Na continuação de textos anteriores (aqui, aqui e aqui), reproduzo a quarta e última pergunta que um grupo de estudantes do Mestrado em Ciências da Educação da Universidade de Coimbra me colocou:
Como pode a educação assumir um papel de transformação da sociedade?
A minha resposta a esta pergunta vem na sequência do que disse antes.
Ao contrário do que vemos sistematicamente afirmado, a educação escolar pública não pode, não deve seguir directa e linearmente as necessidades, os interesses pontuais e urgentes de toda e qualquer sociedade e muito menos de sectores da sociedade que assumem o poder de a transformar no sentido que lhe é mais conveniente.
A educação escolar pública deve formar pessoas capazes de viver em sociedade em função de valores éticos universais. Se fizer isso, poderá esperar, sem ter a certeza, de que a sociedade possa ser transformada no sentido que esses valores indicam.
Mas, para isso, terá de abandonar a linha mercantilista que deixou instalar, com a conivência política e, também social, ou seja, nossa. Linha derivada de um neoliberalismo desgovernado cujo intento é obter, a partir dos sistemas educativos públicos, produtores-consumidores, e “capital humano”. Devo lembrar que linha diferente guardam os mentores desta “transformação” para as suas crianças e jovens, que confiam a escolas de elite.
Não vejo que a “transformação” desta “transformação em curso” nos sistemas educativos públicos, que tem sido operada desde há mais de meio século, possa acontecer a curto prazo pois as estratégias de marketing usadas para conseguir levá-la a bom termo são altamente sofisticadas e poucos lhe resistem, mesmo aqueles que têm formação em Educação, até porque elas andam associadas a contrapartidas muito sedutoras.
Mas nada é eterno, nem mesmo o poder que se apresenta como absolutamente poderoso, que promove a “transformação em curso”: um poder económico-financeiro que se impõe em todos os sectores da nossa vida, um poder que é manipulador, que vê a pessoa, e recorrendo a Kant, como um meio e não como um fim em si mesmo.
A realidade é que estão a emergir acções e publicações de grande qualidade que explicam a importância de, no quadro da educação escolar pública, voltarmos ao humano “como fim em si mesmo”, que explicam a necessidade de tentarmos uma transformação neste sentido.
Não obstante a força da propaganda global e nacional centrada na figura que é a “Educação do século XXI / do Futuro”, na América do Sul – no Brasil, Chile e Argentina – e na Europa – em Espanha, Inglaterra, na Itália, Alemanha, Suécia, Finlândia… – tem voltado a ser reivindicado o “direito à educação”.
Mesmo que as organizações supranacionais, que tomaram de assalto a educação, e os governos que são coniventes com elas, tudo façam – e fazem-no – para que a “transformação em curso” seja levada a bom termo, há uma coisa que não conseguem, sobretudo em regimes democráticos: é que quem se queira informar se informe e, em função disso, decida reorientar a educação, tendo por referência o que é bem, o que está certo.
Esta é uma ideia que precisamos de reafirmar, uma ideia que, não parecendo, veicula esperança.
E não há educação sem esperança.
“Deus nos livre de perdermos a esperança”, disse Zygmunt Bauman pouco tempo antes de morrer, bem consciente dos problemas do mundo.
Dei-vos uma nota palpável de esperança, de como pessoas que se importam com a educação, com o direito à educação escolar pública, podem organizar-se construtivamente a nível global, para contestar a “transformação em curso”, que é da mesma escala, ou seja, global.
Essa nota é a campanha com a designação “Os alunos antes do lucro” ou “Educar, não lucrar” (“Students before profit” / “Les etudiants avant le profit” / “Educar, no lucrar”), que a Education International”, uma organização sindical em que Portugal tem representação, tem em curso.
1 comentário:
O que é a hegemonia (supremacia)?
“… os sistemas educacionais são convocados a se adequarem à lógica do mercado globalizado” Sahlberg (2012).
A quem interessa esta hegemonia?
“Organismos internacionais e governos fazem ecoar uma mesma proposição: é preciso reformar de alto abaixo, tornando-a mais flexível e capaz de aumentar a competitividade entre as nações, únicos meios de obter o passaporte para o seleto grupo de países capazes de uma integração competitiva no mundo globalizado” Leher (2003).
Quais as consequências da hegemonia?
“… esses aspectos [a implantação de princípios da lógica liberal] têm repercutido negativamente nas escolas, no trabalho dos professores e na aprendizagem dos alunos” Sahlberg (2012).
Como o fazem?
“Ao colocarem os professores no lugar de principais responsáveis pelo fracasso dos sistemas educacionais, sem considerarem outros importantes fatores que interferem nas condições de ensino e aprendizagem, os OIs [organismos internacionais] apontam as “ditas saídas” para a superação da crise da educação, formulando e disseminando padrões globais para as políticas educacionais destinadas aos docentes; … , cria-se o cenário para a adesão às reformas em nome da “educação de qualidade”.
“Diante desse quadro os professores veem-se, muitas vezes, constrangidos a tomarem para si a responsabilidade pelo êxito ou insucesso dos programas” Oliveira (2003).
“… colocam a educação à mercê de um sistema perverso que monitora e culpabiliza os professores sobre os fracassos e a indigência econômica e social que assola os indivíduos nas sociedades ditas em desenvolvimento”.
A quem, primeiramente, compete combater a hegemonia?
“… a única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção orientem toda a sua energia, para que a educação seja uma educação para a contestação e para a resistência” Adorno (1995). Essa tarefa cabe aos educadores e educadoras, que almejam um novo projeto de educação, assim como citado por Mészáros (2008), uma “Educação além do Capital”.
Adaptado daqui:
Abreu, L. (set./dez. de 2022). Diretrizes da Unesco para a formação continuada de professores na América Latina e Caribe: padrões e aprendizagem colaborativa. Revista Educação e Emancipação, 15(3), 118-141. doi:http://dx.doi.org/10.18764/2358-4319v15n3..2022
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