sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

FAZER O SOL NA TERRA: UMA BREVE HISTÓRIA


Meu artigo no último JL (na figura de cima as reacções nucleares no Sol):

Desde que os seres humanos existem sobre a Terra que vêem o Sol - a grande fonte de energia do nosso planeta – e as outras estrelas. No entanto até há cerca de cem anos, ninguém fazia ideia como é que o Sol ou as outras estrelas produzem a tremenda energia que irradiam. Dada a potência em jogo, não podia ter origem em combustões normais, que são reacções químicas.

Na origem da energia das estrelas estão reacções nucleares, que são um milhão de vezes mais energéticas que processos químicos. O núcleo atómico só foi descoberto em 1911 pelo físico nascido na Nova-Zelândia Ernest Rutherford, tendo sido ele o primeiro a produzir as primeiras reacções nucleares, isto é, a concretizar transformações de núcleos atómicos, conseguindo de certo modo o sonho alquímico de produzir elementos químicos a partir de outros. Foi o astrónomo inglês Arthur Eddington, o mesmo que tinha estado presente na ilha do Príncipe em 1919 para comprovar o encurvamento de raios de luz perto do Sol previsto por Albert Einstein, que, no ano seguinte, sugeriu a ocorrência no interior das estrelas de reacções de fusão de núcleos leves para explicar a espantosa energia das estrelas.

 Os núcleos, sabemos hoje, são constituídos por protões, partículas carregadas positivamente (foi o próprio Rutherford o primeiro a reconhecê-lo em 1919), e por neutrões, partículas semelhantes aos protões, mas sem carga, que foram descobertas pelo inglês James Chadwick em 1932. O núcleo mais simples é o do átomo de hidrogénio, o primeiro elemento da Tabela Periódica, que só tem um protão; o segundo núcleo mais simples é o do hélio, que tem dois protões e dois neutrões; e o terceiro é o do lítio, agora tão falado por causa da sua aplicação em baterias, que tem três protões e três neutrões. A aproximação de núcleos atómicos é dificultada pela enorme repulsão eléctrica entre os protões. É preciso que eles fiquem suficientemente próximos para que as forças nucleares fortes, que são as responsáveis pela coesão dos núcleos, entrem em acção.

Foi um físico russo brincalhão, George Gamow, o autor das Aventuras do Senhor Tompkins, quem explicou em 1928 que era possível que dois protões chegassem muito perto um do outro, através do chamado «efeito túnel». Por essa altura já tinha ficado na sua forma actual a teoria quântica que explicava esse processo, proibido pela física clássica. Conhecida, portanto, a estrutura do núcleo atómico e conhecida a teoria que regula o seu comportamento, estava aberto o caminho para fazer o Sol na Terra, isto é, imitar no laboratório os processos que no coração do Sol são os responsáveis por o manter aceso.

A primeira demonstração experimental da fusão nuclear foi realizada em 1932, pelo australiano Mark Oliphant no Laboratório Cavendish da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, dirigido por Rutherford. Num dos primeiros aceleradores nucleares, mandou deutério – uma forma estável do hidrogénio, cujo núcleo é constituído por um protão e por um neutrão e é, por isso, mais pesado do que o hidrogénio normal - contra vários alvos. Descobriu assim o trítio, que é uma forma instável do hidrogénio (o seu núcleo contém um protão e dois neutrões), e o hélio-3, uma forma estável, mas muito rara, do hélio (o seu núcleo tem dois protões e um neutrão; a forma comum do hélio, o hélio-4, tem dois protões e dois neutrões). Ora um dos passos na cadeia de processos que leva à transformação do hidrogénio em hélio-4 no Sol é precisamente a reacção do deutério com protão que dá hélio-3 (Fig. 1). É necessário, para isso, haver deutério.

Há no Universo algum, proveniente das reacções de fusão que ocorreram no Big Bang, mas não chega: é preciso que o próprio Sol o fabrique. Um primeiro passo das reacções de fusão nuclear no Sol é a colisão de dois protões para produzir deutério: nesse processo um dos protões transforma-se num neutrão, uma transição lenta proporcionada por uma outra força nuclear, a força nuclear fraca. Depois do deutério ter originado hélio-3, produz-se hélio-4 no Sol por meio da colisão de dois hélios-3, que liberta dois protões. Foi o norte-americano nascido na Alemanha Hans Bethe que, em 1939, descobriu o mecanismo de produção de energia solar, o que lhe valeu o Nobel da Física de 1967. O Sol precisa de quatro protões para obter um núcleo de hélio-4. A célebre fórmula E= mc^2 de Einstein explica o ganho de energia: o núcleo de hélio-4 tem menos massa do que os quatro protões isolados, pelo que a diferença de massa surge como energia libertada.  O interior do Sol está à temperatura de 15 milhões de graus Celsius, um verdadeiro inferno.

A Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939, terminou, como é sabido, com a explosão de duas bombas atómicas: mas nestas dão-se processos de cisão nuclear e não de fusão. Núcleos mais pesados como o de urânio libertam energia quando se partem, ao contrário dos núcleos leves, que libertam energia quando se juntam. A energia de fusão é tipicamente superior à de cisão. No pós-guerra começaram as aplicações. Foi relativamente fácil construir reactores nucleares de cisão, usando reacções nucleares para produzir energia («átomos para a paz» era o lema), mas revelou-se bastante difícil o aproveitamento da energia de fusão. 

Na União Soviética, os físicos Andrei Sakharov e Igor Tamm, o primeiro notabilizado pela sua corajosa luta em prol dos direitos humanos, propuseram em 1950 um dispositivo para produzir reacções de fusão com a forma de um donut, ao qual foi dado o nome de tokamak, usando um acrónimo russo. Neste aparelho são usados intensos campos magnéticos para manter um plasma de átomos leves (plasma é um estado da matéria em que alguns electrões estão desligados dos núcleos atómicos devido a temperatura e pressões elevadas). Operar um tokamak não é fácil, devido à sua instabilidade. Só em 1958, em plena guerra fria, foi construído um na União Soviética. Nesse mesmo ano, no Lawrence National Laboratory - LANL, na Califórnia, Estados Unidos, foi realizada pela primeira vez a fusão nuclear controlada numa máquina de design algo diferente designada por Scylla, do nome de um monstro da mitologia grega, que, alimentada a deutério, atingiu os 15 milhões de graus Celsius.

A fusão nuclear pode ser descontrolada, isto é, explosiva. A primeira bomba de hidrogénio foi detonada pelos Estados Unidos em 1952, num atol das ilhas Marshall no Pacifico. Nessa bomba, combina-se um processo de cisão (recorrendo a urânio ou plutónio) com um de fusão, uma vez que é preciso desencadear a ignição dos núcleos leves. Foi usada uma mistura de deutério e trítio, que dá hélio 4, libertando um neutrão (Fig. 2). O deutério é fácil de obter (o hidrogénio existe na água e um em cada 6600 átomos de hidrogénio é deutério), ao passo que o trítio é produzido no sítio bombardeando lítio com neutrões, o que dá hélio-3, para além de trítio. Os actuais arsenais nucleares possuídos pelos Estados Unidos, União Soviética, França, China, etc. são de bombas de hidrogénio, isto é, deutério e trítio.

No lado da utilização pacífica para produção de energia, os tokamaks generalizaram-se. Há mais de 200 em todo o mundo, um dos quais em Lisboa. Existe um projeto europeu com esse design, o Joint European Torus - JET, perto de Oxford, no Reino Unido, onde em Fevereiro passado se atingiu durante cinco segundos a potência recorde de 11 megawatts.

Actualmente está em construção o maior tokamak do mundo, o International Thermonuclear Experimental Reactor - ITER, um projecto em que entra a União Europeia (Portugal é, por isso, participante), o Reino Unido, a Suíça, os Estados Unidos, a Rússia, China, o Japão, a Índia e a Coreia do Sul. Trata-se de um dos maiores projectos científicos de sempre, sendo notável que envolva potências rivais (apesar da guerra na Ucrânia, a  participação da Rússia permanece) na tentativa de demonstrar a viabilidade de reacções de fusão para aplicação comercial. Foi, em 2003, escolhido o sítio de Cadarache, perto de Marselha, no Sul de França, tendo a construção começado em 2007. O projeto tem-se, porém, atrasado, em boa parte por dificuldade de financiamento. Deverá haver testes de plasmas já em 2025, mas a sua ignição em pleno não será antes de 2035. Fazer o Sol na Terra demorará ainda algumas décadas. Também no ITER vai ser usada uma mistura de deutério e trítio: a reacção é semelhante à do Sol, mas não igual.

Em 13 de Dezembro foi anunciado que, na National Ignition Facility – NIF, um projecto iniciado em 1990 no LANL, tinha sido conseguido pela primeira vez um ganho de energia numa reacção de fusão, isto é, saiu mais energia do que aquela que entrou no sítio da «combustão» nuclear:  entraram dois megajoules e saíram três megajoules. No entanto isso só aconteceu durante uma fracção de segundo e foi preciso um gigantesco laser de infravermelhos, que é energeticamente muito ineficiente (só dá à saída um por cento da energia que entra a partir da rede eléctrica). 

O laser alimenta 192 feixes que incidem num minúsculo alvo esférico com uma mistura de deutério e trítio, cuja temperatura chegou a 150 milhões de graus, dez vezes mais do que no centro do Sol. Foi uma demonstração decisiva, pois uma coisa é a teoria prever a libertação de energia e outra é medir a energia libertada numa experiência real. Nos tokamaks, que lidam com quantidades maiores de plasma, não se tinha ainda verificado o ganho de energia.

A fusão num tokamak parece ser mais adequada à produção de energia numa central do que a fusão a laser. O ITER pretende concretizar o sonho de ter uma fonte de energia, em que o «combustível» é virtualmente ilimitado e que não tem nem o problema da emissão de gases de efeito de estufa nem o da produção de resíduos radioactivos de longa duração. O seu objectivo é produzir 500 megawatts à custa apenas de 50. É uma espécie de Santo Graal que os cientistas e engenheiros perseguem em nome da Humanidade.

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

É um prazer demorado ler explicações tão bem elaboradas como esta do Carlos Fiolhais que, apesar de serem sobre matérias de grande especificidade teórica e científica, permitem fazer alguma ideia das vantagens da sua aplicabilidade. Fiquei a saber bastantes coisas que me permitem deduzir muitas outras, como por exemplo que existem reações químicas e reações nucleares (de cisão e de fusão). E dá para perceber claramente que todo o conhecimento não tem valor até ao momento em que é posto em prática. Então penso e sugiro: se achas que tens conhecimentos que podem ter valor, não deixes de os por em prática.

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A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...