sábado, 2 de janeiro de 2010

Amor, felicidade e liberdade

Summerhill foi uma obra de Neill, mas também da sua época
Hemmings, 1975, 12.

Em texto antes publicado no De Rerum Natura - A crença no mundo de Peter Pan - Rui Marques Veloso referiu-se ao impacto que as ideias do Movimento da Educação Nova (corporizadas em finais do século XIX, ainda que com raízes mais antigas) tiveram no nosso país depois da Revolução de 1974, por razões que são por demais conhecidas. Não podemos esquecer que também por cá esta década foi especialmente marcada por inúmeras reivindicações de libertação e emancipação, tudo revestido por um apelativo pós-modernismo que se instalava em todos os sectores da sociedade, destacando os mais diversos subjectivismos e relativismos.

Assim, um pouco como por todo o mundo ocidental, rendemo-nos a exemplos de escolas como a de Bonneuil, fundada por J. Lacan em 1969, nos arredores de Paris, ou de Summerhill fundada por A. Neill, em Inglaterra, em que a criatividade da criança se pensava espontânea, assim como a sua orientação para o bem, o belo, a harmonia, a felicidade, a liberdade...

Acerca dos princípios como o destas duas escolas de fundamentação psicanalítica, e de muitas outras, que se apelidaram de Escolas Modernas, podemos dizer que se "tomaram os desejos por realidade". Para se compreender melhor esta ideia, deixo o leitor com o texto de um pedagogo espanhol que se tem destacado, entre outras coisas, pela crítica ao entendimento da escola e da educação influenciado pelo movimento acima referido.

"Summerhill é uma escola nas quais «as emoções antecedem o intelecto», explica um dos seis antigos alunos, a «sua filosofia básica é que, se um jovem se sente amado e animado a fazer o que lhe agrada – desde que não seja perigoso para si nem prejudique os outros –, converter-se-á num adulto mais feliz e amadurecido» (Popenoe, 1973, 43) (…) podemos já fazer uma ideia do como Summerhill se encaixa tão bem com a sensibilidade naturalista da actualidade (…).

Como se sabe, é uma escola inglesa atípica, que acolhe em regime de internato alunos de ambos os sexos, com idades compreendidas entre os seis e os dezasseis anos. Neill (…) partindo do pressuposto de que as neuroses se devem às repressões, propôs-se criar um sistema educativo não repressivo eu garantisse o equilíbrio mental dos indivíduos. O princípio básico de Summerhill é, pois, a liberdade, entendida deste modo bem simples, segundo as palavras do próprio Neill (1985, 27): «A liberdade consiste em fazer o que se deseja sempre que não se ponha em causa a liberdade dos outros». Nessa escola, então, a única condição que os seus membros experimentam é o abster-se do que possa prejudicar os outros. Fora disso (que lhes é recordado pela Assembleia da escola já que esta se governa por autogestão) não se obriga as crianças a nada: nem a assistir às aula, nem a falar bem, nem a trabalhar, nem a estudar por determinados métodos, calculando-se que «a maior parte do trabalho da aula efectuado pelos adolescentes não é senão uma perda de tempo, de energia e de paciência. Retira à juventude o direito de brincar, de continuar a brincar e de brincar logo a seguir; coloca cabeças velhas em cima de ombros jovens» (Neill, 1971, 39).

O lema pedagógico de Summerhill é a «ideia da não-interferência no crescimento da criança e da não-pressão sobre a criança» (p.29); «viver e deixar viver é uma divisa que encontra a sua melhor expressão em crianças que são livres de escolher o que lhes convém» (p. 78). Ora – como será de supor – «conceder autonomia a uma criança implica a fé na bondade da natureza humana» (p. 104) pois «a criança difícil não existe; o que existe são pais difíceis. Talvez melhor seria dizer que o que existe é uma humanidade difícil (p.103). Os comportamentos inadequados das crianças são ocasionados por um ambiente que lhes é hostil e por circunstâncias que as oprimem injustamente: o mau comportamento é apenas – uma reacção de defesa perante uma opressão injusta. De modo que «em Summerhill, onde a criança não é odiada pelos adultos, a agressividade é desnecessária. As crianças agressivas que temos provêm de lares sem amor e sem compreensão» (p. 34); «uma atmosfera de afecto, sem disciplina familiar, fará desaparecer os males da infância» (p. 148).

Os critérios pedagógicos por que se rege Summerhill são «a felicidade, a sinceridade, o equilíbrio e a sociabilidade» (p.88). São três os princípios de que parte: o amor, a felicidade, a liberdade. A finalidade da educação e da vida deve ser trabalhar com alegria e procurar a felicidade.

As ideias pedagógicas de Neill são perfeitamente claras e coerentes. O perigo é que não sejam, também, simplistas, pois baseiam-se em intuições sobre a natureza humana e a personalidade, que não parecem sintonizar-se com a complexidade dos factos. Este autor possui um pensamento estético que o impede de utilizar a ponderação do pensamento lógico; e, paralelamente, os seus escritos possuem uma graça estilística que lhe granjeia a concordância dos leitores pouco reflexivos – e há muitos que o são.

J. M. Quintana Cabanas, 2002, 94-96.

Referências bibliográficas:
- Quintana Cabanas, J. M. (2002). Teoria da educação: concepção antinónica de educação. Lisboa: Edições Asa.
- Popenoe, J. (1973). Summerhill. Una experiencia pedagógica revolucionaria. Barcelona: Laia.
- Hemmings, R. (1975). Cincuenta años de libertad. Las ideas de A S Neill u la escuela de Summerhill: Madrid: Alianza.

9 comentários:

António Daniel disse...

Seria interessante pesquisar cognitiva e psicologicamente essas crianças, agora adultas. Também creio que em Vila das Aves (creio que se chama Escola da ponte) se desenvolveu um conceito próximo ao que aqui foi exposto. Também seria interessante analisar as consequências. O meu grande receio é que, quando se aborda e se procure soluções pedagógicas, a intuição ainda esteja presente e, por isso, como foi aliás dito, a estética se sobreponha à racionalidade.

José Batista da Ascenção disse...

E se uma criança decidisse atirar-se de uma janela alta para experimentar a sensação da queda livre, e tivesse o cuidado de não causar (outros) prejuízos a terceiros, devia-se permitir-lho?
Lá dizia um velhinho da minha aldeia: "p'ra saber certas coisas e evitar outras não é preciso ter comido feijão em Coimbra"

Rui leprechaun disse...

Summerhill tem muitos sucedâneos, naturalmente melhorados. Em Portugal, não só a escola da Ponte como também a comunidade Tamera, no Alentejo, exibem algumas semelhanças com esse modelo de ensino livre, baseado na autonomia das crianças E dos professores! É que estes, infelizmente, têm sido reduzidos a autómatos e burocratas, em muitos casos!

Há, porém, que compreender melhor aquilo que significa "autonomia", pois ela apenas pode existir num cenário em que a criança/jovem tem consciência de si e do outro. A regra de não causar prejuízos a terceiros, correctamente compreendida, começa por NÃO provocar nenhum dano auto-infligido... nós também somos "outro" para connosco próprios!

Anyway... meio século volvido e com duas gerações pelo meio, as ideias anarco-libertárias de Neill são hoje bem mais fáceis de concretizar em novos modelos pedagógicos que, repito, promovem tanto a autonomia do aluno como a do professor! Aliás, tal corresponde perfeitamente ao discurso sobre a autonomia das escolas, levado à sua conclusão mais lógica e radical: a autonomia, tal como a liberdade, é pessoal e individual, logo mais do que no colectivo ela reside em cada elemento que constitui o social.

Quanto à Escola das Aves, perto da qual resido, tenho vasta informação que posso ceder aos interessados. Aliás, há alguns livros sobre o modelo específico de ensino na Ponte e o seu sucesso, comprovado por estudos independentes que atestam o superior desempenho académico das crianças que a frequentam, já desde há 30 anos. Mais ainda, o êxito da inclusão de crianças problemáticas, incluindo as violentas, que para lá são "despachadas", atesta que existem outras maneiras bem mais humanas e eficazes de ensinar. Pois vê bem quem sabe olhar aquilo que quer mirar!

Ora, contra factos NÃO há argumentos... case closed! :)


Amigos da Escola da Ponte

Anónimo disse...

Sobre a liberdade, a cibercultura e a pedagogia,

Quanto ao espírito universal, a filosofia ocidental não tem certezas quanto à sua
existência (Jung, 1971:1). No entanto, os símbolos reveladores de Jung libertam a humanidade no desejo de crescimento através de um sistema de comunicação, no desejo de
compartilhar a pedagogia da humanidade, podendo, na utilização da internet, o deprimido
encontrar esperança, o desolado consolo, o preso sentir a liberdade e os cérebros
interagirem em diferentes partes do globo na esfera da inteligência virtual.

Bom Ano,
Madalena

Anónimo disse...

"Aliás, há alguns livros sobre o modelo específico de ensino na Ponte e o seu sucesso, comprovado por estudos independentes que atestam o superior desempenho académico das crianças que a frequentam"

Referência por favor.

Fartinho da Silva disse...

"Aliás, há alguns livros sobre o modelo específico de ensino na Ponte e o seu sucesso, comprovado por estudos independentes que atestam o superior desempenho académico das crianças que a frequentam"

Tem que mostrar as referências para que possa confirmar a validade da sua afirmação.

Anónimo disse...

Sobre a Escola da Ponte e projectos de "escolas abertas" ver este relatório publicado pela OCDE em 2008: Open Plan Schools in Portugal: Failure or Innovation?http://www.oecd.org/dataoecd/4/12/41533062.pdf

Fartinho da Silva disse...

Esse estudo é revelador da grande maioria dos estudos nesta área, os autores referem-se uns aos outros e todos fazem referência a dois ou três ideólogos.
As referências bibliográficas mais relevantes são dos anos 70!

Ainda sobre estas referências "bibliográficas" é espantoso como evitam autores que não partilham da sua fé.

Raramente encontro artigos nesta área onde se coloquem referências bibliográfica de quem partilha dos mesmos pressupostos e de quem os contraria. Como se pode chamar ciência a algo que não admite o contraditório? Qual a diferença este este tipo de "ciência" e a fé?

Este trabalho é apenas um artigo de opinião que tem o valor científico de qualquer outra opinião e não passa disso mesmo... É pena, em pleno século XXI, continuarmos a defender métodos pedagógicos completamente esgotados a que alguns chamam de "movimento escola nova"!

Como é possível alguém acreditar numa fé que afirma que crianças de 6 ou 7 anos têm a capacidade neuronal de fazer descobertas científicas e até, pasme-se, capacidades de autoregulação? Espantoso... Mas em Portugal e nos países da América latina ainda existem milhares de "cientistas" da educação a professarem esta fé!

Este artigo tem tanto valor libertário, ideológico e científico como as letras das músicas do grupo musical Pink Floyd.

NOTA: trata-se de uma opinião com o mesmo valor científico desse artigo de opinião.

Anónimo disse...

Colegas, alguém conhece o livro que trata de uma pesquisa feita com os alunos da escola Summerhill quando os mesmos já tinham 20 anos de idade? Me falaram que 80% dos referidos alunos tiveram passagem pela polícia. Como não tenho certeza dessas informações, gostaria de saber se alguém saberia que livro é esse, pois seria importante para a minha dissertação.
Agradeço antecipadamente.

Álvaro Calixto
e-mail alvaro.calixto@yahoo.com.br

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