quinta-feira, 6 de outubro de 2022

ESCRITOS DE EGÍDIO NAMORADO

 

Meu texto no último JL:

O físico-químico Egídio Namorado (1920–1976) foi o irmão mais novo do poeta neorrealista Joaquim Namorado (1914-1986): os dois foram, nos anos de 40 e 50, membros proeminentes da direcção da Vértice, a «revista de cultura e arte» criada em Coimbra em 1942 (nos fundadores esteve Eduardo Lourenço), que conheceu nova vida a partir do número 4-7 em 1945, graças ao entusiasmo de uma geração jovem. Egídio foi essencialmente um filósofo da ciência, embora também tenha feito incursões pela história da ciência, pela arte e pela cultura portuguesa. Quando acabou o curso na Universidade de Coimbra, foi convidado pelo catedrático de Física Mário Silva para seu assistente, mas o seu alinhamento à esquerda impediu-o de exercer essas e outras funções no Estado, tendo de viver de explicações. Só em 1958 se mudaria para Lisboa, onde foi primeiro arquivista na Companhia Portuguesa de Indústrias Nucleares e depois funcionário da Fundação Gulbenkian (director adjunto do Serviço de Ciência e director do Centro de Cálculo). Morreu no tempo da pós-Revolução, quando muito haveria ainda a esperar dele.

Natural de Alter do Chão, Egídio estudou no Liceu José Falcão em Coimbra, onde foi director do jornal Alvorada, sucedendo a Fernando Namora. Aos 17 anos já escrevia, sob pseudónimo, no Sol Nascente, «quinzenário de ciência, arte e crítica» fundada em 1937 no Porto e que durou até 1940. Egídio invectiva as posições idealistas, situando-se claramente do lado do materialismo. A doutrina filosófica então dominante era o positivismo lógico do Círculo de Viena, que começou com um manifesto de 1928 e terminou em 1936 com o assassinato de um dos seus principais mentores às mãos de um fanático nazi. Num dos seus artigos, Egídio zurziu José Régio, declarando que a filosofia desligada dos factos da ciência não passa de metafísica, isto é, não tem qualquer valor. As revistas culturais da época acolhiam tanto artigos de ciência e filosofia como de arte e literatura. Uma delas O Diabo, saído em Lisboa entre 1934 e 1940. Foi aí que, numa série de artigos em 1936, o médico portuense Abel Salazar (que tinha sido demitido da Universidade do Porto em 1935 pela sua oposição ao outro Salazar) empreendeu um cerrado proselitismo do positivismo lógico. Em Coimbra saiu entre 1939 e 1941 a Síntese, «revista mensal de cultura científica, literária, artística» (da qual o jovem José Saramago foi editor). Bem mais antiga e longeva (prolongou-se até aos dias de hoje), é a Seara Nova, «revista de doutrina e crítica», fundada em 1921 em Lisboa por Raul Proença e uma plêiade de intelectuais. Todas essas revistas acolheram vozes críticas ao Estado Novo.

A Imprensa da Universidade de Coimbra acaba de publicar Escritos sobre Filosofia, Ciência e Arte, de Egídio Namorado, com 524 páginas (o livro está on-line, no quadro da política de acesso aberto da editora), organizado por João Clímaco, professor aposentado da Faculdade de Economia daquela universidade e sobrinho do autor. O organizador, que assina o prefácio e uma nota biobibliográfica, que é uma versão revista de um seu texto saído na revista Nova Síntese, escolheu e ordenou 25 textos de Egídio. Exceptuando dois que saíram em O Tempo e o Modo,  um que saiu na Seara Nova e outro na revista Electricidade (este, mais técnico, é uma especulação sobre a existência de um quantum de comprimento), todos os outros saíram na Vértice, que foi um viveiro do neorrealismo (a ela pertenceram, além dos Namorados, Carlos de Oliveira, João José Cochofel, Rui Feijó et al.). Lembro que a colecção de poesia Novo Cancioneiro, que incluiu o Aviso À Navegação de Joaquim Namorado, e o romance Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, são de 1941.»

Os melhores textos de Egídio são de filosofia de ciência. Fica neles claro que não é um materialista lógico, mas sim um «materialista moderno». Ao materialismo de pendor lógico-matemático baseado na experiência faltava a dimensão histórico-social que a sua orientação marxista propugnava. Expoente desses textos é a sua tentativa, em 1970, de conciliação do materialismo com as posições de António Sérgio, falecido no ano anterior, próximo do idealismo (Sérgio teve uma violenta polémica nos anos 30 com Abel Salazar, e outra, mais fina, nos anos 40, na Vértice, com Bento de Jesus Caraça). Joel Serrão respondeu a Egídio, tomando para si as «dores» de Sérgio. Dos textos sobre história da ciência sobressai um sobre Galileu, de 1974. Nos textos sobre arte um de louvor ao neorrealismo, de 1962. E, dos textos sobre cultura portuguesa, destaco os seus dois textos sobre Camões, de 1966 e 1970, nos quais busca pontes entre o Camões épico, materialista, e o Camões lírico, idealista.

Já existia uma antologia de Egídio Namorado, Ponto de Vista, organizada pelo próprio e publicada pela Vértice em 1958, com reedição em 1977 (prefaciada por Ferrando Catroga), pelo que não é de estranhar que quatro textos coincidam nos dois livros. Mas o seu livro de estreia saiu em 1945, tecendo críticas ao Círculo de Viena: A Escola de Viena e Alguns Problemas de Conhecimento. Não foi aliás o primeiro português a fazê-lo: o filósofo e mais tarde também pedagogo Delfim Santos, que estudou em Viena, não ficou muito impressionado pela doutrina que bebeu directamente na fonte (publicou em 1938 Situação Valorativa do Positivismo, tese de doutoramento que não foi aceite pela Universidade de Coimbra). Outros nomes críticos da Escola de Viena foram Vitorino Magalhães Godinho, que escreveu em 1940 Razão e História, tese de licenciatura na Universidade de Lisboa, e Vasco Magalhães Vilhena, marxista como os Namorados, que escreveu em 1941 um livro intitulado Unidade da Ciência, tese de doutoramento que foi reprovada em Coimbra tal como a de Santos (Vilhena defenderia outra tese na Sorbonne e seria um dos exilados que regressou de Paris num dos primeiros aviões após o 25 de Abril).

Conheci pessoalmente Joaquim Namorado, que me deixou uma forte impressão, mas não o seu irmão Egídio. Mas foram-me úteis as traduções que ele fez na área de Física Quântica, a sua teoria física de eleição: os textos seminais de Niels Bohr e o manual de Física Atómica de Max Born, ambos publicados pela Gulbenkian. Depois de ler os seus Escritos sobre Filosofia, Ciência e Arte só posso concluir que gostaria de o ter conhecido.

 

 

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