Minha coluna no último JL:
Na História Global de Portugal (Temas e Debates e Círculo de
Leitores, 2020) que coordenei com os historiadores José Eduardo Franco e José
Pedro Paiva, escrevi uma entrada intitulada «1614 - A Revolução Científica
chega a Ásia», onde dei conta da recepção que se deu na China das primeiras
observações astronómicas de Galileu com o telescópio realizadas apenas cinco
anos antes. Protagonista maior foi o jesuíta português Manuel Dias (1574-1659),
natural de Castelo Branco e entrado na China em 1610, que escreveu Tiean wen
Lue (Sumário de Questões sobre o Céu), uma obra em mandarim na qual
eram descritas as referidas observações. O início da transferência da ciência moderna
para o Império do Meio tinha-se devido a um outro jesuíta, o italiano Matteo
Ricci (1552-1610), que chegou à China, por Macau, em 1582, depois de ter
aprendido português em Coimbra. O segredo do seu êxito foi a aprendizagem do
mandarim e a adopção dos usos e costumes locais. Só em 1601 Ricci consegui
chegar à corte imperial, entregando ao imperador Wanli, um mapa-múndi, um atlas,
um relógio mecânico e instrumentos de óptica. Estava inaugurado um fértil
período de intercâmbio científico entre Oriente e Ocidente.
Um livro recente conta a história extraordinária de um outro jesuíta
português na China, cuja estada asiática foi posterior à de Manuel Dias: Tomás
Pereira (1645–1708), natural de São Martinho do Vale (Vila Nova de Famalicão),
formado em colégios jesuítas de Braga, Coimbra. Goa e Macau, onde chegou em
1672. Por necessidade de concisão, apenas lhe fiz uma breve referência na minha
entrada da História Global de Portugal. Mas ele merece mais, pelo papel
pioneiro que desempenhou na chegada à China da música ocidental e, portanto, na
globalização da arte musical desenvolvida na Europa. Vários termos musicais em
mandarim foram cunhados por ele. O livro intitula-se Tomás Pereira e o
Imperador Kangxi. Um diálogo entre a China e o Ocidente (Guerra & Paz,
2022). É sua autora Tereza Sena, historiadora que trabalha no Centro Científico
e Cultural de Macau (vale a pena visitá-lo na Rua da Junqueira, em Lisboa) e
que, para o escrever, trabalhou como investigadora convidada da Universidade de
São José, uma instituição de ensino superior em Macau que funciona em parceria
com a Universidade Católica Portuguesa. O livro, baseado num rol bibliográfico extenso,
com fontes manuscritas (guardadas no Vaticano e em Portugal), fontes impressas
e fontes on-line, exibe alguma liberdade literária. A autora chamou-lhe
«narrativa histórica». As citações surgem em itálico. Não teria sido preciso sublinhar
algumas partes do texto a negrito pois não só o assunto é interessante como a
escrita é viva.
Tomás Pereira, cujo nome de baptismo era Sancho, ingressou na Companhia de
Jesus em 1663, em Coimbra, nessa altura um dos maiores centros dos jesuítas no
mundo (havia dois colégios próximos, o de Jesus e o das Artes). Deve ter
acompanhado nessa cidade o processo inquisitorial contra o Padre António
Vieira, também ele jesuíta, já que a reclusão domiciliária deste ocorreu em
1665. Mas já não ouviu a sentença condenatória, lida dois anos depois, pois
embarcou na carreira da Índia para Goa em 1666. Mal chegado a Macau, foi
chamado pelo imperador, que o queria em Pequim, para aproveitar os seus
conhecimentos científicos e musicais. O livro começa com o «1.º andamento
(Adagio)» da parte I - Ouverture (repare-se na cadência musical da
narrativa) precisamente com a descrição do cortejo, encabeçado por dois
emissários imperiais e escoltado por 500 soldados, que por rios, montes e vales
levaram o padre até ao Palácio na Cidade Proibida de Pequim. O seu título era Kiú
Ciú Cin Kim, «honrado e seleccionado pelo imperador».
Quem era o imperador? De origem manchú, Kangxi (1654-1722) foi, em toda a
história chinesa, o que reinou mais tempo: tendo subido ao trono com sete anos,
ocupou-o durante 61 anos (tinha 18 quando chamou Tomás Pereira). Conquistada a
confiança mútua, Kangzi e o Padre Pereira tornaram-se inseparáveis. Foi decerto
graças ao esse bom entendimento que Kangxi proclamou, em 1692, o Édito da
Tolerância, que permitia aos chineses a conversão à fé cristã. Um outro
jesuíta que ganhou as boas graças do imperador foi o flamengo Ferdinand
Verbiest (1623-1688), que conseguiu provar a superioridade da astronomia
ocidental em relação à astrologia chinesa. Foi, por isso, nomeado director do
Observatório Astronómico de Pequim e do Tribunal das Matemáticas, cuja missão
era estabelecer o calendário com base nos eventos astronómicos. Como todos os
outros missionários na China nessa época, Verbiest tinha partido de Lisboa,
tendo chegado a Macau, via Goa, em 1658. No período em que Kangxi era menor e o
governo era assegurado por regentes, Verbiest foi aprisionado e julgado, na
companhia de um jesuíta mais velho, astrónomo como ele, Johann Schall von Bell
(1591- 1666). Os dois foram condenados à pena capital, mas acabaram por ser
perdoados, devido a um terramoto que foi interpretado como um sinal redentor.
Quando Kangxi ganhou poder efectivo, tudo mudou na relação com os jesuítas. Contudo,
em 1712, o papa Clemente XI, contra a opinião dos inacianos, publicou um
documento que proibia aos cristãos chineses participar em cultos dos seus
antepassados. O imperador abandonou a tolerância religiosa ao interditar, em
1721, as missões católicas na China.
Quando Verbiest faleceu, o Padre Pereira esteve para ser seu sucessor à
frente do Observatório Astronómico, mas aceitou o cargo apenas interinamente,
com um confrade francês, até que um italiano mais habilitado regressasse da
Europa. A carreira de Pereira atingiu o auge em 1689 quando foi um dos dois
jesuítas designados por Kangxi para negociarem com o Império Russo o Tratado de
Nerchinsk, que delimitou as fronteiras entre os dois países. O Tratado foi
discutido e assinado em latim, língua que os jesuítas dominavam, por falta de
intérpretes russo-mandarim. Alcançando o acordo, os enviados de Moscovo
mandaram servir doces, um dos quais – o mais saboroso! - um pão de açúcar da
ilha da Madeira. Tudo isto está contado no livro de Tereza Sena, que se lê com
muito agrado.
1 comentário:
Agradeço a referência e o seu contributo para uma maior divulgação da figura de Tomás Pereira, cujo conhecimento praticamente se circunscreve aos círculos de especialidade. Aliás, foi esse o objectivo do livro, uma iniciativa que partiu da Embaixada de Portugal em Pequim, no tempo do Senhor Embaixador José Augusto Duarte, prontamente acolhida pela Universidade de S. José, de Macau, como é de justiça sublinhar.
Cordialmente,
Tereza Sena
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