Minha apresentação do livro Palavras Ditas... (2 vols.), de Fernando Seabra santos, publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra:
Magníficos Reitores
Caras e Caros Colegas,
Demais Membros da Comunidade Universitária
Minhas Senhoras e meus Senhores:
É com grande gosto que saúdo a publicação do livro, em
dois volumes, Palavras Ditas…, do reitor emérito Fernando Seabra Santos
(FSS), saído do prelo da Imprensa da Universidade de Coimbra (UC), que remonta
à Reforma Pombalina ocorrida há 200 anos. Os dois tomos conservam para a
posteridade, como é da praxe, praticamente todos os discursos do reitor, em
número de 64, acrescidos de um despacho e de um convite, que são duas cerejas no
topo do bolo. Ambas têm a ver com as artes: do despacho brotou o actual Colégio
das Artes e do convite, se tivesse tido continuidade, teria surgido um quadro
de Paula Rego alusivo à República na Sala dos Capelos, onde campeia a realeza.
Não queria repetir o que o meu Colega e Amigo João
Queiró já disse sobre o livro agora vindo a lume até porque ele disse melhor do
que ninguém. Ele sabe muito mais de política universitária do que eu, razão
pela qual a ele recorro quando tenho dúvidas sobre o assunto. Admiro-o porque
teve a coragem de participar no governo da República numa situação dificílima.
O título do novo livro faz-me lembrar o livro da
saudosa Maria de Sousa, Meu Dito, meu Escrito. Mas talvez um título
melhor, não fora a modéstia do autor, teria sido «Meu Dito, meu Feito». Ou,
digo eu agora, «Se bem o disse, melhor o fez». Para além das palavras, encontramos
obras. Conforme disser G. K. Chesterton, «toda a ideia que não se transforma
em palavra é inútil e toda a palavra que não se transforma em acção é uma
palavra inútil». Bem sei – e FSS lembrou-o na sua «Última Lição» com
inteira propriedade – que o inútil merece por vezes encómios, mas o autor é,
afinal, de raiz um engenheiro, alguém formado para fazer obras úteis. O caso mais
paradigmático da obra que nos deixou foi decerto a Candidatura da UC – Alta e
Sofia a Património Mundial da Humanidade, candidatura essa que foi anunciada em
2005, entregue à UNESCO em 2011 e aprovada por este organismo (onde já foi
representante de Portugal o reitor honorário da Universidade de Lisboa, António
Sampaio da Nóvoa) em 2013. Para o ano celebrar-se-ão os dez anos.
O reitor FSS foi eleito em 2003, dois antes do anúncio
da referida candidatura, e reeleito em 2007, tendo terminado o seu mandato em
2011, dois anos antes da aprovação daquele seu projecto. Lembro-me da azáfama
que foi a candidatura (estava lá e vi, entre 2004 e 2011, como director do BGUC
e do SIBUC, biblioteca e serviço que foram para o efeito mobilizados). Os dois discursos de tomada de posse são, no
meu entender, as peças mais notáveis deste rico acervo de oratória. Basta ler essas
duas peças – que escutei ao vivo na Sala dos Capelos - para concluir que o
autor é um mestre não apenas da Engenharia Civil, mas também da língua
portuguesa. É um homem não só das Ciências e Tecnologia, mas também das Artes e
do Humanismo, um homem das «duas culturas». Gostei de reler esses discursos,
assim como os discursos anuais de Abertura Solene das Aulas e do Dia da UC, notando
que a passagem do tempo não retirou os lampejos da inspiração neles transmitida.
Cada reitor deixa uma herança. E a herança de FSS está hoje patente na nossa Universidade:
o autor deste livro destaca, para além da candidatura à UNESCO, de entre tudo aquilo
que o seu reitorado nos deixou: a nova estratégia de museologia científica com
a prefiguração do Museu da Ciência no Laboratorio Chimico, a criação do
IIIUC e do Colégio das Artes, a criação do Grupo de Coimbra de Universidades
Brasileiras e do World Heritage of Portuguese Origin, as inaugurações do
ITECONS e do ICNAS, nas áreas respectivamente da engenharia e da saúde. E ainda
as empreitadas do Colégio da Graça, na Sofia, para albergar o CD25deAbril e o
Colégio da Trindade, para albergar o Tribunal Universitário Judicial Europeu e
o Instituto Jurídico, obras concluídas, e a Biblioteca de Direito e o Biomed,
obras por concluir. Podia ter sido maior o rol de obras elencadas: por exemplo,
não refere os repositórios digitais Estudo Geral e Alma Mater, respectivamente
de produção científica recente e de fundo antigo, assim como o Rómulo - Centro
de Ciência da UC, que fez há pouco 14 anos. FSS, ciente de que nada se faz
sozinho, agradece aos qualificados colaboradores que soube escolher. Deixa-nos
uma pequena lista do que ele chama «não aproveitamentos de enormes
potencialidades», como o Museu da Ciência e o SIBUC. Estou convencido que, se
os referidos desaproveitamentos não tivessem acontecido, a UC estaria hoje
certamente melhor. A UC tem, de facto, o museu
de ciência mais rico do país – já agora, também o museu mais antigo de todos -
e a segunda maior biblioteca nacional, que poderia ser a primeira se tivesse
avançado o projecto da Casa do Conhecimento na Penitenciária, de sinergia com a
Câmara Municipal, que em tempos propus.
A Universidade é um dos legados mais extraordinários da
Idade Média, direi mesmo o mais extraordinário. Atravessou a Época Moderna para
chegar, em bom estado, à contemporaneidade. A UC –fundada em Lisboa pelo documento
de D. Dinis de 1 de Março de 1290 Scientia thesaurus mirabilis – é a 7.ª
mais antiga em funcionamento contínuo, a acreditar na Wikipédia. Se sobreviveu
é porque teve artes para isso, reinventando-se e reconstruindo-se
permanentemente, como aconteceu há 250 anos, com a Reforma Pombalina. No mundo
a grande mudança foi a fundação da Universidade de Berlim em 1809, pelo
linguista Wilhelm von Humboldt: nela a transmissão e a criação do saber passaram
a coabitar, como acontece nas melhores universidades de hoje.
Convém insistir: a Universidade é o sítio da criação
do saber, que pode ser fundamental ou aplicado. A Universidade tem de continuar
a ser o sítio por excelência da criação do saber puro – o saber pelo saber. Nos
tempos hodiernos a interdisciplinaridade é essencial nessa criação. As
disciplinas são obviamente necessárias, mas têm de comunicar umas com as
outras, pois o ser humano é um só e procura a unidade do seu saber. FSS criou,
como vice-reitor, o IIIIUC, uma excelente ideia que pode dar ainda mais frutos,
e já como reitor passou-a a unidade
orgânica. Mas todos sabemos como as Faculdades e os departamentos são ciosos
dos muros que constroem à sua volta. São capelinhas que se esquecem de ser
igreja, se me é permitida a metáfora eclesial. Mas, pior do que isso, tal
enquistamento significa perda do cruzamento fértil de saberes.
Como o saber se vai acumulando, Universidade significa
herança. A Universidade de hoje ergue-se aos ombros da de ontem para ver melhor:
FSS foi o primeiro reitor eleito do século XXI. Foi também o primeiro reitor
vindo da área das Engenharias. Antes dele foi reitor interino o Decano Arsélio
Pato de Carvalho, que sucedeu a Fernando Rebelo, de quem FSS foi, desde 1998,
vice-reitor, o que significa um total de 11 anos de serviço à UC na Reitoria,
acrescendo ao serviço à Faculdade e ao Departamento que foram e são os seus. A
UC já teve dois reitores que lhe sucederam e já teve mais de uma centena que o
antecederam. No século XIII o
primeiro reitor foi Mestre Geraldo, leite de Teologia. No século XIV houve 12
reitores. No século XV 16, entre o quais João das Regras, doutor por Bolonha, a
Alma Mater Studiorum, que desempenhou papel essencial nas cortes de
Coimbra de 1385. No
século XVI houve 26 reitores, entre os quais D. García de Almeida, o reitor da
transferência definitiva para Coimbra em 1537, e António Mendonça, que no tempo
dos Filipes (ausentes da Sala dos Capelos) comprou o Paço Real da Alcáçova. No
século XVII houve 18 reitores. No século XVIII 10, entre os quais Nuno da Silva
Teles, que teve a ideia de erguer a Joanina, o reitor-reformador D. Francisco
de Lemos Coutinho, o único de origem brasileira, e D. Francisco Mendonça, que
seria cardeal-patriarca de Lisboa. No século XIX houve 11 reitores, um dos quais
António Luís de Seabra, visconde de Seabra (sem qualquer parentesco, que eu saiba,
com o reitor emérito), que foi o autor do 1.º Código Civil português, António Santos
Viegas, que dirigiu o Gabinete de Física e o Observatório Meteorológico e Magnético,
e o médico António Costa Simões, que foi director da Hospitais da UC e
presidente da Câmara de Coimbra. Entre
os 26 reitores do século XX estão Manuel de Arriaga, que viria a ser presidente
da República, e alguns reitores a quem a autor prestou justa homenagem em
textos deste livro: José de Gouveia Monteiro, João Cotelo Neiva e António
Ferrer Correia. Manuel Augusto Rodrigues, que dirigiu o Arquivo da UC, escreveu,
por ocasião dos 700 anos da UC, que. até essa data, desde 1537, contou a UC com
82 reitores. Foram bispos 21, inquisidores gerais 3 e inquisidores não gerais
16. De longe, a maior parte saiu das Faculdades de Teologia, de Cânones e de
Direito. Isso mostra a secular ligação da UC à Igreja, à qual a 1.º República pôs
cobro.
Hoje a universidade tem missões que são só suas, eu
diria que são «pessoais e intransmissíveis»: o ensino ao mais alto nível, como
na Idade Média, mas também a investigação científica, como passou a ser após
Humboldt e como «terceira missão», já nos nossos dias, a extensão do
conhecimento à sociedade. É a universidade que proporciona a criação e a
transmissão, intra e extramuros, do saber mais avançado. Tem de estar, por
isso, permanentemente aberta à cidade, ao país e ao nundo. Desse saber irradia
a cultura, da qual a ciência faz parte assim como a tecnologia, que hoje deriva
na totalidade da ciência. FSS defendeu no seu programa a ligação da Universidade
e da cidade, falando de Universidade com «s» e com «c». A UC tem mais a dar à cidade,
ao país e ao mundo: mais conhecimento, i.e., mais cultura. Já referi o magnífico exemplo da fecundidade
da universidade que foi, nos mandatos de FSS, a candidatura da UC a Património da
Humanidade: a ligação da Alta a Sofia é um bom mote para uma ligação, que hoje
continua em boa parte por concretizar. Coimbra vive, após o insucesso da
candidatura da Capital Europeia da Cultura, um período de apagamento que todos queremos
ver rapidamente ultrapassado. Longe vão os tempos da
“geração de 1870”, em que a cidade e a Universidade fervilhavam de ideias. E
mesmo os anos de 1970, quando António Sampaio da Nóvoa aqui chegou para estudar
matemática e jogar futebol (de facto, e porque vejo em excelente forma, sugiro
que o convoquem para jogar numa equipa que está a precisar de ajuda: ele está
habituado a vencer!). Apesar de a UC ser
Património da Humanidade com a aprovação da candidatura preparada e apresentada
pelo reitor FSS, Coimbra ainda não conseguiu mobilizar-se em torno de um plano
de futuro, que tem necessariamente de passar pela cultura. O que é preciso? Uma
ideia contemporânea de cultura que não se restrinja às costumadas loas à
história, preocupando-se mais com os próximos sete anos do que com os últimos
700. Isso não se faz com ilusionismo, mas com trabalho conjunto que suscite entusiasmo
e adesão.
Coimbra
tem a seu favor uma história extraordinária: é um nome bem conhecido no mundo,
em particular no vasto espaço de língua portuguesa. Daí que a internacionalização
tenha sido uma constante preocupação do reitor FSS, como testemunham os
discursos que fez em Espanha, no Brasil, no Rio de Janeiro, na Turquia e no
Japão. Foi no tempo dele, em 2008, que foi criado o Grupo de Coimbra de Universidades
brasileiras, quando na Europa já havia o Grupo de Coimbra, fundado em 1985.
A
UC foi durante demasiado tempo a única universidade em Portugal e até do
Império: é bom ter concorrência e durante muito tempo não teve concorrência. Quando
a teve com as Escolas Politécnicas criadas pelo liberalismo, reagiu mal. Hoje a
UC é companheira das de Lisboa, do Porto, de Aveiro, do Minho, etc. Como
Presidente do CRUP entre 2007 e 2010, FSS desempenhou um papel, nem sempre
fácil, de conciliação entre as várias universidades nacionais. Sabemos que o
CRUP, sendo útil, não tem promovido a diferenciação. Não penso que os rankings sejam textos sagrados, longe
disso, mas são indicadores úteis: lembro que no tempo de FSS a UC esteve no top
500 do ranking de Xangai, um dos mais fiáveis por se basear na
produção científica, e não terei sido o único a ficar insatisfeito em 2018
quando a UC saiu do top500 desse
ranking. Infelizmente ainda não reentrámos nesse grupo. À frente da UC,
embora longe dos cumes mundial e mesmo europeu, estão a Universidade de Lisboa (uma das
maiores reformas da universidade portuguesa foi a fusão das Universidades
Clássica e Técnica de Lisboa protagonizada por Sampaio da Nóvoa: tiro-lhe o meu
chapéu), a do Porto, a de Aveiro e a do Minho (é justo assinalar os bons e
rápidos desenvolvimentos das suas últimas). Um ranking recente do sítio
research.com, com base na produção científica do corpo docente, coloca a
Universidade de Coimbra em 4.º lugar nacional depois das do Porto, de Lisboa e
de Aveiro. Não é só a UC que pode fazer mais e melhor: o conjunto de
universidades portuguesas poderia subir nas cotações internacionais se porventura
lhes fossem proporcionadas as devidas condições.
Sempre na UC se ensinou ciência. No meu livro História
da Ciência em Portugal, mais de metade dos 50 nomes mais proeminentes foram
professores ou alunos da UC. Por vezes a UC criou ciência: tivemos Pedro Nunes no tempo
áureo dos Descobrimentos. Porém, nos séculos XIX e XX,
quando a reforma de Humboldt vingou, não produzimos ciência na medida
necessária. Com algumas notáveis excepções, fomos ensinando a ciência feita lá
fora sem acrescentar ciência nova. E, por isso, não admira que tivéssemos importado
a tecnologia feita lá fora, como o caminho de ferro, o telégrafo elétrico e a
TSF. Demorava mais, além de ser mais caro. Não fomos terreno fértil para o que
hoje se chama «inovação». Felizmente que em 1974, o nosso ambiente político mudou,
tendo um impulso essencial sido dado em 1986, com a entrada na UE, então CEE. A
ajuda da Europa foi decisiva para impulsionar a nossa ciência. Dispomos hoje de
um sistema de ciência que já não está na cauda da Europa, com bom número de
novos doutorados e de artigos científicos por habitante, embora falte levar
esse conhecimento com maior intensidade à economia e à sociedade. Formámos
muitos jovens brilhantes que não estamos a aproveitar na medida necessária: a
universidade portuguesa tem tido dificuldades em renovar-se.
Uma
limitação é, sem dúvida, o orçamento. De facto, o valor de 1,6% do PIB de
investimento em I&D é escandalosamente escasso quando comparado com a média
de 2,2% da União Europeia. A última década foi nesta área, infelizmente, de
estagnação. Com um investimento tão escasso na ciência, estando desde há muito as
universidades em subfinanciamento crónico, não podemos competir nos rankings
internacionais. Será praticamente impossível termos nos próximos anos um Prémio
Nobel na área das ciências. Egas Moniz
foi um caso singular entre nós. Tendo ido de Coimbra para Lisboa para se dedicar
à política, deixou esta para se dedicar à ciência e perseguir denodadamente o
Nobel. É um exemplo de vontade e força individual, que hoje dificilmente seria
repetível, pois estamos numa época em que são precisas equipas e equipamentos, em
que são precisos esforços conjuntos e prolongados.
O
actual sistema científico deve-se, em grande medida, a José Mariano Gago (JMG),
que, num percurso contrário ao de Egas Moniz, deixou a ciência para se dedicar
à política. É um sistema que, sendo certo que cresceu rapidamente com frutos
evidentes, não é menos certo que tem fragilidades notórias, o que pelo menos em
parte radicará no facto de ter sido montado em boa parte fora o sistema de
ensino superior. JMG montou as estruturas da ciência em boa parte fora da
universidade, embora a grande maioria dos cientistas fossem universitários. É
inegável o seu papel na construção do edifício da ciência e tecnologia: todos
lhes estamos gratos. Mas é também claro que o edifício que ele criou está hoje anquilosado.
Há sinais de degradação das paredes e dos telhados (sirvo-me de uma metáfora da
engenharia civil). Seria preciso fazer obras, à semelhança do que o actual
Reitor da UC está louvavelmente a fazer ao Paço das Escolas. Mas não só não há
obras de renovação, como não se descortinam sequer os projectos. Impunha-se
desde já a mudança da fórmula de financiamento das Universidades, que nem
sequer tem sido aplicada. Basicamente essa fórmula depende do número de alunos,
mas o financiamento na prática é determinado pelo do ano anterior. No último Expresso,
Luís Aguiar Conraria, professor de Economia da Universidade do Minho, pôs o
dedo na ferida: a avaliar pela mesada que o governo dá às escolas do ensino
superior, uns são filhos e outros enteados.
No Preâmbulo do livro, FSS é claro sobre o
financiamento das universidades, ou melhor, a falta dele:
«Os 300 M€ retirados em cada ano às
Universidades foram mobilizados, valha-nos isso, para reforçar o sistema
científico nacional. O ministro, que pode tomar sozinho a decisão de reforçar a
ciência à custa do ensino superior, apenas reafectando recursos de um mesmo
bolo porque ambas as pastas estavam sob a sua tutela, ficará na história como
tendo pensado que poderia construir e manter um sistema científico de qualidade
degradando exatamente na mesma medida a estrutura do edifício universitário que
o deveria suportar.»
O problema do subfinanciamento das universidades sobreleva
a vários outros. Não foi resolvido com a celebração dos «contratos de confiança»,
iniciados em 2010. Sem ovos não se fazem omeletes. Mas nós, quase sem ovos, i.e.,
sem uma parcela decente do OE, fazemos mestres e doutores, artigos, patentes, etc.
Devemos ser dos países europeus que produzem os artigos mais baratos. O OE mais
recente ainda não é decente: o pequeno aumento anunciado será «devorado» pela inflação
prevista.
Não cometerei nenhuma inconfidência se disser que JMG
e FSS não se entendiam quanto à política universitária: o ministro achava que a
universidade representava o passado que era preciso enfrentar. Não primou pelo
respeito pela autonomia universitária. Os embates não eram só com FSS, não se
tratando por isso de uma mera aversão a Coimbra. Lembro-me de um debate
televisivo com um diálogo muito vivo entre Sampaio da Nóvoa e o ministro.
FSS, no seu texto «Universidade e Ciência», por
ocasião de uma reflexão organizada pelo Conselho de Laboratórios Associados, na
Fundação Gulbenkian, em 2007, pronuncia-se de forma crítica, mas serena (a
ponderação é aliás uma das suas marcas mais distintas):
«É indispensável que não se cave o
fosso entre Universidades e unidades de investigação. A transferência do Ensino
Superior entre o Ministério da Educação e o Ministério da Ciência, concretizada
em 2001, tem vantagens e inconvenientes cujo saldo, tanto quanto sei, não foi
ainda contabilizado. O que me parece evidente é que o preço que tivermos de
pagar pela separação organizacional entre o superior e os restantes níveis de
ensino só pode ser compensado se explorarmos totalmente as potencialidades da
ligação mais profunda que esta nova solução permite, entre ciência e ensino
superior.»
Conclui com uma metáfora biológica:
«Universidades e Laboratórios são
como gâmetas diferentes da mesma espécie. Podem ter estratégias diversas de
curto prazo, condicionadas pelas conhecidas especificidades morfológicas de
género, mais inerciais umas, mais cinéticos outros, mas são identicamente
indispensáveis, em conjunto, a qualquer estratégia ganhadora de médio ou longo
prazo. É preciso que se fertilizem mutuamente pondo em comum o melhor que têm,
sem perda de identidade ou de independência.»
Passadas quase três décadas desde a criação do
Ministério da Ciência e Tecnologia (com as Universidades noutra tutela), após
um enorme crescimento do sistema, o governo continua a não confiar nas
universidades para realizar ciência, quando nelas é que continuam a residir os recursos
humanos indispensáveis. A parcela maior do financiamento da ciência são afinal os
salários dos professores e investigadores. É preciso que os governantes confiem
nas instituições do ensino superior. Bastaria que o legislador colocasse na fórmula
do financiamento do ensino superior uma parcela dependente dos resultados científicos
e logo os reitores privilegiariam a investigação e contratariam investigadores.
O que é interessante é que não é um problema de cor política: governos de
várias cores partidárias mantiveram a estrutura do tecido científico; no tempo
do reitorado de FSS foram primeiros-ministros sucessivamente Durão Barroso,
Santana Lopes e José Sócrates.
O reitor emérito é muito crítico de outros aspetos da política
universitária, para além do financiamento.
Desde logo, prenunciou-se
criticamente em 2007 e sobre a 1.ª versão pública do Regime Jurídico das
Instituições de Encimo Superior (RJIES), que entre outras aspectos mudou o modo
de eleição dos reitores. Sugeriu com
ironia, numa reflexão sobre o RJIES na Reitoria da UL:
«(…) que aos Conselhos de Ministros seja permitido
cooptar alguns membros externos, em número não inferior a 30%, escolhidos por
entre personalidades de reconhecido mérito com experiência e conhecimentos
relevantes, que estimulem e garantam a abertura à vida social, cultural e
económica do País.»
E acrescentou, sem meias tintas: «Os reitores não estarão dispostos a
assistir, sem reacção, à fragmentação da sua Universidade feita com o
conhecimento, a conivência, ou até a iniciativa do Ministro que a devia defender.
Igualmente não aceitam que aos seus sucessores seja retirada a força política
que decorre de uma escolha por eleição.»
Mas havia e há outros problemas, sobre os quais
escreve: a Declaração de Bolonha (de 1999), decorrente da criação do Espaço
Europeu do Ensino Superior, e a avaliação do ensino superior (a A3ES é de
2007). Foram tempos difíceis: catadupas de legislação para aplicar o RJIES, Bolonha,
a avaliação, etc. Já nem falo das lutas estudantis, que foram e são normais com
as anormalidades que se conhecem. O livro agora saído fica como documento não
só para os académicos, mas também para os cidadãos interessados. É
imprescindível para a compreensão não só da UC como do país num certo tempo.
Volto ao património. Em 2005 quando apresentou a
intenção de candidatura a Património Mundial da UNESCO, FSS disse:
«Almejar a classificação da UC como
Património Mundial não se limita a uma mera pretensão contemplativa, antes
significa um desejo de transformação do espaço físico e valorização do
património intangível e uma profunda determinação na mudança das mentalidades e
atitudes. Esta transformação será exigida e sentida pelos que a vivem
quotidianamente e por aqueles que, mesmo estando longe, sentem a UC como um
legado comum da humanidade. A responsabilidade é essencialmente nossa, o
usufruto será de todos.»
Foi notável nesse processo a recuperação do Laboratorio
Chimico para nele realizar a 1.ª fase do Museu da Ciência, que ganhou no
ano em que foi inaugurado o prémio do melhor museu europeu na sua área. Não se
tratou de montar uma feérica quermesse de curiosidades, para embasbacar
turistas, mas sim de recuperar um edifício que foi dos jesuítas e de exibir a
todos como se descobriram os segredos da luz e da matéria. Na inauguração desse
Museu em 5 de Dezembro de 2006 (fez ontem 16 anos), FSS defendeu o projecto
original que liderou:
«À nossa frente, do outro lado da
Praça Marquês de Pombal, está um desafio à nossa altura: prosseguir no Colégio
de Jesus o projeto ‘Museu da Ciência da UC’. Temos espaço, também ele carregado
de história, também ela ligada ao desenvolvimento da ciência experimental em
Portugal; temos um acervo de grande valor científico e patrimonial, que em
algumas áreas é único em Portugal e significativo mesmo em termos
internacionais. Temos agora, do nosso lado, o conhecimento e a experiência que
nos autorizam a abraçar um projeto mais audacioso. Temos, finalmente, quer interna,
quer externamente, o crédito que nos confere o ter montado o Museu que hoje
inauguramos. Então? Se já chegámos ao acampamento-base, porque não subimos o
monte?»
Já não me lembro quem falou em «pedras velhas»,
querendo opor o moderno ao antiquado. Pois FSS não recusou essa expressão. O discurso
por ocasião da entrega formal do dossier de candidatura da UC a
Património da Humanidade, em Janeiro de 2011, exibia orgulhosamente esse
título. Mas a mesma expressão já tinha usada em 2009, por ocasião da entrega do
prémio Europa Nostra pela recuperação da Via Latina. Cito o discurso de
2011, como os outros bem pensado e bem escrito:
«São, de facto, pedras velhas. Mas
o que haverá a dizer sobre essas pedras velhas é que, algures na nossa
história, de algum modo delas absorvemos as moléculas que ora fazem parte dos
nossos corpos, se não fisicamente, pelo menos como componente fundamental do
nosso património cultural. Essas pedras velhas do Paço das Escolas, antes
Palácio onde os nossos reis elegeram domicílio, antes orgulhosa al-kazar
islâmica, antes domus da romana Aeminium, bem como as pedras velhas de cada um
dos sítios e monumentos representados pelos fundadores da Rede WHPO que
connosco estiveram, são simultaneamente testemunhas de um pedaço comum do nosso
passado e parte da nossa cultura, da nossa economia, das nossas vidas. Nós
somos essas pedras velhas. E sobre essas pede UC está a construir o seu
futuro.»
Termino dando de novo a palavra ao autor, como ele
merece. Vou buscar duas citações ao discurso em 2007 da inauguração do 2.º
mandato, contido no 1.º volume. Na primeira defende a Universidade,
explicitando a sua condição de «paladino» da universidade:
«As nossas Universidades são o
nosso valor seguro. É a partir delas, e não contra elas, que o País pode
construir a nova realidade. Desarticulá-las, fragilizá-las ou desvalorizar o
seu papel não servirá os nossos desígnios nacionais, antes contribuirá para
tornar mais difícil a resolução dos nossos problemas.»
Lembrei-me de um discurso de Drew Faust, reitora da
Universidade de Harvard (aliás a primeira reitora dessa instituição; a UC ainda
não teve nenhuma), a universidade que segundo os rankings é a melhor
universidade: «Precisamos de uma
nação que acredite – e que invista – mas suas universidades porque elas
representam um investimento nas ideias e nas pessoas que vão construir e que
serão o futuro.»
O outro é o final desse mesmo discurso, em que nos
remete para Fernando Pessoa e para o futuro, que é sempre a magna questão que temos
connosco próprios. Está na badana e é um texto que nos abana:
«O projecto que vos deixo, é o de
repetir o irrepetível, o da renovação permanente dos Homens e das instituições,
o da confiança em nós mesmos e nos outros, o da celebração da vida colectiva, o
da vinculação à utopia. Se vale ou não a pena, dúvida de uma outra
circunstância, tormenta de um outro cabo, conteúdo de uma outra Mensagem, se
vale ou não a pena só depende, como todos sabemos, da maior ou menor dimensão
das nossas almas.»
A nossa alma, a alma da UC, ou a alma das
universidades em geral, não é seguramente pequena. E, se tem o tamanho que hoje
tem, foi porque FSS a soube alargar. Julgo estar em falar em nome de todos
quando lhe agradeço o alargamento de alma que nos deu. Muito obrigado!
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