No mundo lusófono, para além dos
lusitanistas, há redes dispersas de portugueses ligados ao mundo da
investigação que, a par do seu trabalho científico nas suas áreas, não deixa
de, volta e meia, pôr-se a reflectir sobre Portugal. Um deles é Manuel Paiva,
que acaba de lançar a segunda edição do seu Como
Respiram os Astronautas, e que acaba sendo uma viagem autobiográfica
destinada a inspirar futuros cientistas portugueses, daí o subtítulo: Educação, Tenacidade, Sucesso.
O autor surgiu primeiro ao grande público
português com Diálogos sobre Portugal (1998).
Em 2009, reapareceu com À Espera de
Godinho. Quando o Futuro Existia, sobre que recaiu o costumeiro silêncio.
Injustamente, pela novidade de que era portador. Um conjunto de “estrangeirados” lusos na
Bélgica, nascidos entre 1943 e 1945, compõe um livro de conversas entre si: Manuel
Paiva, portuense exilado na Bélgica desde 1964, onde foi professor na
Universidade Livre de Bruxelas e director do Laboratório de Física Biomédica;
Amadeu Lopes Sabino, ficcionista e ensaísta exilado na Suécia em 1973 e, desde
1983, funcionário da União Europeia, radicado em Bruxelas; José Morais, exilado
na Bélgica em 1968, neuropsicólogo, ensaísta e romancista, foi professor na
Universidade Livre de Bruxelas; e ainda Jorge de Oliveira e Sousa, politólogo,
exilado igualmente na Bélgica em 1966, poeta e ensaísta, leccionou na Universidade
Católica de Lovaina e, entre outros cargos, foi funcionário da Organização das
Nações Unidas.
O livro está estruturado em quatro
partes correspondendo a quatro conversas à mesa. Em cada uma delas um dos
participantes lidera a discussão, começando por falar das suas experiências
diaspóricas e do seu relacionamento com Portugal. Haveria um quinto comensal,
um tal António Godinho, antigo colega no Liceu Camões, que anunciara a sua ida
a Bruxelas e o seu querer reencontrar-se com os antigos colegas, mas acabou não
aparecendo nunca, servindo todavia de tema de conversa como figura simbólica, a
ponto de o seu nome ser estampado na capa em trocadilho com o título da clássica
peça de Samuel Beckett.
São quase quatrocentas vivíssimas
páginas, altamente informadas, pejadas de argutas observações e cumplicidades,
eivadas de uma profunda relação com a pátria-mãe, não a fábrica de saudades
doentiamente carregadas às costas ou na bagagem, mas amada mesmo na distância e
sem a mórbida vontade de quem acha que viveu mal uma vida porque longe do
ninho. Qualquer um dos comensais (que mais portuguesa maneira poderiam os
autores conceber, a demonstrar que mesmo no exílio e, depois, na diáspora
voluntária, nunca desdenharam esse gosto tão luso de uma boa comezaina? - é ver
como falam da ementa e das suas criações gastronómicas!), tudo conversado num
português a preceito, lavado e rico, modernizado na directeza, mas tocado
sempre pelo paladar de quem sabe que uma palavra pode sair seca sabendo no
entanto melhor se retocada a jeito.
São variadíssimos os temas, inúmeros
mesmo, porque diversas foram as trajectórias de cada um dos autores, apesar das
muitas semelhanças e dos cruzamentos entre si. O facto de, sendo todos
bilingues, se sentirem em casa na língua portuguesa, cordão umbilical que os
liga ao torrão-berço, faz com que, até nas divergências políticas e ideológicas
em geral, que mantêm e cultivam entre si, Portugal seja a praça pública onde a
mesa belga, em torno da qual se sentaram nos dias destas conversas, parece ter
os pés assentes algures entre o rio Minho e a costa do Algarve no sentido
norte-sul, e a fronteira de Espanha e o Atlântico no sentido este-oeste, que o
mesmo é dizer no Rectângulo do nosso (des)contentamento.
Fui devorando as páginas sempre com
vontade de entrar na conversa, de meter a minha colherada para acrescentar um
ponto, aduzir outra experiência, corroborar uma afirmação com mais alguns dados
colhidos do lado de cá do rio Atlântico porque, sendo embora francófono e
europeu o universo dentro do qual decorrem e discorrem estas conversas, daqui
do lado ocidental e num universo anglo-americano eu sentia-me fortemente atraído
pela semelhança de vivências e passados. Como português, só me apetecia
interromper rudemente a conversa sem pedir licença e atirar à mesa as minhas
histórias e comentários.
Tudo isto para mostrar quão
estimulante e envolvente me foi a leitura destas páginas, recheadas de ideias,
de golpes de olhar longe-perto sobre a cultura portuguesa, cultura aqui tomada
no seu sentido mais genérico - a maneira portuguesa de se estar nas mais
diversas facetas e manifestações.
Passagens citáveis há-as em abundância,
tantas que acabarei reproduzindo apenas uma. Iria ter de retirá-las do contexto
e tornar algumas demasiado duras, fazendo-as produzir efeitos negativos, algo
definitivamente longe das minhas intenções ao vir aqui publicitar este livro.
Na verdade, há páginas contundentes, mas sempre de crítica certeira e dirigida
por alguém que gostaria deveras de não ter de apontar tais mazelas à pátria.
Repensando melhor a decisão expressa
no parágrafo anterior, incluirei aqui um parágrafo de José Morais por se tratar
de uma passagem que capta magnificamente o espírito que enforma o livro e
encena o ambiente onde algumas críticas negativas são feitas. O comensal dirige-se directamente a Portugal nestes termos:
“Correndo o risco da solenização e do
enfatuamento, deixem-me, amigos, num momento de mansa loucura, dirigir-me ao
Portugal que está aqui a flutuar entre nós por sobre a mesa:
Terei tempo ainda para ti, Portugal,
os teus belos lugares e múltiplos prazeres e o convívio da nossa língua. Mas
não quero. Os teus prantos e queixumes desgostam-me. Sou um português de além,
livre e feliz! Tenho o gosto do Universo, quero ser rico de países, não de
pátrias. Os meus sonhos não morrem por ti. Porque então viveria em ti a última
margem da minha vida? Desvinculado das antigas certezas e ultrapassados os
renitentes barrancos, compartilho de alguma magia tua que se transmitiu a todos
os meus filhos. Venha qualquer acontecimento desportivo mediático e logo vibram
por ti, Portugal, mesmo quando o teu adversário é a Bélgica, país onde três
deles nasceram… Não és mais Estado ou Nação, és um coração secreto a aguardar-nos em encontros e recantos
inesperados.” (p. 262)
São assim as muitas páginas deste livro:
portuguesmente exaltantes e entusiasmadas no elogio e na crítica, com a
diferença de nenhum dos comensais sofrer do mal de lamúria, do queixume ou da
tristeza que no Rectângulo grassam como erva daninha. São arejadas, de brisa
fresca e vistas largas, modernas sem modernices, atentas e intervenientes como,
aliás, tem sido a vida de cada um dos seus autores. Aqui falo de cor porque,
pessoalmente, só com Manuel Paiva os quase acasos da vida me têm proporcionado
encontros em cruzamento de caminhos. Disse-me ele num e-mail que o livro afinal
não vendeu muito. Outro injustamente à espera… de leitores. Os que lhe
chegarem, de certeza que também sentirão ter valido a pena sentarem-se à mesa
com estes portugueses, mesmo sem acesso às iguarias, a não ser as das
conversas.
Onésimo
Teotónio Almeida
1 comentário:
Bom, eu vous comprar. Muito obrigado.
Boas
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