segunda-feira, 31 de outubro de 2022

MÚSICA E CIÊNCIA


Meu artigo de 2020 saído na revista Millennium
(2, ed. esp. 5, pp 15-18):

 A música é uma arte, não podendo ser inteiramente compreendida pela ciência. Há até quem fale de uma espiritualidade ligada à música. A relação entre a música e a ciência é, porém, bem mais estreita do que normalmente se pensa. Em primeiro lugar, e independemente da respectiva percepção qualquer peça musical é um conjunto de sons e os sons são ondas que se propagam no ar ou noutro meio, sejam ou não medidas. A acústica (de um étimo grego que significa “para ouvir”) é a parte da Física que se ocupa das propriedades dos sons. 

A acústica remonta a Pitágoras, o filósofo e matemático grego que, no século VI a.C., terá sido o primeiro a associar um som emitido por uma corda vibrante a um comprimento, matematizando assim o som. Não chegaram até nós livros escritos por ele, mas apenas uma tradição oral que só mais tarde foi fixada em livro. Pitágoras – o mesmo do famoso teorema de Pitágoras - terá reparado que uma corda afastada da sua posição de equilíbrio emitia um certo som, mas, se diminuíssemos o comprimento dessa corda, o som era outro, mais agudo (ou mais alto), ou, em linguagem moderna, de frequência maior (Fig. 1). Essa terá sido uma das primeiras experiências de física de sempre. Podemos verificar esse fenómeno usando as cordas de uma guitarra. Pretendendo saber por que razão certas associações de sons musicais eram mais agradáveis ao ouvido do que outras, Pitágoras foi mais longe do que a verificação da proporcionalidade inversa entre o comprimento da corda e a altura do som. Reparou que, quando os comprimentos das cordas vibrantes, estavam numa proporção de inteiros (2, 3, 4, etc.) os sons combinavam harmoniosamente. Chamam-se “harmónicos” a esses sons, do étimo greco-latino que significa “ajuste, combinação, concordância”. Uma única corda pode, quando tangida, dar um conjunto de harmónicos: existe um som dito fundamental, o de frequência mais baixa, e um conjunto de sons possíveis, os harmónicos, cuja frequência é um múltiplo inteiro desse som (2,3,4, etc. vezes). Os primeiros harmónicos são os mais relevantes por serem os mais perceptíveis. A relação de frequências entre o som fundamental e o primeiro harmónico chama-se “oitava”. Na notação musical que usamos hoje de sete notas - dó, ré, mi. Fá, sol, lá, si, que formam a chamada “escala diatónica” - o dó que aparece a seguir ao primeiro, na sequência do si, está uma oitava acima. Portanto, a notação musical moderna tem por base a física e a matemática, as duas em útil intimidade. 

Esta visão pitagórica da música, que introduz a ideia de harmonia numa base matemática, conduziu naturalmente a outras tentativas de relacionar a harmonia do mundo – entendendo-se por harmonia num sentido lato a conformidade das partes (para alguns autores harmonia é sinónimo de beleza) – com a matemática, usando esta a linguagem da geometria ou da aritmética. E, uma vez que a música estava associada a números, passou-se a associar partes do cosmos à música. Como, ao observar o movimento dos astros, se verificou que ele podia ser descrito pela geometria ou pelos números, logo se passou a falar, ainda no tempo dos antigos gregos, de “música das esferas” ou “música universal”. Talvez o próprio Pitágoras, ao trabalhar em astronomia, tenha pensado que os planetas podiam ser associados a notas musicais. Só se conheciam então os planetas visíveis à vista desarmada: Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno. Nesta ordem de ideias, as velocidades desses planetas estariam entre si como notas musicais: Mercúrio foi associada ao fá, Vénus ao sol (a nota), Marte ao ré, etc. A Lua era um lá e o Sol (a estrela) um si. O platonismo, ao incorporar estas ideias pitagóricas, ajudou a difundi-las. A apropriação pelo Cristianismo, durante a Idade Média, do pensamento grego contribuiu para a consolidação destas teorias, que se enraizaram na cultura. Vários pensadores da Idade Média falam da “música das estrelas”. Por outras palavras, a acústica e a astronomia estavam ligadas, embora a “música da esferas” não fosse audível pelos nossos ouvidos, mas tão só e ainda que com dificuldade pelo nosso intelecto.

 No século XVII, com base nos dados diligentemente colectados pelo seu extraordinário mestre, o dinamarquês Tycho Brahe, o astrónomo alemão Johannes Kepler matematizou o movimento dos planetas de uma maneira que sobreviveu incólume ao tempo e que por isso se transmite na escola. Segunda a Primeira Lei de Kepler, as órbitas dos planetas não são circunferências, mas sim elipses com o Sol num dos focos. E, de acordo coma a segunda, o valor da velocidade de um planeta não é constante, mas sim variável: aumenta quando o planeta se aproxima do Sol e diminui quando se afasta. As velocidades máximas dos planetas em órbitas vizinhas estariam em proporção harmónica e o mesmo aconteceria com as mínimas. Para Kepler, portanto, os planetas percorreriam certos intervalos musicais, que exibiam regularidades uns com os outros. Cada um não seria descrito apenas por uma nota, mas sim por um conjunto de notas, uma melodia (Fig. 2). Vénus, que é mais rápido, estava associado a sons mais agudos do que Júpiter, que é mais lento. No coro celestial que era imaginado no universo (lembre-se que este se restrigia ao sistema solar) Vénus fazia de soprano, enquanto Júpiter fazia de baixo, tendo a Terra uma voz intermédia. O título da obra de Kepler, onde ele expõe esta sua teoria Harmonices Mundi (A Harmonia do Mundo, 1609) é eloquente sobre o conteúdo. Mas esta teoria kepleriana é, sabemos hoje, demasiado ingénua. Admitia excepções para planetas então conhecidos e não tinha, por exemplo, um carácter preditivo para os planetas que foram mais tarde encontrados. A descrição musical do sistema solar foi abandonada em favor de uma teoria estritamente matemática. O inglês Isaac Newton, com base nas leis de Kepler (a Terceira Lei acrescenta que existe uma relação matemática entre o período do planeta e o semieixo maior da elipse), deduziu a sua Lei da Gravitação Universal, que tem uma expressão matemática simples. Apesar das muitas divagações e erros que se fizeram com base nos conceitos pitagórico-platónicos, é lícito dizer que as ideias modernas sobre o cosmos são imensamente devedoras deles. 

 O astrónomo e físico italiano Galileu Galilei, contemporâneo de Kepler, foi o primeiro a fazer observações com o telescópio, descobrindo por exemplo as luas mais próximas de Júpiter, cuja existência abonava a existência de outros centros orbitais para além do Sol e da Terra. Galileu tem uma estreita relação com a música. O seu pai, Vincenzo Galilei, era músico: tocava alaúde, tendo transmitido a arte de tocar esse instrumento ao seu filho cientista, que não passou de músico amador (pelo contrário, um irmão de Galileu, Michelagnolo, saiu ao pai, tornando-se alaudista). Mas, mais do que instrumentista, Vincenzo foi um grande pioneiro de uma nova arte musical ao integrar, no final do século XVI, um agrupamento, designado por Camerata Florentina, que introduziu um novo género – a ópera – quando tentava recriar o teatro grego. E, como se isso fosse pouco, foi também um teórico da música. Estudando as cordas vibrantes que tinham interessado Pitágoras, fez uma descoberta adicional, que pode ser vista como a entrada da não-linearidade nas ciências físicas: as frequências variavam com a raiz quadrada da tensão aplicada na corda, o que concluiu após pendurar vários pesos numa das suas extremidades. É assaz curioso que a física moderna tenha nascido num ambiente que combinava a música com a física! 

Um amigo de Galileu, o padre francês Marin Marsenne, aprofundou as investigações de Vincenzo Galilei, No seu livro mais influente L’Harmonie universelle (A Harmonia Universal, 1636) juntou numa só fórmula a lei de Pitágoras e a lei de Vincenzo: a lei de Marsenne. Aém disso, teve um papel na agregação dos físicos e matemáticos do seu tempo.

 A discussão da harmonia musical prosseguiu, uns olhando mais para a música e outros olhando mais para a física. No século XVIII, o compositor barroco francês Jean-Philip Rameau escreveu o Tratado da harmonia reduzida aos seus princípios naturais (1722) e, no século XIX, o físico e médico alemão Hermann von Helmholtz escreveu o livro Ciência das sensações do som como uma base fisiológica para a teoria da música (1863), onde, para além de outras contribuições para a acústica, introduziu um sistema preciso para definir as notas. 

Há dois anos, no dia 21 de Março de 2018, quando a Primavera se iniciava, tive o gosto de proferir uma conferência sobre “Música e Ciência” no Instituto Politécnico de Viseu, ao qual se seguiu um concerto por uma formação de jovens percussionistas da Orquestra Metropolitana de Lisboa, que tocaram A Sagração da Primavera (1913), do grande compositor russo Igor Stravinsky. Nessa ocasião referi que esse concerto provocou uma revolução na música, trazendo o contaste das dissonâncias onde antes reinava a harmonia, A obra foi pateada na sua estreia em Paris. Lembrei que, no mesmo ano de 1913, o físico dinamarquês Niels Bohr revolucionou a Física, ao propor uma nova imagem do átomo, em que os electrões percorriam órbitas em redor do núcleo atómico, como se fossem planetas. A grande diferença relativamente à descrição clássica das órbitas planetárias é que as órbitas electrónicas não podem ser quaisquer nem as energias associadas às órbitas: uma órbita de raio maior correspondia a energia maior e portanto maior frequência. A energia dos electrões era dada por números inteiros. Isto é, Pitágoras estava de volta: os números inteiros entravam agora não no domínio astronómico, mas no domínio atómico. 

A fórmula de Bohr para as energias electrónicas ajustava-se tão bem bem às riscas dos espectros atómicos conhecidas há muito que o físico suíço (mais tarde também norte-americano) Albert Einstein viu logo que Bohr estava certo. Tal não o impediu de, mais tarde, levantar dificuldades conceptuais aos desenvolvimentos da teoria quântica, quando esta passou a assentar em ideias probabilísticas. É curioso assinalar que Einstein tocava violino, com um nível apenas amador. Ssó a música lhe dava maior prazer do que a física. Foi ele que disse que “A música de Mozart é tão pura e bela que a vejo como um reflexo da beleza interna do universo.” 

A revolução na música no século XX haveria de ir mais longe do que a música de Stravinsky. Nos anos 20 o compositor austríaco Arnold Schoenberg, que admirava Rameau (tratou a sua obra no Tratado da Harmonia, 1911), propôs que, na chamada “escala cromática” da música ocidental, formada pelas sete notas padrão da escala diatónica e por mais cinco sons intermediários, todas as doze notas deveriam ser tomadas como equivalentes. Organizou nessa base grupos de doze notas a que chamou séries, que podia manipular por operações de simetria. Esta estranha música ficou conhecida pelo nome de “dodecafónica”. Schoenberg era músico e não cientista: acreditava em numerologia, isto é, no poder mágico dos números para prever o futuro, o que não passa de uma posição pseudocientífica. Mas há estranhas coincidências: morreu no dia em que acreditava que isso ia ocorrer com base num horóscopo que um astrólogo lhe tinha fornecido. Consta que a sua última palavra foi “harmonia”.

  A física moderna está profundamente assente no tema da harmonia para descrever as partículas e as forças fundamentais. No quadro da teoria quântica, e usando a matemática no tratamento de simetrias mais ou menos abstractas, chegou a descrições muito fieis da realidade submicroscópica. De certo modo Pitágoras e Platão tinham razão: no fundo, tudo é número e as proporções importam. Mas um problema da descrição fornecida pela física moderna é que a matemática subjacente não é perceptível por quem não tenha feito a necessária aprendizagem (já dizia Fernando Pessoa, ou melhor Álvaro de Campos, que “o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo./ O que há é pouca gente para dar por isso”). Há uma relação entre a matemática e a música, mas as pessoas apreendem muito mais facilmente a música do que a matemática.

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