terça-feira, 25 de outubro de 2022

A libertação

Por João Boavida

O século XVIII alterou profundamente a conceção do mundo e do homem até aí dominante.

Como se sabe, as coisas raramente acontecem subitamente mas, pelo contrário, são o resultado de múltiplos fatores, de encadeamentos anteriores e da contribuição de muita gente.

O processo que eclodiu no século XVIII vem muito detrás, costuma considerar-se como tendo origem no Renascimento, entre meados do século XIV, finais do século XVI. Mas a valorização da natureza é anterior, pois já do século XIII, Rogério Bacon começou a aplicar métodos de observação objetiva e concebeu a ideia de “lei da natureza” que, séculos depois, se tornou absolutamente determinante. O que prova que a própria Idade Média não é tão monolítica como muitos querem fazer crer. 

O Renascimento ou recuperação dos autores clássicos deu condições de desenvolvimento a um humanismo, desencadeou uma estética que nunca mais deixou de se sentir e impulsionou uma libertação que não mais parou. A recuperação dos autores clássicos implica uma valorização do humano, da sensibilidade, da alegria de viver, que os medievais não conheciam ou que entendiam quase sempre como pecaminosa.

Mas este processo de libertação continuou, primeiro, pelos racionalistas, depois, ou quase em simultâneo, pelos iluministas e, nos finais do século XVIII princípios do XIX, pelos românticos, que de certo modo a eles se opõe, mas, por outro lado, os continua e sem os quais teria muito provavelmente sido impossível.

O Racionalismo (Francis Bacon, René Descartes, John Locke, Baruch Espinosa, etc.) vem valorizar a razão humana e a necessidade de o homem enfrentar, com o instrumento racional de que dispõe, os problemas que se lhe colocam.

Segundo os racionalistas, o verdadeiro conhecimento era racional; não só no que diz respeito à origem (ideias inatas) como no que respeita à formulação de juízos e raciocínios e sua verificação através das leis da lógica, que já vinha de Aristóteles, e a modernidade reformulou para uso dos novos métodos de investigação.

Desta atitude e desta metodologia deriva o processo de matematização da ciência e a ideia de uma estrutura matemática no universo, ou, pelo menos, de uma realidade quantificável. O que privilegiava as novas formas de recolher informação e de obter conhecimentos, válidos através da observação e da experimentação, isto é, de um conhecimento cada vez mais livre dos ensinamentos da física aristotélica e da cosmologia de Ptolomeu.

Assim se foram valorizando os aspetos positivos da realidade e, simultaneamente, se foi enfraquecendo e desacreditando uma visão teológica predominante na Idade Média. Newton (1643-1727) é provavelmente o expoente máximo deste processo, tornando-se o paradigma da física moderna até Einstein.

É bom não esquecer, no entanto, que este processo levou séculos. 

O Iluminismo, por sua vez, e em articulação com esta nova mentalidade em evolução, veio valorizar o saber, “as luzes”, que tirariam das trevas as mentes humanas, que libertariam os povos de servidões atrofiantes e gerariam contínuo progresso.

Homens como Voltaire, D’Lambert, Diderot, Rousseau, David Hume, Adam Smith, estão imbuídos da certeza do valor do conhecimento, e do poder que ele tem como agentes de transformação modernizadora. E que, na política, deu o absolutismo iluminado. 

Veja-se o que fez o Marquês de Pombal para modernizar o país, e ter-se-á uma ideia do que eles representaram.

E assim, utilizando as capacidades que são especificamente humanas valoriza-se o próprio ser humano. 

A partir do momento em que é privilegiada a recolha objetiva dos factos e dados da natureza, posta a razão ao serviço da sua interpretação e valorizadas, “as luzes”, vai alterar-se o modelo mental e psicológico anteriormente dominante. O hábito de pensar racionalmente, e a crença nas suas possibilidades, torna mais nítida a especificidade humana no seio da natureza e, simultaneamente, desenvolve a sua autonomia e o seu poder transformador.

Noutra ordem de ideias, a partir da conceção de um contrato social, em Rousseau (1712 - 1778) ou de uma separação de poderes, em Montesquieu (1689 - 1755) vão-se modificando as regras e os modos de os humanos se organizarem socialmente, teoriza-se o estado moderno e dá-se base às democracias ocidentais. 

E, com isso, os indivíduos ganham outras asas e sentem-se não só seres livres, mas também como tendo direito à liberdade e à intervenção política. 

Com a glorificação da razão como entidade original e última do ser humano, e a valorização da capacidade de pensar a partir de princípios universais, isto é, de todos os seres humanos serem capazes de raciocinar de idêntica maneira, gera-se a crença num entendimento universal, ou seja, que se nos impõe obrigatoriamente.

Sendo a razão humana aquilo pelo qual todos os humanos se identificam e através dela se podem entender, é possível ter esperança, como pensava Kant (1724 - 1804), numa “paz perpétua”, pois o ser humano, enquanto ser racional e participante dessa racionalidade, tem a capacidade de captar a universalidade da lei. 

Também por isso, a lei moral está inscrita em cada um de nós, e a nossa ação moral deve reger-se por essa lei, independentemente das vantagens que possa obter ao agir moralmente, e das desvantagens de uma ação condenável. Mais até, se agirmos moralmente para obtermos vantagens, ou por receio de castigos, a nossa ação pode ser útil e bem vista aos olhos dos outros, mas não é moralmente válida. 

Atreve-te a pensar por ti próprio, dizia Kant, a tua racionalidade é, de algum modo, uma partícula dessa mesma racionalidade. 

O já referido Jean Jaques Rousseau trouxe outra valiosa contribuição para alterar a visão que se tinha do mundo e da sua organização e funcionamento. A partir dele perdeu crédito a ideia segundo a qual os acontecimentos do mundo manifestavam a vontade de Deus, que vinha do Antigo Testamento e de castigos divinos infringidos aos pecadores, como no Dilúvio e em Sodoma e Gomorra, por exemplo. 

Estes fenómenos passaram a ser considerados como resultantes de forças naturais e não comandados por razões teológicas. Segundo Rousseau, Deus criara o Mundo, mas dera-lhe leis próprias para se governar e a Natureza era a manifestação mais maravilhosa dessa organização. É conhecida a explicação do Terramoto de Lisboa como um fenómeno natural, contra a interpretação tradicional de um castigo divino pelos muitos pecados, neste caso, dos lisboetas.

Mas, como diria Voltaire (1694 - 1778), como os cidadãos de Lisboa não seriam por certo mais pecaminosos que os de outras cidades, houvera, no caso, se assim fosse, uma grande injustiça divina, o que era inaceitável.

É bom não esquecer que a mentalidade providencialista ainda funciona em muitas pessoas, e mesmo os que nela já não acreditam ainda às vezes, mesmo sem darem por isso, se apanham a pensar nestes termos. Ao libertar-se de uma conceção providencialista, o seu humano ganhou uma autonomia como nunca tivera.

Ao dar ao homem, possuidor de razão, uma radical autonomia moral, transformou esta, de heterónoma em autónoma, e, ao ser humano, de temente a Deus em senhor de si mesmo. O que deixou os seres humanos livres de condicionamentos éticos e ontológicos que ainda vinham da Idade Média, passando a obedecer somente à sua consciência. Isto representou um passo enorme na afirmação do seu poder, e uma liberdade que, se bem que muito mais exigente, ficou praticamente sem limites exteriores, a não ser os judiciais.

O Romantismo, catapultado por estas conquistas, vem trazer-lhe novos contributos que, em muitos aspetos, vão, por sua vez, reformular conceções anteriores. Com os românticos, a Natureza tornou-se num imenso campo potencial e inspirador e a cultura popular o fundamento e a razão de ser dos indivíduos e das nações. São recuperados e valorizados os contos tradicionais (vd. por exemplo, Os contos tradicionais portugueses, recolhidos por Teófilo Braga, os Contos, dos irmãos Grimm, na Alemanha, os de Hans Christian Anderson, na Dinamarca, os de Jacques Perreaut, em França), tal como as tradições culturais nas suas particularidades, de que as Lendas e narrativas, de Herculano, ou Romanceiro, de Garrett são exemplos conhecidos.

E, pela mesma dinâmica, as comunidades e nacionalidades ganham um grande incremento a partir das suas particularidades e valores. Em termos políticos há a valorização dos indivíduos enquanto cidadãos, a expansão dos direitos civis, a consolidação dos estados e a desvalorização das hierarquias sociais, à custa de movimentos de libertação política como a Revolução Francesa, a Independência dos EUA, a descolonização das Américas Central e do Sul, os liberalismos políticos (as nossas lutas liberais, por exemplo, já nos começos do século XIX), e a queda de grande número de monarquias na Europa, em finais do século XIX, princípios do século XX. 

Podemos dizer que o Romantismo é a base ideológica e afetiva que transformou a face da Europa tal como ainda a vemos hoje, e criou condições para os desenvolvimentos políticos, sociais e económicos que chegaram aos nossos dias. Mas é indispensável inseri-lo num processo anterior de libertação não só das sociedades e suas organizações políticas e sociais, mas também da maneira de pensar, sentir e viver das pessoas. 

Onde havia pecadores temerosos de lei divina, cultivando a humildade e sempre receosos do castigo, ergueu-se um novo ser, afirmativo, forte e que se guia pela sua consciência. Onde havia um entendimento do mundo formatado, limitado e hierarquizado, passou a haver um sentimento de afirmação pessoal. E em expansão. Tendo em conta todo este processo é de crer que a arte não ficasse fora dele. 

É neste enquadramento que temos que entender a arte contemporânea.

João Boavida

6 comentários:

Ildefonso Dias disse...

Newton?! Então e Galileu?
Imperdoável.

Carlos Ricardo Soares disse...

Agradeço ao Professor João Boavida o magnífico texto de filosofia, digo de filosofia, porque sem ela não teria sido possível escrevê-lo. O termo espírito, que uso num sentido metafórico, é o que me ocorre para designar o “campo físico” que torna possível a organização e a inteligência das referências que escolheu e da cronologia que seguiu.
Quando perguntamos para que serve a filosofia, já estamos a filosofar.
A filosofia é a racionalidade humana a operar num ambiente de manifestação de inteligência, da própria racionalidade. E como acredito que não existe irracionalidade, nem nos números irracionais, porque é fruto da racionalidade, distinguiria a faculdade da racionalidade da faculdade da inteligência.
A racionalidade como função biológica, diria, inerente à biologia, talvez seja dada e tão inevitável como a própria vida. Mas a inteligência é um estado de pensamento complexo, um processo que se desenvolve, agrega e transcende de cada vez que vê e se revê e reflecte e que consegue ter de si própria algum tipo de imagem. Ela instrumentaliza tudo, incluindo as memórias e as conjecturas e não é sua menor qualidade tentar evitar, senão impedir, ser instrumentalizada. Isto coloca-a numa espécie de abstracção, fora do tempo e do espaço, conquanto esteja no tempo e no lugar de um corpo.
Feitas estas considerações para estimular o pensamento, vejo a filosofia como o modo privilegiado de manifestação da inteligência, não necessariamente de inteligência, no sentido de que a inteligência é um processo e a última inteligência é que é inteligente.
Diferencio assim racionalidade de inteligência. Aquela é um mecanismo conatural e constante, diria variável independente, esta é um processo evolutivo e profundamente dinâmico, dependente de imensas variáveis, mais ou menos controláveis, inelutáveis ou acidentais, quer conjunturais, quer estruturais, que “aprende” sempre, independentemente das situações bio culturalmente favoráveis ou desfavoráveis, mas essa aprendizagem é muito variável e inconstante e pode ser mais ou menos ampla e profunda, nomeadamente, a aprendizagem com os erros.
A filosofia é a inteligência em acção. Se fosse uma máquina, começaria por se desmontar a si própria, mas não é e nunca será uma máquina, porque a inteligência não pára, não estaciona, não está em sítio nenhum embora funcione num sistema de conexões neurológicas que nunca repousam.
Ora, a inteligência em acção é a racionalidade a operar num espectro de possibilidades entre as quais, inelutavelmente, escolherá (não escolher também é escolher). Sem consciência, está arredada a possibilidade de escolha. A consciência é o que pode responsabilizar. Mas ninguém tem acesso a ela. O próprio indivíduo é colocado como juiz em causa própria. De pouco ou nada lhe adiantará ajuizar como ajuizaria o Deus absoluto que sonda e conhece as consciências melhor do que elas próprias.
«Atreve-te a pensar por ti próprio». Em reforço de Kant, diria que “pensar é próprio de ti e só podes pensar por ti próprio. A tua consciência é o último tribunal de recurso”.
Inteligência e sentido de dever aparecem-me unificados e radicados na consciência, sempre que se trata de acção. Se a este sentido de dever chamar lei moral, terei aqui mais um determinismo da acção (não estritamente determinismo natural, porque grande parte dos nossos processos biológicos escapam à nossa consciência), que deriva da faculdade da racionalidade.

Carlos Ricardo Soares disse...

Já a doutrina cristã do pecado reconhecera função chave e crucial ao reduto da consciência, conferindo-lhe a primazia nos processos de imputação de culpa.
Talvez por necessidade de coerência doutrinal e teológica, a doutrina do perdão dos pecados, mantinha Deus na competência de exclusivo e absoluto perscrutador da consciência de cada um, de omnisciente e infinitamente misericordioso e, ao mesmo tempo, exonerava-o de qualquer responsabilidade onerando a consciência do indivíduo pelos seus actos.
Estes problemas têm sido, aliás, transversais aos sistemas judiciais da cristandade, que têm lidado com a questão da culpa subjectiva, colocando-a entre parêntesis, ou simplesmente, fundando-a no dever ético-social e jurídico de conformação das condutas com a lei.
Do ponto de vista do indivíduo, todavia, o problema subsiste porque é iniludível a clivagem, ou hiato, que existe entre aquilo que é o dever-ser social, colectivo, heterónomo e aquilo que é o dever-ser pessoal, individual, autónomo, os quais, por muitas razões, podem não coincidir e até conflituar, sendo que, a última instância, como já referimos, é deste (sobreleve embora o problema do balanço que fará entre as sanções e a vantagem da obediência).
A transição do sistema teocrático milenar até à modernidade e contemporaneidade, tão bem delineada pelo Professor João Boavida, foi brutal mas nem por isso assimilada e integrada no “modus vivendi”, como soía.
A ideia de Deus é muito difícil de abandonar, ou de substituir, porque a ideia de Deus reune tudo o que há de bom, bem, justo, misericordioso e, se não existe, devia existir. Vamos continuar a lutar para que exista Deus.

Anónimo disse...

Sei de filósofos altamente inteligentes, mesmo em severo estado de decomposição inteligente, que acabaram os seus dias numa terrinha colada ao paraíso, com um sacho na mão, a olhar meditativamente para os vegetais, fartos de intelectualidades e intelectualismos. Arranjaram uma casinha retro virada para o sol, uma Maria obediente, uma horta multicultivada, meia dúzia de amigos nudistas, e passaram a acreditar piamente que a felicidade é não pensar e que a maior filosofia da vida é ser feliz. Abstraíram tanto que ficaram com aquele sorriso indefinível de Mona Lisa.

Anónimo disse...

Isto, sim. É filosofia aplicada.

João Boavida disse...

Caro amigo Carlos Ricardo Soares, os seus comentários são tão ricos que não é fácil responder a tudo, procurarei fazer uma síntese. Quando falo em racionalidade quero referir uma especificidade humana que nos põe em contacto com uma ordem universal, E que, portanto, é capaz de compreender e apreender certos princípios que, segundo Kant, se impõem a todos pela sua validade universal. É claro que esta capacidade de ser racional e de pensar com rigor tem que ser aprendido e treinado, e aqui é que a filosofia entra.
E o interessante é que, embora sem esse intuito, o meu texto mostra, no final, o imenso que o Ocidente deve à filosofia. Tentemos imaginar o que seríamos hoje, o que seria a nossa civilização sem o contributo da filosofia, desde, pelo menos, os gregos. Não somos capazes, mas podemos imaginar que, pelo estado de atraso em que estaríamos, nem disso teríamos noção. É um pouco o que acontece aos que hoje pensam que a filosofia é dispensável. Infelizmente, e até entre os que mandam neste mundo, há quem pense que a filosofia já não interessa. A tecnologia digital, o inglês (e por que não o chinês?) e um pragmatismo violento e praticado cedo, são as chaves do futuro. Mas a certidão de óbito é um tanto precipitada. O pensamento filosófico estará doente, mas não é por culpa dele mas pelo pouco treino e o pouco uso que dele fazemos. Pensar filosoficamente é pensar com rigor, isenção e livre de ideias feitas e dominantes. Ora, se queremos ser cidadãos na verdadeira aceção da palavra temos que ensinar os nossos filhos e os nosso alunos a pensar filosoficamente. Cada vez precisamos mais de pensar com rigor e autonomia porque só assim formaremos cidadãos. E para isso, será muito útil o pensamento dos grandes filósofos e os contextos problemáticos que tiveram que enfrentar. Tentem perseguir a ideia de liberdade, e de democracia, donde vêm senão de um pensamento filosófico verdadeiro? Para compreender o real valor destas duas ideias, basta pensar na lavagem ao cérebro de milhões e milhões de pessoas que as tiranias faziam e continuam a fazer. Só assim sobrevivem.

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