizado e a Inquisição tinha sido estabelecida em Portugal dois anos antes, pela bula de Paulo III Cum ad nihil magis, de 23 de Maio de 1536. A 5 de Outubro do mesmo ano foi nomeado Inquisidor-mor Diogo da Silva, que lestamente deu início à expectável perseguição de cristãos novos e demais hereges, que atingiu duramente a família do cientista português num dos períodos mais negros da nossa História. O Marquês de Pombal, que aboliu a distinção entre cristão-velhos e cristãos-novos, entre canarins e europeus na Índia e promulgou a abolição da escravatura na metrópole, acabou igualmente com os autos de fé inquisitoriais, com a única excepção de Malagrida. Os autos de fé regressaram brevemente depois da queda em desgraça do marquês verificada após a morte de D. José I e da ascensão ao trono de D. Maria I, que pretendeu «reparar as ofensas do reino a Deus». Os últimos autos de fé em território nacional realizaram-se em 1781, tendo sido queimadas neste período dezassete pessoas em Coimbra e oito em Évora.
Garcia d'Orta viveu cerca de 34 anos na Índia, primeiro em Goa, como professor e médico do Hospital Real, depois em Bombaim. Mas viajou por todo o país, estudando e coleccionando produtos naturais, que reuniu no seu «jardim dos simples», e adquirindo conhecimentos inestimáveis com especialistas locais.
A obra que o tornou famoso em toda a Europa - os cinquenta e sete Colóquios com informações fundamentais para a medicina, botânica, química, farmacologia e biologia -, foi escrita em língua portuguesa na forma de um diálogo entre o Doutor Ruano, um médico tradicional recém-chegado da Península Ibérica, e o próprio Orta, que simboliza no livro o cientista crítico, que refuta com dados experimentais os argumentos de autoridade, extraídos dos clássicos, esgrimidos pelo primeiro. Ou, como Orta escreve no Colóquio nº9, «Não me ponhais medo com Dioscórides nem Galeno, porque não hei de dizer senão a verdade, e o que sei». Nos Capítulos são descritos fármacos orientais, alguns utilizados na Europa mas cuja origem era desconhecida, com especial incidência naqueles de origem vegetal, constituindo o primeiro registo científico de plantas do Oriente feito por ocidentais.
A edição original indo-portuguesa teve uma circulação muito limitada e praticamente desapareceu graças às boas obras do Santo Ofício. O botânico flamengo Charles de L'Escluse ou Carolus Clusius, que adquiriu o livro numa visita a Portugal em 1564, foi o grande divulgador de Orta. Clusius traduziu para latim e publicou em 1567 numa versão resumida e anotada dos Colóquios, a que chamou Aromatum et Simplicium aliquot medicamentorum apud Indios nascentium historia, versão que foi amplamente divulgada por toda a Europa. Em Portugal, a obra de Orta foi reeditada em português no séc. XIX pelo Conde de Ficalho.
O braço da Inquisição chegou formalmente à Índia em 1565 - Francisco Xavier tinha apelado a Loyola para instalar a Inquisição em Goa - mas mesmo sem Inquisição formal, o médico Jerónimo Dias foi acusado de judaismo e condenado à morte pela fogueira em 1543. Ano em Orta participou na autópsia de uma vítima duma epidemia de cólera que grassava à época, a primeira realizada em Goa, tendo aliás feito a primeira descrição (europeia) da cólera asiática.
O prestígio de Orta poupou-o em vida da sanha persecutória do Santo Ofício da Inquisição, mas não o defendeu - nem à sua família, que já tinha sido repetidamente visada por esta instituição -, depois de morto.
Em 28 de Outubro de 1568, uns meses depois da morte do irmão, Catarina d'Orta foi presa pela Inquisição, condenada à morte pela fogueira e a sentença executada em 25 de Outubro de 1569. Mas a Inquisição não estava satisfeita. Num auto-de-fé de 4 de Dezembro de 1580, Garcia d'Orta foi condenado post-mortem por judaísmo, os seus restos mortais foram exumados e os seus ossos queimados na fogueira.
sexta-feira, 4 de maio de 2007
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10 comentários:
Muito bom post. Não sabia que um dos pais do método cienntífico era português. Nem que a Inquisção tinha queimado Garcia da Orta post mortem.
O De rerum Natura é mesmo um blog de serviço público :)
O post é realmente interessante. Mas tenho uma dúvida. Escreve-se que o dito "ingressou no corpo docente da Universidade de Coimbra em 1530". É mesmo? Isso não coincide com o que julgo saber sobre as mudanças do "Estudo Geral" entre Lisboa e Coimbra nesse século. Mas posso estar a fazer confusão, porque não tenho aqui à mão meio de fazer uma confirmação.
Eu tb tive essa dúvida, até porque foi em 1537 que a Universidade, então única, muda de vez de Lisboa para Coimbra, para o Paço Real da Alcáçova. mas como a instituição original permanece, a UC, achei por bem não pôr Universidade de Lisboa, que data de muito mais tarde
Parece haver um erro no antepenúltimo parágrafo, onde se diz que «Francisco Xavier tinha apelado a Loyola para instalar a Inquisição em Goa». Creio que em vez de «Loyola» deve dizer-se «D. João III».
Alef
Segundo o Instituto Português do Livro e da Biblioteca, Francisco Xavier pediu a Loyola para que intercedesse junto do papa pela "benesse" - uns bons anos antes, claro,Loyola morreu quase 10 anos antes da chegada oficial da inquisição à Índia.
Coisas lindas, de outros tempos.
Hoje, chegam a Ministras da Educação (?) répteis deste calibre, e toda a gente acha natural. É o chamado Clima... Independente
Vá ver,se não acredita...
http://www.youtube.com/watch?v=W9mU22TOLfs
Parece-me estranho o dado que a Palmira cita. Em nenhuma das cartas de Francisco Xavier a Inácio de Loyola vejo isso. O que vejo, sim, é tal pedido a D. João III. Depois, há dois aspectos a ter em conta:
a) Inácio de Loyola não tinha qualquer poder para instalar a Inquisição onde quer que fosse. Curiosamente, tinha sido prisioneiro da Inquisição. Agora a Palmira acrescenta um dado novo: fala em intercessão junto do Papa, mas também não encontrei isso nas suas cartas.
b) Em 16 de Maio de 1546, estando na ilha de Amboina, Francisco Xavier escreveu uma carta ao rei D. João III, onde dizia que «a segunda necessidade que a Índia tem para que sejam bons cristãos os que nela vivem [antes tinha falado da necessidade de pregadores], é que mande Vossa Alteza a santa inquisição [...]».
Uma vez instalada, a Inquisição em Goa parece ter sido particularmente violenta contra os «cristãos-novos»/judeus, a ponto de provocar protestos escritos de alguns missionários, como é o caso de Matteo Ricci, o famoso continuador de Francisco Xavier que, ao contrário deste, conseguiu entrar na China.
Alef
Caro Alef:
A única pessoa de História da família é uma das minhas irmãs mas de qualquer forma tento recolher informação das fontes mais credíveis. Como referi, o Instituto Português do Livro e da Biblioteca (Ministério da Cultura) mais concretamente o Centro de Documentação de Autores Portugueses faculta essa informação.
A minha fonte: San Francisco Javier, Cartas y escritos, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1983 (edição completa segundo a edição crítica). A citação é da página 211.
Alef
Eu gostei do seu escrito sobre a Inquisição, tema sobre o qual muitos estão a escrever sem ir às fontes. Estou mais interessado na Inquisição em Goa, em que você deu alguns detalhes. É verdade que São Francisco Xavier, em 1545 numa carta a D. João III de Portugal, pediu que fosse instalada a Inquisição em Goa. Eu gostaria de ter mais informações sobre este assunto. Foi também contra os hindus? ou somente contra os cristãos novos e judeus? Espero aprender mais sobre a Inquisição em Goa.
Parabéns e obrigado.
Dr.Ivo da C. e Sousa (Goa, Índia)
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