quarta-feira, 12 de outubro de 2022

PREFÁCIO: «Voando Com Giorgio Parisi»


Meu prefácio ao livro que acaba de sair na Bertrand: «A minha história na Física, O voo dos estorninhos e outros sistemas complexos», do italiano Giorgio Parisi, Nobel da Física de 2021:

  Não costuma haver controvérsias sobre o mérito dos laureados com o Prémio Nobel da Física. E essa regra manteve -se quando, em Outubro de 2021, a Academia de Ciências Sueca anunciou que metade do Prémio ia para o italiano Giorgio Parisi pela sua «descoberta das relações entre desordem e flutuações em sistemas físicos que vão das escalas atómicas às planetárias». A outra metade foi divida irmãmente entre o japonês Syukuro Manabe e o alemão Klaus Hasselmann pela sua «modelação física do clima da Terra, pela quantificação da variabilidade e pela previsão segura do aquecimento global». A Academia reuniu as duas metades sob o título de «sistemas complexos»: todos os premiados deram «contribuições pioneiras para a nossa compreensão de sistemas físicos complexos». 

É das maravilhas dos sistemas complexos que trata o presente livro de divulgação científica, a primeira obra a sair da  pena do autor após ter recebido o mais prestigiado prémio científico do mundo (só tem outro livro desse género, A Chave, a Luz e o Bêbedo. Como se desenvolve a investigação científica, publicado pela Gradiva em 2022). Parisi convida -nos a fazer, com ele, um voo sobre os sistemas complexos, sistemas formados por pequenas partes com interacções complicadas, que podem exibir comportamentos colectivos bastante curiosos. O todo é maior do que a soma das partes. O mais interessante é que a descrição do todo não exige o conhecimento pormenorizado das partes. Não raro o que se sabe sobre um sistema complexo pode aplicar -se a outro que, aparentemente, é muito diferente: os físicos adoram descortinar paralelismos escondidos na enormíssima profusão de fenómenos naturais. O voo de Parisi ora é alto, para fornecer uma panorâmica, ora é baixo, rasante mesmo, para vermos mais de perto um ou outro caso particular. O autor leva-nos a voar com ele, prezando a inteligência do leitor, não o infantilizando, mas dispensando equações, com o intuito de atrair quem não tenha formação matemática (foi outro sábio italiano, Galileu Galilei, quem afirmou que «o livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos»). O seu trabalho científico é percorrido à vol d’oiseau com graça e beleza. 

Este livro apresenta não só os sistemas complexos, mas também e principalmente o modo como se faz a ciência. Para isso são dados vários exemplos. O primeiro é o voo dos estorninhos, que explica o título original (In un volo di storni): Parisi iniciou em 2008 estudos desses pássaros com um impressionante comportamento gregário. Eles formam bandos que evoluem em padrões tão diversos como curiosos, com manobras rápidas que parecem bailados. Em Portugal os estorninhos são aves comuns (os estorninhos pretos passam cá todo o ano e os estorninhos -malhados, uma espécie protegida, só cá passam a estação fria). Na região do Oeste, no Bombarral, há uma aldeia dos Estorninhos e o mesmo acontece na serra algarvia, não longe de Tavira. Pois o que é que têm os físicos a dizer sobre os estorninhos, que pareciam à partida ser um assunto restrito à zoologia? É que os bandos de aves são sistemas complexos, cujas leis o físico procurou descobrir. Como nos conta Parisi logo no início, a sua equipa fotografou os estorninhos de Roma para tentar perceber o seu extraordinário voo colectivo. O essencial da evolução do grupo é a manutenção das distâncias de cada um aos seus vizinhos mais próximos. A resposta rápida do bando às inflexões dos seus dirigentes são surpreendentes. Talvez a análise destes processos nos possa ajudar a compreender outros processos colectivos, incluindo aqueles que são feitos pelos humanos quando seguem as modas que vão aparecendo.

 Parisi, o sexto italiano a receber o Prémio Nobel da Física (o mais conhecido é talvez o genial Enrico Fermi, que ganhou o Nobel de 1938 pela sua descoberta de novos elementos pesados), é um romano dos quatro costados. Nascido na Cidade Eterna pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial (mais precisamente, em 1948), doutorou -se em 1970 na Universidade de Roma La Sapienza, uma das mais antigas universidades do mundo. O seu mentor, nos tempos tumultuosos que se seguiram ao Maio de 1968, foi o famoso físico italiano Nicola Cabibbo, especialista em física de partículas, também dita física de altas energias: em ciência ter bons mestres ajuda muito. Trabalhou depois dez anos no Laboratório Nacional em Frascati, perto de Roma, período durante o qual beneficiou de estadas científicas nos Estados Unidos e em França. De 1981 a 1992, Parisi foi professor de Física Teórica na Universidade de Roma Tor Vergata, voltando depois à sua alma mater, para ocupar a cátedra de Física Quântica. Uma das suas maiores glórias foi ter presidido à Academia dos Linces, sediada em Roma, que é a mais antiga academia científica do mundo. Remonta a 1603, tendo tido Galileu como membro. Depois de dissolvida, reapareceu em força a meio do século xix. A Academia das Ciências de Lisboa organizou, em 2022, uma sessão conjunta com a Academia dos Linces, onde Parisi apresentou uma comunicação por via telemática. Porquê linces? Porque os observadores científicos necessitam de ter uma capacidade de observação só comparável à desses felídeos. A presidência dessa prestigiada academia esteve longe de ser a única distinção antes do Nobel: Parisi, cujos trabalhos totalizam quase cem mil citações, um número muito invulgar, recebeu os maiores prémios da área da física. O Nobel, ao contrário de algumas inesperadas inflexões dos estorninhos, não surpreendeu ninguém. 

Parisi, à semelhança de Fermi (romano como ele), embrenhou- -se em vários ramos da física, desde as partículas elementares, no início, ao voo dos estorninhos, mais recentemente, tendo também investigado as idades do gelo da Terra. O seu trabalho mais citado foi publicado em 1977, em parceria com o seu colega Guido Altarelli. Situando -se na área da física de partículas, diz respeito à liberdade que os quarks têm quando estão muito próximos uns dos outros dentro dos protões e neutrões (um grupo de três quarks dificilmente se separa, tal como escravos agrilhoados, que muito perto uns dos outros «se sentem» livres). Mas o trabalho que verdadeiramente o celebrizou foi apresentado numa série de artigos iniciados em 1979 e coroado com um livro em coautoria publicado pela World Scientific em 1987. O tema são os vidros de spin, ligas metálicas em que uma das espécies constituintes tem um comportamento magnético, isto é, os seus átomos têm tendência para alinhar com os seus semelhantes (spin é um termo técnico para designar os átomos magnéticos). Esses materiais são chamados vidros por  as posições dos spins serem aleatórias tal como as posições das partículas constituintes dos vidros. A relevância dos resultados levou a que esses fossem aplicados noutras áreas da ciência como as ciências de computação. 

Uma marca forte deste livro consiste no facto de o autor contar, a partir da sua própria experiência, como é o trabalho científico. O cientista tem de estar obcecado pelo assunto, de modo a pensar muito nele. Precisa de intuição, que por vezes faz a sua mente saltar para outro domínio: Parisi «tropeçou» no método que revolucionou a física dos vidros de spin quando ainda trabalhava em questões de física de altas energias. Para se distinguir, tem de se ser capaz de fazer apostas audaciosas. E tem, em diálogo, de convencer os colegas da justeza dessas apostas. A minha história preferida deste livro anda à volta de uma demonstração que Parisi referiu numa conferência em Paris como solução de um problema muito intrincado. Ela tinha -lhe sido dada por dois colegas que trabalhavam numa área particular. Quando um outro físico lhe perguntou como é que isso era possível, o físico italiano disse -lhe os nomes dos dois colegas. Sabendo quais eram os métodos que eles usavam, o interlocutor, sem qualquer explicação adicional, concluiu passados poucos segundos como era a demonstração. Afinal era simples, apesar de engenhosa. Em física, como noutros ramos da ciência, por vezes há telepatia. E a física, que parece à partida muito difícil, acaba por ser divertida, como a montagem de um puzzle em conjunto. Como diz neste livro um amigo de Parisi: «Ser físico é uma trabalheira, mas sempre é melhor do que trabalhar.» 

Cumpre ainda destacar a defesa que Parisi faz, nesta obra como noutras ocasiões ao longo da sua vida, da ciência fundamental. Cita o norte-americano Richard Feynman, físico teórico também nobelizado que resolveu alguns problemas  práticos como a causa do desastre do vaivém Challenger da NASA: «A ciência é como o sexo, também tem consequências práticas, mas não é por isso que o fazemos.» O sábio italiano encabeçou em 2016 um grande movimento de cientistas em favor da investigação fundamental, queixando -se da falta de atenção dos governos. Deixando a «torre de marfim» do cientista, ele não fugiu à acção política quando ela urgia. Entre nós faz falta quem o imite, encabeçando a comunidade científica, na senda do malogrado José Mariano Gago, para conseguir a necessária ascensão da ciência. 

Em entrevistas recentes, Parisi tem revelado alguns aspectos da sua vida privada. Gosta de ler (é fã de Isaac Asimov, o prolixo autor de ficção científica e também divulgador de ciência) e de caminhar. Nos últimos anos, interessou -se pela dança: aprendeu danças populares gregas e forró brasileiro. Diz que tem pena de nunca ter ido ao Brasil, mas tece encómios às músicas de Luiz Gonzaga, o «Rei do Baião», e ao livro Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa.

 Por último, é justo destacar a palavra de apreço que o autor deixa, no final, para Anna Parisi (que não tem com ele qualquer ligação de parentesco), por ela o ter ajudado neste livro. Essa sua colaboradora é uma italiana licenciada em Física que enveredou pela carreira de editora e escritora de livros juvenis de ciência. Fundou a editora Lapis, na qual criou a colecção Ah, saperlo!, com direcção científica de Giorgio Parisi. Quatro títulos dessa colecção, que já foi distinguida com vários prémios, foram publicados em Portugal entre 2005 e 2008 pela editora Principia: Números Mágicos e Estrelas Errantes; Asas, Maçãs e Telescópios; O Fio Condutor e Depende (este último é, claro, sobre a teoria da relatividade de Einstein). O mais recente Nobel da Física reconhece a imprescindibilidade da difusão da física para todos, em particular para os mais jovens. Para ele a física não  é apenas um assunto dos físicos: interessa a todos, devendo fazer parte da nossa cultura. 

Estou certo de que a leitura deste livro, bem traduzido por Maria Ferro, vai contribuir para alargar a cultura científica nacional. Pode até acontecer que faça uma revoada na mente de alguns leitores, tal como o espectacular voo dos estorninhos no céu. Está de parabéns a Bertrand por colocar os leigos interessados a par dos últimos desenvolvimentos científicos na área dos sistemas complexos, pela voz de um dos mais notáveis cientistas contemporâneos. 

Coimbra, 30 de Maio de 2022

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