quinta-feira, 20 de outubro de 2022

OS PRÉMIOS NOBEL DA CIÊNCIA DE 2022

 


Meu artigo no último JL:

O Prémio Nobel da Medicina deste ano foi uma verdadeira surpresa. Não que o galardoado não tivesse o maior mérito, mas sim porque os trabalhos que realizou não são normalmente considerados da área médica, mas sim da antropologia. O sueco Svante Pääbo, que de resto é formado em medicina (com um doutoramento sobre a imunidade na Universidade de Uppsala), tornou-se famoso por ter efectuado a sequenciação do homem de Neandertal, a espécie surgida há cerca de 400 000 anos, que coexistiu com o homem moderno (o Homo Sapiens), e se extinguiu há 40 000 anos. De facto, houve cruzamentos entre o Homo Neanderthalensis e o Homo Sapiens, pelo que todos nós temos um bocadinho de Neandertal dentro de nós… E, para além do interesse sobre as nossas origens evolutivas, releva para a medicina saber em que medida os genes herdados dos nossos antepassados neandertais nos expõem mais ou menos a certos tipos de doenças. O investigador sueco publicou com a sua equipa em 2021 um artigo em que correlacionava a protecção contra formas mais graves de covid-19 com o conteúdo genético de Neandertal… Além das suas pesquisas sobre o homem de Neandertal, Pääbo também conseguiu, usando técnicas da moderna genómica, identificar, a partir de um fragmento de osso encontrado numa gruta da Sibéria, uma nova espécie da família humana, o homem de Denisova.

Conheci pessoalmente o galardoado porque ele fez parte dos convidados que escolhi, com o bioquímico David Marçal, para protagonistas do Mês da Ciência e Educação da Fundação Francisco Manuel dos Santos em Outubro de 2019, portanto antes da pandemia. Ele apresentou uma conferência sobre as origens humanas no anfiteatro da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Lançou também o seu livro O Homem de Neandertal, do qual fiz a revisão científica, e que é o n.º 234 da colecção «Ciência Aberta» da Gradiva. Pessoa curiosa, fez muitas perguntas quando lhe mostrei a Biblioteca Joanina e outros locais históricos daquela Universidade. À noite, quando jantámos num restaurante sobre o Mondego, procurou inteirar-se do estado da ciência portuguesa. Expliquei-lhe que não havia cá nada que se parecesse com o seu extraordinário Instituto Max Planck para Antropologia Evolucionária na cidade de Leipzig, na Alemanha. Antes disso, a sua carreira passou por Zurique, Berkeley e Munique, como conta no seu interessante livro. Circunstância curiosa é o facto de o seu pai, o bioquímico sueco Sune Bergström, ter recebido o Nobel da Medicina em 1982. Tratou-se de um filho fora do casamento, fruto de uma relação com a química estónia Karin Pääbo.

O Prémio Nobel da Física foi para três pioneiros da nova área da informação quântica. A escolha da Academia Sueca foi, neste caso, previsível, até porque o trio tinha recebido o prémio Wolf, um prémio israelita que costuma ser premonitório relativamente ao Nobel. Além, disso, a empresa Clarivate tinha desde há muito os nomes dos premiados na sua lista indicativa do prémio, que tem por base o número de citações recebidas pelos artigos publicados. O Nobel da Física de 2022 foi repartido irmamente pelo norte-americano John F Clauser, da John F. Clauser Associates (Clauser nunca foi professor de Física e, investigando na área, é sócio-gerente de uma empresa de consultadoria, na Califórnia com o seu nome), o francês Alain Aspect, da Universidade de Paris - Saclay e da Escola Politécnica, e do austríaco Anton Zeilinger, da Universidade de Viena. A história dos trabalhos premiados remonta às objecções que Albert Einstein levantou à teoria quântica: ele achava absurdas o que chamou «acções fantasmagóricas à distância» entre partículas que tinham estado juntas e depois se tinham afastado. O efeito chama-se «entrelaçamento quântico»: uma medida duma determina o resultado de uma medida na outra.  Baseado numa desigualdade desenvolvida por John Bell, um físico teórico da Irlanda do Norte, já falecido, que trabalhou no CERN, na Suíça, Clauser propôs em 1969 uma experiência com fotões polarizados que permitia comparar a teoria quântica com teorias alternativas, ditas de variáveis escondidas, e conseguiu realizar a experiência com um colaborador, tendo os resultados validado a física quântica. Por sua vez, Aspect refinou a experiência, resolvendo alguns problemas técnicos, reforçando a conclusão. Por último, Zeilinger conseguiu a proeza de realizar o entrelaçamento quântico entre sítios tão distantes como Viena e Pequim, usando um satélite chinês. Abriu assim a porta à chamada «criptografia quântica», que promete comunicações muito mais seguras do que as actuais. A mecânica quântica deixou há muito de ser um tema meramente teórico. Hoje, graças aos computadores e aos lasers, está por todo o lado das nossas vidas e amanhã estará ainda mais.

Finalmente, o Nobel da Química distinguiu trabalhos do desenvolvimento da «química do clique», uma nova forma de construção de moléculas na qual os componentes se encaixam de uma forma rápida e eficaz, e de «química biortogonal», a aplicação dessa técnica a organismos vivos sem interferência em funções vitais. Os laureados, de novo de forma equitativa, foram a norte-americana Carolyn Bertozzi, da Universidade de Stanford, o seu compatriota Karl Barry Sharpless, do Instituto Scripps, na Califórnia, e o dinamarquês Morten Meldal, da Universidade de Copenhaga. Também aqui a Clarivate fez prognósticos correctos. O facto mais marcante foi a entrega de um segundo Nobel a Sharpless, pois este já o tinha recebido em 2001 por outros trabalhos. Foi a segunda «dobradinha» no Nobel da Química: a primeira tinha sido o bioquímico inglês Frederick Sanger, que o recebeu em 1958 por ter revelado a estruturas de proteínas, entre as quais a insulina, e em 1980, por ter aplicado pela primeira vez a técnica de sequenciação genómica para desvendar o genoma de um vírus (a técnica do PCR tornou-se corrente durante a covid-19).

Dos sete premiados na área da ciência, quatro são europeus, o que contrasta com o predomínio norte-americano nas últimas décadas. Apenas uma é uma mulher: foi dado mais um passo, embora muito pequeno, em direcção ao reconhecimento da igualdade dos sexos na ciência.

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