segunda-feira, 7 de julho de 2014

CARTA DA DIRECÇÃO DO CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA (CFUL) À FCT

Lisboa, 7 de Julho de 2014

1- Considerações Preliminares

O Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, na primeira fase de avaliação, teve uma classificação de 18/20, 17/20 e 11/20. O CFUL viu-se excluído da segunda fase do processo de avaliação (2014) em virtude de, perante um conjunto de três relatórios em que a disparidade de critérios de avaliação se tornara já notoriamente visível (o que, por não ser de todo habitual, mereceria desde logo uma análise mais cuidada), o quarto relator ter não só baseado as suas informações no parecer que mais parcial tinha sido na sua análise do CFUL, como ter também pura e simplesmente ignorado a refutação que fizéramos desse mesmo parecer no Rebuttal entretanto submetido. A acentuada disparidade de critérios é reveladora da fragilidade do processo e tanto mais grave quando confrontada com as suas consequências: a exclusão do CFUL da segunda fase da avaliação. Esta mesma fragilidade transforma-se em escandalosa arbitrariedade quando passamos para o plano da justiça relativa, confrontando a classificação do CFUL com a dos demais Centros de Filosofia que passaram à segunda fase.

2- Demonstração da irregularidade processual e da inconsistência científica da avaliação do CFUL

Nos 3 primeiros relatórios de avaliação é dito:

a) - Relatório 1. Classificação: 18/20; Avaliador 91510:
“O CFUL é o principal Centro português na formação de investigadores e apesar de não estar ao nível dos de Paris, Génova ou Barcelona está longe de possuir mera dimensão regional”; “a internacionalização é, em geral, boa”; “a publicação em outras línguas, que não o português, é mais do que ocasional”; “o trabalho dos investigadores portugueses tem mais forte presença na Europa do que há trinta anos, e o maior crédito para este resultado deve-se aos membros do CFUL; o CFUL “tem tido sucesso em concursos a nível internacional, captando um EUROCORES e uma bolsa Marie Curie”; é “um Centro único na Europa, por conciliar a tradição filosófica, sem esquecer a tradição filosófica nacional, com a filosofia contemporânea”; “o trabalho projectado até 2020 assenta em provas já dadas, pelo que tem condições de exequibilidade, recomendando-se, embora, maior selectividade.”

Questão: Pode uma Unidade de Investigação em Humanidades, com méritos assim reconhecidos, ser condenada à extinção pela FCT?

b) - Relatório 2. Classificação: 17/20; Avaliador 91511: 
“A disseminação do conhecimento e a formação avançada tem uma dimensão expressiva”, revelando, neste domínio, “capacidades excepcionais de disseminação e formação”; “a publicação de revistas [próprias], abarcando domínios plurais, acentua este aspecto”; “a investigação é de natureza interdisciplinar”; “a internacionalização tem maior expressão com países como a Espanha e Itália, recomendando-se maior ligação a países como a Inglaterra, a Alemanha e a França, mas em alguns Grupos publica-se em revistas internacionais de “alta reputação”, havendo condições para aprofundar o universo da internacionalização”; o trabalho de tradução anotada e comentada de clássicos, já desenvolvido e a desenvolver, “alterará o padrão cultural do mundo lusófono no domínio da história da filosofia”; “se o propósito é dar contribuições decisivas para o panorama académico português e espaço adjacente, então o resultado é excelente”; o CFUL “merece todo o apoio que lhe possa ser dado”.

Questão: Pode uma Unidade de Investigação em Humanidades, com méritos assim reconhecidos, ser condenada à extinção pela FCT?

3- Relatório 3. Classificação 11/20; Avaliador 2044: 
“A formação avançada é boa e está em crescimento, mas importa atrair mais investigadores estrangeiros;” “há adequada supervisão”; “o número de artigos publicados em peer-reviewed journals está também a crescer; “o número de livros e contribuições para colecções é muito bom, mas são poucas as publicações em top-ranked international journals”; “um dos 5 Grupos do CFUL [...] publica frequentemente em top-ranking international journals; nos dez títulos nucleares indicados “só três são em inglês”; “o impacto das publicações dos membros do CFUL na comunidade de pesquisa internacional é razoável, mas devia ser mais ambiciosa”. Atribui ‘very-good’ à produtividade de três dos Grupos de Investigação e ‘Good’ aos restantes dois; considera que o trabalho de tradução de clássicos (Aristóteles, Husserl, Kierkegaard e tantos outros) não resulta de investigação que altere o “estado da arte”; considera também a tradução de clássicos para português “não motiva o leitor a aprender a língua original”.

Questão: Ficando-se com a impressão de que este avaliador leu apenas determinadas secções do nosso relatório inicial, e não na íntegra, como fizeram os dois anteriores avaliadores, pergunta-se se as considerações acima merecem uma classificação final de 11/20, que conduz, a prazo, à extinção desta Unidade de Investigação.

4-“Relatório de Consenso”
O quarto relator, ao basear maioritariamente as suas considerações no relatório que mais desqualifica o CFUL, manifesta total falta de isenção científica, redigindo um parecer que enfatiza arbitrariamente pontos susceptíveis de dar a imagem final de falta de qualidade. Consideramos, pois, que a FCT deve responder aos dois elencos de questões abaixo formuladas.

1º Elenco de Questões

a)- Pode a FCT nomear alguma Unidade de investigação em Filosofia em Portugal que tenha publicado 228 títulos em outras línguas europeias que não o português (reportados à FCT entre 2008-2012)? Terão os avaliadores feito as contas, uma vez que a avaliação parece ser apenas quantitativa?
b)- Para além do CFUL, que outro (ou outros) Centro nacional de investigação em Filosofia publicou, no período em avaliação (2008-2012): 18 artigos em revistas A/INT1 e 19 em revistas B/INT2? Terão os avaliadores feito as contas?
c)- Este nível de publicações está em crescimento muito acentuado: desde 2013, até hoje, publicámos 60 estudos em inglês em meios internacionais de relevo, dos quais 27 em Top-ranking international peer-reviewd journal. Na verdade, em 2011, 31% das nossas publicações foram em inglês, 5% em alemão e 9% em espanhol; em 2012, 26% foram em inglês,12% em espanhol, 12% em francês e 11% em alemão, ficando 38% para português. Pode a FCT fazer um exercício comparativo com outros Centros de Filosofia do país?
d)- O CFUL é responsável por um projecto EUROCORES. Sabe a FCT se há mais algum, noutro Centro de Filosofia do país?
e)- Um dos nossos investigadores integrados, treinado localmente, recebeu uma bolsa Marie Curie, para investigação em Filosofia. Algum outro Centro de investigação em Filosofia do país pode invocar o mesmo facto?
f)- Foi tido em conta, na nossa exclusão de passagem à segunda fase, que o CFUL publica a mais bem classificada revista de Filosofia do país: Disputatio/INT2 no ERIH list e B no ERA ranking, exclusivamente em língua inglesa?
g)- Foi tido em conta que o CFUL publica outra revista on-line, maioritariamente em inglês (philosophy@lisbon)?
h)- Não será legítimo perguntar se a nossa exclusão de passagem à segunda fase teve por base a leitura objectiva dos nossos relatórios? Mas afinal não são estes os critérios que transparecem no padrão de avaliação eleito pelos próprios avaliadores? Não é escandalosa a incoerência e a ligeireza subjacentes?
i)- Quando o avaliador que nos atribuiu 11/20 diz que as traduções anotadas e comentadas de clássicos elaboradas pelo CFUL (Aristóteles, Husserl, Kierkegaard e tantas outras), muitas delas premiadas pela União Latina, “nada acrescentam ao estado da arte”, pergunta-se: este avaliador sabe português? Conhece alguma destas traduções, feitas a partir das edições originais, anotadas e comentadas em língua portuguesa?
j)- A FCT prefere que os nossos estudantes leiam Aristóteles em traduções inglesas, francesas ou espanholas? Tem a FCT receio de que ao traduzirmos do dinamarquês as obras de Kierkegaard, o ensino da língua dinamarquesa em Portugal caia por terra? E que dizer do alemão de Husserl? Pois parece ter sido esse o receio do avaliador que nos despromoveu.
l)- Considera a FCT que incorporar a grande tradição do pensamento filosófico no património de uma língua é irrelevante para o enriquecimento da potencialidade expressiva dessa língua e dos seus falantes, a todos os níveis?
m)- Considera a FCT que uma Unidade portuguesa de investigação em Humanidades deve ser desclassificada pelo facto de as suas publicações em português serem mais numerosas (o que já não sucede em 2012), considerando irrelevante o lugar de charneira que ocupa há vinte anos no mundo lusófono?
n)- Desconhece o terceiro avaliador, cuja classificação de 11/20 acabou por liquidar o CFUL, que os grandes países europeus há mais de cem anos que elaboraram a tradução dos principais clássicos da Filosofia para as respectivas línguas e que isso não os empobreceu culturalmente, nem liquidou o ensino de outras línguas nesses países?
o)- Não terá Portugal direito e legitimidade para fazer o mesmo, como o fez já a Espanha, e muito antes a França e a Inglaterra? E como também, antes de nós, começou há muito a fazer o Brasil?
p) O terceiro avaliador, encarando as dez principais e mais representativas publicações seleccionadas pelo CFUL no seu relatório de Unidade, que segundo a FCT “poderão ser lidas pelos avaliadores”, apenas diz: “só três são em inglês”. É este único juízo que tem a fazer? Não lhe interessa a qualidade dessas dez publicações? E nesse plano exclusivamente quantitativo não referiu que um dos títulos é em espanhol (segunda língua alfabética do mundo), ficando “só” seis para a nossa língua!

2º Elenco de Questões


Considerações Preliminares:

Sendo o CFUL a Unidade nacional de investigação em Filosofia que julgamos possuir maior grau de internacionalização, nos termos dos critérios supostamente eleitos pelos avaliadores, abarcando tanto o mundo anglosaxónico (como acima se evidenciou), como os dois principais países do sul da Europa (Espanha e Itália, como evidenciou o 2.º avaliador) e ainda o Brasil (estranhamente afastado das considerações dos avaliadores, sendo certo que muitas das nossas edições são publicadas também no Brasil), é falso que sejamos um Centro apenas orientado para o panorama nacional. Mas é verdade que estamos também atentos ao mundo lusófono, de que fazemos parte. Por isso, é fundamental que a Agência portuguesa de investigação científica esclareça também os seguintes aspectos, para memória futura:
a) Os critérios de avaliação de um Centro de Humanidades são os mesmos dos das chamadas “ciências duras”?
b) Em Humanidades, um artigo em inglês, publicado em determinadas revistas, prevalecerá sobre um livro de enquadramento e problematização das grandes questões do pensamento filosófico?
c) A avaliação mede-se apenas por critérios quantitativos? Para mais, apresentados em termos pouco claros, gerando ambiguidades e possibilitando manipulações arbitrárias?
d) Prevalecerá daqui para a frente a ausência de referência autorizada à qualidade das publicações por parte dos avaliadores?
e) Essa tarefa é confiada aos conselhos científicos das revistas em que se publica?
f) Então para que servem os avaliadores? Para ordenarem a contagem? São investigadores ou meros administradores?
g) Vai permanecer o hábito de aceitar avaliadores (na área das Humanidades) que não conhecem a língua portuguesa, nem podem nem sabem contextualizar os relatórios, suprindo essa ignorância com receitas genéricas que podem estar alheadas da realidade dos países a que se aplicam? Não será essa a tarefa da FCT?
h) Não considera a FCT que, pelo panorama emergente desta última avaliação (2014), o sistema de avaliação vai converter-se em algo mais importante que a própria investigação, numa corrida em que países como o nosso serão sempre secundarizados?
i) Não estaremos a enfraquecer-nos, aceitando, inteiramente e de pancada, o modelo da ESF, sem a presença, sublinhe-se de novo, de alguém que contextualize os problemas e as opções das Unidades de Investigação, partindo do espaço em que se inserem?

Estamos certos de que a FCT, atenta que estará à situação ora criada na investigação em Portugal, saberá extrair todas as consequências da presente exposição relativa ao Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.

3 comentários:

Raquel Gonçalves Maia disse...

A avaliação em causa é, a todos os títulos, inqualificável. Muitas são as questões que aqui se levantam - cada uma mais pertinente que a anterior. A FCT terá de responder e que, por favor, não transforme "good" e "very good" em 11/20, se não menos. Há limites de respeitabilidade. Se só se pretende financiar a não-cultura que se diga frontalmente e não se utilizem pressupostos falaciosos. Triste país o nosso que um dia acordará tão pobre...

Paulo Sousa disse...

Entretanto este texto foi alterado, certamente para branquear a mulher do ministro. Fascinante a máfia aventalada.

Teresa Marques disse...

A única alteração que este texto teve deve-se ao facto de a Comissão em causa a quem era inicialmente dirigida não ser o destinatário correcto da carta, uma vez que não desempenhou qualquer papel na avaliação. (e "a mulher do ministro" já não pertence à Comissão). A carta é, portanto, dirigida à FCT, que é responsável pelo processo.

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