segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Extracto de «O Homem de Neanderthal» (Gradiva, 2019) de Svante Paabo, Nobel da Medicina de 2022


Neandertal ex machina

Numa noite de 1996, já tarde, tinha eu acabado de adormecer, o telefone tocou. Do outro lado da linha estava Matthias Krings, um aluno de pós‑ ‑graduação do meu laboratório, no Instituto de Zoologia da Universidade de Munique. Tudo o que ele disse foi: «Não é humano.»

 «Vou já», resmunguei. Vesti qualquer coisa e atravessei a cidade de carro, até ao laboratório. Nessa tarde, o Matthias tinha ligado as nossas máquinas de sequenciação do ADN, alimentando‑as com fragmentos de ADN que extraíra e amplificara de um pequeno pedaço de osso do braço de um neandertal pertencente ao Museu Rheinisches Landesmuseum (Museu Estadual do Reno), de Bona. Os anos consecutivos de resultados na sua maioria decepcionantes tinham‑me ensinado a manter as expectativas baixas. O mais provável era que, fosse o que fosse que ele tivesse extraído, não passasse de ADN bacteriano ou humano que se tivesse infiltrado no osso algures durante os 140 anos desde que fora desenterrado. Mas, ao telefone, o Matthias parecia muito empolgado. Teria conseguido recolher material genético de um neandertal? Parecia‑me pouco expectável. 

No laboratório, encontrei o Matthias com Ralf Schmitz, o jovem arqueólogo que nos ajudara a obter autorização para extrair o pequeno pedaço de osso do braço do fóssil neandertal guardado em Bona. Mal conseguiam conter o regozijo quando me mostraram a cadeia de A, C, G e T que saía de um dos sequencia‑ dores. Nem eles nem eu víramos jamais algo parecido. 

Aquilo que a um leigo pode parecer uma sequência aleatória de quatro letras é, na verdade, a estrutura química em estenografia do ADN, o material genéti‑ co armazenado em quase todas as células do corpo. As duas cadeias da famosa dupla hélice do ADN são constituídas por unidades que contêm os nucleótidos adenina, timina, guanina e citosina, abreviados por A, T, G e C. A ordem segundo a qual estes nucleótidos ocorrem constitui a informação necessária para formar o nosso corpo e permitir as suas funções. O fragmento específico de ADN para o qual estávamos a olhar fazia parte do genoma mitocondrial — ADNmt, abreviada‑ mente —, que é transmitido nos óvulos de todas as mães aos filhos. Há várias centenas de cópias deste ADNmt armazenadas nas mitocôndrias, estruturas minúsculas nas células, e ele especifica a informação necessária para que essas estruturas cumpram a sua função de produção de energia. Cada um de nós tem apenas um tipo de ADNmt, que compreende uns meros 0,0005 por cento do nosso genoma. Uma vez que transportamos em cada célula muitos milhares de cópias de um único tipo, este é particularmente fácil de estudar, ao contrário do resto do nosso ADN — de que há apenas duas cópias armazenadas no núcleo da célula, uma da nossa mãe e outra do nosso pai. Em 1996, já se tinham estudado sequências de ADNmt em milhares de seres humanos de todo o mundo. Essas sequências eram habitualmente  comparadas com a primeira sequência de ADNmt hu‑ mano a ser determinada, e essa sequência referencial comum podia, por sua vez, ser usada para compilar uma lista das diferenças registadas e as respectivas posições. O que nos empolgou foi a sequência que determinámos a partir do osso do Neandertal conter alterações que nunca tinham sido vistas nesses milhares de seres humanos. Eu mal podia acreditar que aquilo que estávamos a ver era real. 

Como me geralmente acontece quando deparo com um resultado empolgante ou inesperado, rapidamente fui assaltado por dúvidas. Investiguei todas as possibilidades de aquilo que estávamos a ver não ser bem assim. Talvez, numa altura qualquer, alguém tivesse usado cola feita a partir de pele de vaca para tratar os ossos e estivéssemos perante o ADNmt de uma vaca. Não: verificámos imediatamente o ADNmt de vaca (que outros tinham já sequenciado) e vimos que era muito diferente. Esta nova sequência de ADNmt era claramente próxima das sequências humanas e, no entanto, ligeiramente diferente de todas elas. Comecei a acreditar que aquele era, efectivamente, o primeiro fragmento de ADN alguma vez extraído e sequenciado a partir de uma forma extinta de seres humanos. 

Abrimos a garrafa de champanhe guardada no frigorífico da copa do laboratório. Sabíamos que, se aquilo que estávamos a ver era realmente ADN neandertal, se abria todo um vasto campo de possibilidades. Poderia ser possível, um dia, comparar genes inteiros, ou qualquer gene específico, dos neandertais com os genes correspondentes das pessoas vivas actualmente. Quando regressei a casa a pé, através da silenciosa e escura Munique (tinha bebido demasiado champanhe para conduzir), ainda me custava a acreditar no que tinha acontecido. Deitei‑me, mas não consegui adormecer. Não parava de pensar nos neandertais e no espécime cujo ADNmt parecíamos ter acabado de identificar. 

Em 1856, três anos antes da publicação da obra de Darwin A Origem das Espécies, uns trabalhado‑ res que limpavam uma pequena gruta numa pedreira no vale de Neander, cerca de dez quilómetros a leste de Düsseldorf, descobriram o topo de um crânio e alguns ossos que julgaram ser de um urso. Mas, daí a poucos anos, os vestígios foram identificados como pertencendo a uma forma extinta de humano, talvez nossa antepassada. Foi a primeira vez que tais vestígios foram descritos, e a descoberta chocou o mundo dos naturalistas. Ao longo dos anos, a investigação relativa àqueles ossos e a muitos mais como aqueles, entretanto encontrados, prosseguiu, tentando perceber quem eram os neandertais, como viviam e porque desapareceram há uns 30 000 anos, como interagiram com eles os nossos antepassados modernos durante os milhares de anos em que coexistiram na Europa, se eram amigos ou inimigos, nossos antepassados ou simplesmente nossos primos há muito desaparecidos (ver Figura 1.1). As escavações nas estações arqueológicas trouxeram à luz do dia registos extraordinários de comportamentos que nos são familiares, como o cuidar dos feridos, os enterramentos rituais e talvez mesmo a produção de música, o que nos mostra que os neandertais eram muito mais parecidos connosco do que qualquer macaco vivo. Quão parecidos? Se falavam ou não, se serão ou não uma ramificação morta da árvore genealógica dos hominídeos ou se haverá genes deles escondidos em nós, hoje, são questões que se tornaram parte integrante da paleoantropologia, a disciplina académica que se pode  dizer ter tido o seu início com a descoberta daqueles ossos no vale de Neander, os mesmos de que parecía‑ mos agora ser capazes de extrair informação genética. 

Por muito interessantes que estas questões fossem, parecia‑me que o fragmento de osso neandertal prometia algo ainda maior. Os neandertais são o parente extinto mais próximo dos seres humanos contemporâneos. Se conseguíssemos estudar o seu ADN, descobriríamos sem dúvida que os seus genes eram muito semelhantes aos nossos. Alguns anos antes, o meu grupo tinha sequenciado um grande número de fragmentos de ADN do genoma do chimpanzé e mostrara que, nas sequências de ADN que partilhamos com os chimpanzés, apenas pouco mais de um por cento dos nucleótidos era diferente. Os neandertais deviam ser, claramente, muito mais próximos de nós do que isso. Mas — e isto é que era imensamente empolgante —, entre as poucas diferenças que esperávamos encontrar no genoma nean‑ dertal, haveria aquelas que nos distinguiam de todas as outras formas de antepassados humanos: não apenas dos neandertais, mas também do Rapaz de Turkana, que viveu há uns 1,6 milhões de anos; da Lucy, há uns 3,2 milhões de anos; do Homem de Pequim, há mais de meio milhão de anos. Essas poucas diferenças tinham de constituir os alicerces biológicos da direcção radicalmente nova que a nossa linhagem tomou com o aparecimento dos seres humanos modernos: o advento e o desenvolvimento rápido da tecnologia, da arte sob a forma que hoje reconhecemos imediatamente como arte, e talvez da linguagem e da cultura tal como as conhecemos. Se conseguíssemos estudar o ADN neandertal, tudo isto poderia ficar ao nosso alcance. Embalado por este sonho (ou mania de grandeza), adormeci finalmente quando o Sol estava a nascer. 

No dia seguinte, o Matthias e eu chegámos tarde ao laboratório. Depois de verificarmos a sequência de ADN da noite anterior, para nos certificarmos de que não tínhamos cometido erros, sentámo‑nos para planear o que fazer a seguir. Uma coisa era obter a sequência de um pequeno fragmento de ADNmt que parecia interessante, a partir de um fóssil de neandertal, outra coisa seria convencermo‑nos a nós mesmos — quanto mais ao resto do mundo — de que aquele era ADNmt de um indivíduo que tinha vivido (naquele caso específico) há uns 40 000 anos. O meu trabalho ao longo dos doze anos anteriores tornou o passo seguinte muito claro. Em primeiro lugar, tínhamos de repetir a experiência — não apenas o último passo, mas todos os passos, começando com um novo pedaço de osso, para provar que a sequência que obtivéramos não era um acaso, fruto de uma molécula de ADNmt moderna danificada e modificada que se encontrasse no osso. Em segundo lugar, precisávamos de ampliar a sequência de ADNmt que tínhamos obtido recolhendo fragmentos sobrepostos de ADN do pedaço de osso. Isto permitir‑nos‑ia reconstituir uma sequência mais longa de ADNmt, com a qual poderíamos começar a calcular quão diferente era o ADNmt dos neandertais relativamente ao dos seres humanos actuais. E depois era necessário um terceiro passo. Eu próprio tinha afirmado muitas vezes que quaisquer afirmações extraordinárias sobre sequências de ADN de ossos antigos exigiam provas extraordinárias — nomeada‑ mente a repetição dos resultados noutro laboratório, um passo invulgar numa área científica geralmente competitiva. A afirmação de que obtivéramos ADN dos neandertais seria certamente considerada extraordinária. Para excluirmos fontes desconhecidas de erro no nosso laboratório, precisávamos de partilhar uma parte do precioso material ósseo com um laboratório independente e esperar que aquele conseguisse replicar o resultado. Discuti tudo isto com o Matthias e o Ralf. Traçámos os planos para o trabalho que nos esperava e jurámos uns aos outros manter o segredo restrito aos nossos grupos de investigação. Não queríamos atrair 1 as atenções antes de termos a certeza de que o que tínhamos era mesmo o que pensávamos ter. (...)

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente resumo!

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...