Meu artigo no último JL:
O Prémio Nobel da Medicina deste ano foi uma verdadeira surpresa. Não que o
galardoado não tivesse o maior mérito, mas sim porque os trabalhos que realizou
não são normalmente considerados da área médica, mas sim da antropologia. O
sueco Svante Pääbo, que de resto é formado em medicina (com um doutoramento sobre
a imunidade na Universidade de Uppsala), tornou-se famoso por ter efectuado a
sequenciação do homem de Neandertal, a espécie surgida há cerca de 400 000
anos, que coexistiu com o homem moderno (o Homo Sapiens), e se extinguiu
há 40 000 anos. De facto, houve cruzamentos entre o Homo Neanderthalensis
e o Homo Sapiens, pelo que todos nós temos um bocadinho de Neandertal
dentro de nós… E, para além do interesse sobre as nossas origens evolutivas, releva
para a medicina saber em que medida os genes herdados dos nossos antepassados neandertais
nos expõem mais ou menos a certos tipos de doenças. O investigador sueco publicou
com a sua equipa em 2021 um artigo em que correlacionava a protecção contra
formas mais graves de covid-19 com o conteúdo genético de Neandertal… Além das
suas pesquisas sobre o homem de Neandertal, Pääbo também conseguiu, usando
técnicas da moderna genómica, identificar, a partir de um fragmento de osso encontrado
numa gruta da Sibéria, uma nova espécie da família humana, o homem de Denisova.
Conheci pessoalmente o galardoado porque ele fez parte dos convidados que escolhi,
com o bioquímico David Marçal, para protagonistas do Mês da Ciência e Educação da
Fundação Francisco Manuel dos Santos em Outubro de 2019, portanto antes da
pandemia. Ele apresentou uma conferência sobre as origens humanas no anfiteatro
da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Lançou também o seu livro O
Homem de Neandertal, do qual fiz a revisão científica, e que é o n.º 234 da
colecção «Ciência Aberta» da Gradiva. Pessoa curiosa, fez muitas perguntas
quando lhe mostrei a Biblioteca Joanina e outros locais históricos daquela Universidade.
À noite, quando jantámos num restaurante sobre o Mondego, procurou inteirar-se
do estado da ciência portuguesa. Expliquei-lhe que não havia cá nada que se parecesse
com o seu extraordinário Instituto Max Planck para Antropologia Evolucionária na
cidade de Leipzig, na Alemanha. Antes disso, a sua carreira passou por Zurique,
Berkeley e Munique, como conta no seu interessante livro. Circunstância curiosa
é o facto de o seu pai, o bioquímico sueco Sune Bergström, ter recebido o Nobel
da Medicina em 1982. Tratou-se de um filho fora do casamento, fruto de uma
relação com a química estónia Karin Pääbo.
O Prémio Nobel da Física foi para três pioneiros da nova área da informação
quântica. A escolha da Academia Sueca foi, neste caso, previsível, até porque o
trio tinha recebido o prémio Wolf, um prémio israelita que costuma ser
premonitório relativamente ao Nobel. Além, disso, a empresa Clarivate tinha
desde há muito os nomes dos premiados na sua lista indicativa do prémio, que
tem por base o número de citações recebidas pelos artigos publicados. O Nobel
da Física de 2022 foi repartido irmamente pelo norte-americano John F Clauser,
da John F. Clauser Associates (Clauser nunca foi professor de Física e, investigando
na área, é sócio-gerente de uma empresa de consultadoria, na Califórnia com o
seu nome), o francês Alain Aspect, da Universidade de Paris - Saclay e da Escola
Politécnica, e do austríaco Anton Zeilinger, da Universidade de Viena. A
história dos trabalhos premiados remonta às objecções que Albert Einstein
levantou à teoria quântica: ele achava absurdas o que chamou «acções
fantasmagóricas à distância» entre partículas que tinham estado juntas e depois
se tinham afastado. O efeito chama-se «entrelaçamento quântico»: uma medida
duma determina o resultado de uma medida na outra. Baseado numa desigualdade desenvolvida por
John Bell, um físico teórico da Irlanda do Norte, já falecido, que trabalhou no
CERN, na Suíça, Clauser propôs em 1969 uma experiência com fotões polarizados
que permitia comparar a teoria quântica com teorias alternativas, ditas de
variáveis escondidas, e conseguiu realizar a experiência com um colaborador,
tendo os resultados validado a física quântica. Por sua vez, Aspect refinou a
experiência, resolvendo alguns problemas técnicos, reforçando a conclusão. Por
último, Zeilinger conseguiu a proeza de realizar o entrelaçamento quântico entre
sítios tão distantes como Viena e Pequim, usando um satélite chinês. Abriu
assim a porta à chamada «criptografia quântica», que promete comunicações muito
mais seguras do que as actuais. A mecânica quântica deixou há muito de ser um
tema meramente teórico. Hoje, graças aos computadores e aos lasers, está por
todo o lado das nossas vidas e amanhã estará ainda mais.
Finalmente, o Nobel da Química distinguiu trabalhos do desenvolvimento da
«química do clique», uma nova forma de construção de moléculas na qual os
componentes se encaixam de uma forma rápida e eficaz, e de «química
biortogonal», a aplicação dessa técnica a organismos vivos sem interferência em
funções vitais. Os laureados, de novo de forma equitativa, foram a
norte-americana Carolyn Bertozzi, da Universidade de Stanford, o seu
compatriota Karl Barry Sharpless, do Instituto Scripps, na Califórnia, e o
dinamarquês Morten Meldal, da Universidade de Copenhaga. Também aqui a
Clarivate fez prognósticos correctos. O facto mais marcante foi a entrega de um
segundo Nobel a Sharpless, pois este já o tinha recebido em 2001 por outros
trabalhos. Foi a segunda «dobradinha» no Nobel da Química: a primeira tinha
sido o bioquímico inglês Frederick Sanger, que o recebeu em 1958 por ter
revelado a estruturas de proteínas, entre as quais a insulina, e em 1980, por
ter aplicado pela primeira vez a técnica de sequenciação genómica para
desvendar o genoma de um vírus (a técnica do PCR tornou-se corrente durante a
covid-19).
Dos sete premiados na área da ciência, quatro são europeus, o que contrasta
com o predomínio norte-americano nas últimas décadas. Apenas uma é uma mulher:
foi dado mais um passo, embora muito pequeno, em direcção ao reconhecimento da
igualdade dos sexos na ciência.
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