Em antevisão, o capítulo do novo livro de João Paulo André sobre a história das mulheres na Química (sem figuras nem notas):
Em 1909, ano em que todas as instituições de ensino superior da Alemanha foram abertas ao sexo feminino, o químico (nobelizado) e filósofo alemão Wilhelm Ostwald (1853‑1932), no seu livro Grosse Männer [Grandes Homens], afirmava categoricamente que «as mulheres do nosso tempo, independentemente da raça e da nacionalidade, não se adequam a trabalhos científicos fundamentais». Quase oitenta anos depois, a filósofa norte americana Sandra Harding ainda frisava que «as mulheres têm sido mais sistematicamente excluídas de fazer ciência séria do que de realizar qualquer outra actividade social, excepto, talvez, participar numa frente de batalha». É legítimo, por conseguinte, questionarmo‑nos por que razão foi tão tardia a entrada, oficial, da mulher no mundo da ciência. Esta questão está, na realidade, associada a uma outra, recorrente ao longo dos tempos: seria a mulher capaz de fazer ciência? Desde a Antiguidade que prevalecia a convicção de que a sua natureza fraca a incapacitava de raciocínios rigorosos.
Antes de os médicos e filósofos da Antiga Grécia se terem pronunciado sobre a mulher, já a literatura a retratara como irracional, isenta de bom senso e maléfica. A título ilustrativo, A Ilíada e a Odisseia, de Homero, do século viii a. C., transmitem a ideia de ela ser perigosa, dada a sua incapacidade de controlar os impulsos, razão por que tinha de ser mantida debaixo de controlo. Por sua vez, no poema Os Trabalhos e os Dias, sensivelmente da mesma época, Hesíodo, ao narrar o mito de Pandora, a primeira de todas as mulheres, também alimentou a crença de que ela só criava problemas e infortúnios à sua volta. O cristianismo não lhe foi mais favorável, contribuindo para acentuar a misoginia dominante. Tanto a Bíblia Hebraica como o Novo Testamento Cristão não só mantiveram a mulher circunscrita à esfera familiar, como propagaram a ideia da sua sujeição ao homem: Deus criou Adão à sua imagem e semelhança e só depois é que criou Eva, a partir de uma costela daquele. E pior que tudo: foi ela que carregou com a culpa do pecado original (figura 0.1). Durante séculos a fio, do alto dos seus púlpitos, moralistas e pregadores dirigiram‑se ao sexo fraco fazendo‑o sentir o peso dessa responsabilidade bíblica.
São Paulo, que embora tenha afirmado «Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre; não há homem nem mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus» (Gálatas 3:28), também ordenou «calem‑se as mulheres na assembleia» (1 Coríntios 14:34), acrescentando que «se quiserem aprender alguma coisa, que perguntem aos seus maridos em casa» (1 Coríntios 14:35). Noutra epístola proferiu: «Não autorizo nenhuma mulher a ensinar nem a ditar leis ao homem» (1 Timóteo 2:12). Passagens como estas forneceriam os fundamentos teológicos e disciplinares da exclusão da mulher do exercício de funções públicas e da docência, dando matéria aos Pais da Igreja, sobretudo Tertuliano (c. 160‑c. 220), Jerónimo (c. 347‑420) e Agostinho (354‑430), para a perpetuação de uma imagem negativa do sexo feminino. Isidoro de Sevilha (c. 560‑636) chegou a afirmar que a palavra mulier (mulher) derivava de mollitia (moleza).
Figura 0.1 — Adão e Eva (1526), Lucas Cranach. Courtauld Institute of Art, Londres .
Por sua vez, Tomás de Aquino (1225‑1274), ao fazer a síntese da visão bíblica da mulher (herdeira de Eva, por conseguinte causadora de todos os infortúnios da Humanidade) com a de Aristóteles (um ser incompleto a quem mais não competia do que acolher e fazer brotar o fruto proveniente do homem) contribuiu para que a infirmitas mulieres («fraqueza da mulher») continuasse a ser um facto manifesto e indiscutível, levando a que muitas procurassem a vida monástica como única forma de salvação.
De acordo com o Livro de Enoque, um conjunto de textos apócrifos do Antigo Testamento (escritos sensivelmente entre os séculos iii e ii a. C.), duas centenas de anjos, sob a liderança de Azazel, desceram à Terra; movia-os o desejo dos prazeres carnais. Em troca terão ensinado às mulheres as artes alquímicas da metalurgia, do tingimento e da produção de cosméticos e de pedras preciosas. Tal mudança trouxe luxúria, impiedade e corrupção, pelo que a ira divina não tardou, tendo Azazel sido severamente punido. Contudo, algo era irreversível: os membros do sexo feminino conheciam já a alquimia!9 Mitologia à parte, a verdade é que a mulher, apesar da sua recorrente iliteracia, desempenhou um importante papel nas chamadas artes químicas (conjunto de práticas associadas à manufactura de remédios, perfumes, cosméticos, tintas, etc.)10, aspecto a que os historiadores de ciência têm vindo a dedicar uma atenção crescente nas últimas décadas. Com efeito, tal como Patricia Fara observa em Pandora’s Breeches, existem hoje concepções da evolução da ciência que partem do entendimento de que entre os participantes no processo científico também se contam pessoas cujas motivações poderão ser tão triviais como melhorar a alimentação, a saúde ou o conforto físico do ser humano, ou até mesmo a mera procura de riqueza ou de reconhecimento, em total contraste com visões mais tradicionais, nomeadamente de que o desenvolvimento científico é o resultado de saltos esporádicos, resultantes das contribuições de génios que se isolam do mundo e se dedicam a uma abnegada busca da verdade. Por conseguinte, ao invés de se centrarem exclusivamente nos grandes vultos e nas suas descobertas científicas, os historiadores têm também procurado investigar o trabalho de todos aqueles cujo facto de não pertencerem a universidades ou academias não impediu de contribuírem para o avanço da ciência. Trata‑se, afinal, dos que, em lugar de conhecimento intelectual, possuíam conhecimento prático, isto é, sabiam como fazer, designadamente os artesãos (oleiros, tintureiros, curtidores, chapeleiros, ourives, etc.) e toda uma série de profissionais como mineiros, navegadores ou herbalistas. Tem sido à luz desse entendimento que a contribuição da mulher para a evolução da química, enquanto praticante das artes químicas, tem despertado um cada vez maior interesse entre os historiadores.
A propósito de novas historiografias, seria imperdoável não referir aqui a francesa Hélène Metzger (1889‑ ‑1944), filósofa e historiadora de ciência que se dedicou em particular à história da química (facto a que a sua formação em cristalografia não terá sido alheia). De origem judaica, foi vítima do Holocausto, morrendo aos 54 anos nas câmaras de gás de Auschwitz.13 Thomas Kuhn, autor de A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), uma obra que é considerada um marco na história e filosofia da ciência, inclui Metzger no restrito rol de intelectuais que o influenciaram. Posto isso, são oportunos alguns esclarecimentos sobre este livro. Antes de mais, somente grosso modo 1se lhe reconhecerá uma linha cronológica. Os seus capítulos estão alinhados numa sequência que, poderá dizer‑se, respeita alguma ordem temporal, mas per se abrangem, por vezes, períodos assaz longos (basta pensar que a alquimia foi praticada na Europa desde a Idade Média até ao século xviii, só para referir um exemplo). Outra explicação necessária diz respeito ao seu âmbito. Pelas excessivas dimensões que teria se contemplasse a bioquímica, optou‑se por o restringir à química, tout court. As únicas excepções são o estudo da cinética enzimática efectuado por Maud Menten (1879‑1960) e Leonor Michaelis (1875‑1949), dadas as suas bases químico‑físicas, e as investigações que, a despeito de pertencerem a domínios mais próximos das ciências da vida, foram reconhecidas com o Nobel da Química, ou cujos autores foram nomeados para tal, tendência essa que, de resto, se tem acentuado ultimamente. Com efeito, dez dos últimos dezanove Prémios Nobel da Química (até 2021) consagraram cientistas que se distinguiram na bioquímica ou na biologia molecular. De entre esses, os de 2009 e 2020, respectivamente por «estudos da estrutura e da função do ribossoma» e «desenvolvimento de um método de edição do genoma», foram atribuídos a mulheres, pelo que serão discutidos no capítulo xii. A descoberta da estrutura do ADN também merecerá atenção, porque, não obstante ter garantido a três investigadores o Nobel da Fisiologia ou Medicina, em 1962, teve toda uma base cristalográfica desenvolvida por uma química‑física, Rosalind Franklin (1920‑1958), já falecida quando o prémio foi atribuído.
O critério adoptado força a não inclusão de importantes vultos da ciência como Gerty Theresa Cori (1896‑1957) — Nobel da Fisiologia ou Medicina em 1947, conjuntamente com o seu marido, Carl Ferdinand Cori (1896‑1984), pela descoberta do processo da conversão catalítica do glicogénio —, ou Gertrude B. Elion (1918‑1999) — que obteve essa distinção em 1988, partilhada com James Whyte Black (1924‑2010), pelos métodos inovadores de desenvolvimento racional de fármacos (por exemplo do antirretroviral AZT, para o tratamento da SIDA, e do aciclovir, contra os vírus Herpes simplex e Herpes zoster). Contudo, o mesmo critério tem a vantagem de permitir abordar figuras femininas porventura menos conhecidas. Em verdade, algumas delas, não obstante terem sido indicadas para o Nobel da Química, quase não foram, até à data, objecto de estudo dos historiadores de ciência.
Ainda duas notas, prendendo‑se a primeira com o termo «ciência». Dado que até ao século xix o estudo da Natureza foi chamado de Filosofia Natural, em rigor não se deveria recorrer a tal termo para designar o conhecimento do mundo natural de que se dispunha até então. «Ciência», no entanto, era um vocábulo já exis‑ tente — proveniente do latim scientia —, e significava conhecimento ou saber, mesmo que não fosse relativo à Natureza. Com efeito, referia‑se a um «conjunto de experiências ou de conhecimentos aprofundados sobre determinada matéria», fosse ela história, gramática, retórica, etc., ou até mesmo uma arte. Jane Austen deu‑nos disso um bom exemplo no capítulo vi de Orgulho e Preconceito (1813), quando o Sr. Darcy afirma que «Qualquer selvagem sabe dançar». O seu interlocutor, Sir William Lucas, que acabara de ver Binley juntar‑se ao grupo de dançantes, sorri e diz‑lhe: «O seu amigo move‑se de forma encantadora; e não tenho a mínima dúvida de que o próprio Sr. Darcy é um adepto da ciência». De modo idêntico, ao longo das páginas que se seguem, encontrar‑se‑á alguma flexibilidade na utilização do referido termo. segunda nota prende‑se com as traduções para português de títulos e de passagens de obras, assim como de extractos de correspondência. Salvo indicação em contrário, são da minha responsabilidade.
Por fim, uma breve apresentação do conteúdo do livro. Os leitores encontrarão no capítulo i as primeiras mulheres que se dedicaram a práticas que envolvem processos físico‑químicos, designadamente a mani‑ pulação e a conservação de alimentos, assim como a perfumaria das primeiras civilizações. São também discutidos o pensamento grego da Antiguidade e a alquimia de Alexandria. No capítulo ii destacam‑se a vida monástica, a participação da mulher na alquimia europeia e a querelle des femmes — debate literário e filosófico sobre a alegada inferioridade da mulher, inaugurado no início do século xv por Cristina de Pi‑ sano. O capítulo iii é dedicado aos «livros de segredos» femininos — receituários de medicina caseira, cosmética e alquimia que alcançaram grande popularidade a partir do Renascimento. O capítulo iv centra‑se na Inglaterra do século xvii, numa altura em que, ainda sob a influência da iatroquímica paracelsiana, o mecanicismo e o atomismo começavam a ganhar terreno. O capítulo v decorre maioritariamente em França, no Século das Luzes, o século que trouxe a modernidade à química e ao mundo. O capítulo vi contempla algumas das importantes obras escritas por mulheres ou para mulheres, em particular quando ainda lhes era praticamente impossível a obtenção de uma instrução formal. O capítulo vii apresenta os sistemas de ensino de diversos países e o acesso das primeiras mulheres às universidades. No capítulo viii surge a questão do ensino de matérias científicas no contexto das lides domésticas — a chamada Ciência ou Economia Doméstica. As heroínas do capítulo ix são as primeiras mulheres que se dedicaram à investigação em química ou a car‑ reiras técnicas neste domínio, bem como as primeiras associadas das agremiações profissionais e científicas. O capítulo x tem como protagonistas as químicas que trabalharam com parceiros masculinos, fosse como suas assistentes, fosse numa relação de equidade. Por sua vez, no capítulo xi surgem as químicas que trabalharam lado a lado com os maridos. O capítulo xii, o último, é dedicado às galardoadas com o Nobel da Química, assim como às cientistas que, embora nomeadas, não o receberam. Comparecem ainda neste capítulo algumas figuras femininas que, a despeito de não terem sido indicadas para este prémio (tanto quanto é do domínio público), teriam igualmente sido suas dignas merecedoras.
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