“Lições de Química” é um livro publicado pela ASA em 2022. Trata-se de tragicomédia negra, mas também muito luminosa e séria. Tem a química como mote, mas trata de relações humanas e é, dessa forma, para todos os leitores - não apenas para os aficionados da química ou para os que sabem desta ciência. (Deste livro, está a ser feita uma série televisiva que estreará em 2023).
Curiosamente, se pensarmos bem, poderem existir escolas para jovens feiticeiros ou haver relações amorosas e sociais entre vampiros e humanos é tão improvável como uma cientistas química ter um programa culinário de sucesso na televisão. Mas, curiosamente, esta última possibilidade, embora fosse infinitamente mais provável, também não existe que eu saiba. Isso tem a ver com a forma como está organizado o mundo que nos rodeia. O que é uma pena pois assim estamos a deitar fora uma boa parte da cultura e literacia que, ainda por cima, é interessante e libertadora.
E, sempre que mostrei a capa, havia alguma retração das pessoas. “Química?!” - diziam, ou pensavam! Um professor de literatura, que conheço, disse a propósitos de “Os Lusíadas” que esse tipo de retração das pessoas revela "um trauma." De facto, quando dizemos que somos químicos, a maioria das pessoas ou fica calada ou diz que “nunca percebeu nada de química.” Ora não é razão para tal. O livro é muito divertido, sendo que ao ao mesmo tempo é muito sério, como já referi. Com bastante humor negro refere as atitudes machistas e conservadoras da sociedade americana dos anos 1950, de que ainda hoje temos reflexos. Mas tem, além disso, de tudo um pouco: pessoas más, pessoas boas e pessoas assim-assim. Tem remadores que se tornaram obstetras ou cientistas, tem cientistas medíocres, cientistas abusadores e prepotentes, jornalistas que se redimem, cães sábios, filhas acutilantes, violência doméstica, eclesiásticos que não acreditam em Deus ou que são cínicos. É uma girândola de possibilidades e personagens que tem como cenário a sociedade americana da altura e a química. Vale a pena referir de novo o conservadorismo e o machismo, pois há duas personagem (uma delas a heroína) que não acabam o doutoramento devido a assédio sexual. Talvez não seja assim agora, mas li noutro livro que muitas internas de medicina passavam por esse tipo de problemas.
Sobre as carreiras na química. É, em geral, um epifenómeno; não é dinástico como o direito ou a medicina. Contam-se pelos dedos os casos, que conheço, de filhos que seguiram as carreiras dos pais na química. Uma coisa interessante, é que o livro também retrata de forma indireta, que esses epifenómenos vêm, muitas vezes, das partes menos favorecidas das sociedades. Por exemplo, uma personagem do livro e que seria candidata ao prémio Nobel (se não tivesse morrido) vem de um lar para rapazes. A heroína, por outro lado vem uma família problemática. Vou referir, nesse contexto, dois Nobel, Frederick Sanger, que teve dois prémios e só foi para a universidade devido a ter bolsa. Sendo que o mesmo aconteceu com Robert Burns Woodward.
Os leitores já perceberam que eu não contei muito da história. Mas esta está cheia de partes cómicas, de algumas que são tragicómicas e outras que são mesmo trágicas. E, há momentos delirantes, como a árvore genealógica que tem bolotas e inclui, entre outras mulheres, Amelia Earhart, a aviadora solitária que desapareceu nos anos 1930 e é um ícone da independênca feminina (Mad, a filha da heroína, Elizabeth Zott, refere que os humanos são 99% iguais geneticamente, mas Elizabeth, sempre atenta a esses detalhes, corrige: 99,9% diz ela). O livro, tem, apresar de tudo, um final mais ou menos feliz. Gostei.
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