Meu texto no último JL:
O físico-químico Egídio Namorado (1920–1976) foi o irmão mais novo do poeta
neorrealista Joaquim Namorado (1914-1986): os dois foram, nos anos de 40 e 50,
membros proeminentes da direcção da Vértice, a «revista de cultura e
arte» criada em Coimbra em 1942 (nos fundadores esteve Eduardo Lourenço), que conheceu
nova vida a partir do número 4-7 em 1945, graças ao entusiasmo de uma geração
jovem. Egídio foi essencialmente um filósofo da ciência, embora também tenha
feito incursões pela história da ciência, pela arte e pela cultura portuguesa.
Quando acabou o curso na Universidade de Coimbra, foi convidado pelo catedrático
de Física Mário Silva para seu assistente, mas o seu alinhamento à esquerda impediu-o
de exercer essas e outras funções no Estado, tendo de viver de explicações. Só
em 1958 se mudaria para Lisboa, onde foi primeiro arquivista na Companhia
Portuguesa de Indústrias Nucleares e depois funcionário da Fundação Gulbenkian (director
adjunto do Serviço de Ciência e director do Centro de Cálculo). Morreu no tempo
da pós-Revolução, quando muito haveria ainda a esperar dele.
Natural de Alter do Chão, Egídio estudou no Liceu José Falcão em Coimbra,
onde foi director do jornal Alvorada, sucedendo a Fernando Namora. Aos
17 anos já escrevia, sob pseudónimo, no Sol Nascente, «quinzenário de
ciência, arte e crítica» fundada em 1937 no Porto e que durou até 1940. Egídio invectiva
as posições idealistas, situando-se claramente do lado do materialismo. A doutrina
filosófica então dominante era o positivismo lógico do Círculo de Viena, que
começou com um manifesto de 1928 e terminou em 1936 com o assassinato de um dos
seus principais mentores às mãos de um fanático nazi. Num dos seus artigos, Egídio
zurziu José Régio, declarando que a filosofia desligada dos factos da ciência
não passa de metafísica, isto é, não tem qualquer valor. As revistas culturais da
época acolhiam tanto artigos de ciência e filosofia como de arte e literatura.
Uma delas O Diabo, saído em Lisboa entre 1934 e 1940. Foi aí que,
numa série de artigos em 1936, o médico portuense Abel Salazar (que tinha sido
demitido da Universidade do Porto em 1935 pela sua oposição ao outro Salazar) empreendeu
um cerrado proselitismo do positivismo lógico. Em Coimbra saiu entre 1939 e 1941
a Síntese, «revista mensal de cultura científica, literária, artística» (da
qual o jovem José Saramago foi editor). Bem mais antiga e longeva (prolongou-se
até aos dias de hoje), é a Seara Nova, «revista de doutrina e crítica», fundada
em 1921 em Lisboa por Raul Proença e uma plêiade de intelectuais. Todas essas
revistas acolheram vozes críticas ao Estado Novo.
A Imprensa da Universidade de Coimbra acaba de publicar Escritos sobre
Filosofia, Ciência e Arte, de Egídio Namorado, com 524 páginas (o livro
está on-line, no quadro da política de acesso aberto da editora), organizado
por João Clímaco, professor aposentado da Faculdade de Economia daquela universidade
e sobrinho do autor. O organizador, que assina o prefácio e uma nota biobibliográfica,
que é uma versão revista de um seu texto saído na revista Nova Síntese, escolheu
e ordenou 25 textos de Egídio. Exceptuando dois que saíram em O Tempo e o
Modo, um que saiu na Seara Nova
e outro na revista Electricidade (este, mais técnico, é uma especulação
sobre a existência de um quantum de comprimento), todos os outros saíram
na Vértice, que foi um viveiro do neorrealismo (a ela pertenceram, além
dos Namorados, Carlos de Oliveira, João José Cochofel, Rui Feijó et al.).
Lembro que a colecção de poesia Novo Cancioneiro, que incluiu o Aviso
À Navegação de Joaquim Namorado, e o romance Esteiros, de Soeiro
Pereira Gomes, são de 1941.»
Os melhores textos de Egídio são de filosofia de ciência. Fica neles claro que
não é um materialista lógico, mas sim um «materialista moderno». Ao materialismo
de pendor lógico-matemático baseado na experiência faltava a dimensão histórico-social
que a sua orientação marxista propugnava. Expoente desses textos é a sua tentativa,
em 1970, de conciliação do materialismo com as posições de António Sérgio,
falecido no ano anterior, próximo do idealismo (Sérgio teve uma violenta polémica
nos anos 30 com Abel Salazar, e outra, mais fina, nos anos 40, na Vértice,
com Bento de Jesus Caraça). Joel Serrão respondeu a Egídio, tomando para si as
«dores» de Sérgio. Dos textos sobre história da ciência sobressai um sobre Galileu,
de 1974. Nos textos sobre arte um de louvor ao neorrealismo, de 1962. E, dos textos
sobre cultura portuguesa, destaco os seus dois textos sobre Camões, de 1966 e
1970, nos quais busca pontes entre o Camões épico, materialista, e o Camões
lírico, idealista.
Já existia uma antologia de Egídio Namorado, Ponto de Vista, organizada
pelo próprio e publicada pela Vértice em 1958, com reedição em 1977 (prefaciada
por Ferrando Catroga), pelo que não é de estranhar que quatro textos coincidam
nos dois livros. Mas o seu livro de estreia saiu em 1945, tecendo críticas ao
Círculo de Viena: A Escola de Viena e Alguns Problemas de Conhecimento.
Não foi aliás o primeiro português a fazê-lo: o filósofo e mais tarde também
pedagogo Delfim Santos, que estudou em Viena, não ficou muito impressionado
pela doutrina que bebeu directamente na fonte (publicou em 1938 Situação
Valorativa do Positivismo, tese de doutoramento que não foi aceite pela Universidade
de Coimbra). Outros nomes críticos da Escola de Viena foram Vitorino Magalhães
Godinho, que escreveu em 1940 Razão e História, tese de licenciatura na
Universidade de Lisboa, e Vasco Magalhães Vilhena, marxista como os Namorados,
que escreveu em 1941 um livro intitulado Unidade da Ciência, tese de
doutoramento que foi reprovada em Coimbra tal como a de Santos (Vilhena defenderia
outra tese na Sorbonne e seria um dos exilados que regressou de Paris num dos
primeiros aviões após o 25 de Abril).
Conheci pessoalmente Joaquim Namorado, que me deixou uma forte impressão,
mas não o seu irmão Egídio. Mas foram-me úteis as traduções que ele fez na área
de Física Quântica, a sua teoria física de eleição: os textos seminais de Niels
Bohr e o manual de Física Atómica de Max Born, ambos publicados pela Gulbenkian.
Depois de ler os seus Escritos sobre Filosofia, Ciência e Arte só posso concluir
que gostaria de o ter conhecido.
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