Post convidado de José Luis Pinto de Sá:
Numa crónica de Julho passado num jornal diário, Pacheco Pereira recordava como, nos seus tempos de estudante universitário de Filosofia há 40 anos, era regra os Professores ensinarem o que lhes interessava pessoalmente e até, em particular, o que tinham investigado longamente nos seus doutoramentos, com pouca ligação com o que faria sentido do ponto de vista de uma licenciatura coerente.
Não pude deixar de sorrir ao ler isso porque essa situação é também uma tendência nas tecnologias. Não é assim em todas as escolas, não era assim no tempo de estudante de Pacheco Pereira, e mesmo ultimamente a coisa melhorou com a maturação do corpo docente, mas há uns anos nas engenharias também era vulgar um recém-doutorado criar pelo menos uma disciplina de opção sobre o tema que investigara e, em alguns casos, criar até especialidades inteiras de Mestrado e mesmo licenciaturas. A multiplicação de cursos basicamente similares resultou dessa proliferação de doutorados, todos à procura do seu "espaço" próprio, assumida pelas estratégias de algumas escolas.
Como disse, nos últimos anos a coisa melhorou, mas há um domínio em que esse subjectivismo persiste e tem cura difícil: o dos temas de investigação. É frequente o recém-doutorado, sobretudo se o seu doutoramento foi um desses tradicionais "à francesa" que o ocupou 6 anos a investigar um assunto muito especializado, quase tudo sobre quase nada, como ironizam alguns, enquanto ia esquecendo o resto que aprendera, é frequente, dizia, continuar a investigar o mesmo tema depois do doutoramento, concorrendo a subsídios e fundos públicos ou europeus por muitos anos.
E, quando confrontado com o reparo de que deve procurar ligações à sociedade, aí vai ele à procura de problemas a que possa aplicar os temas que conhece e em que deseja continuar a publicar, dada a importação do lema americano do publish or perish. E muitas vezes conclui que a tal sociedade é atrasada e não o merece, visto não apresentar nenhum problema para a solução que ele domina e que lhe parece evidente ser o centro do mundo. E, se quando fez o doutoramento não era já docente universitário, vira-se para o Estado e exige-lhe emprego.
Claro que é possível inverter os termos deste binómio solução-problemas. Mas para isso é preciso que o Estado que financia os doutoramentos incorpore as entidades empregadoras na própria definição dos seus temas. Há muitos países avançados onde o Estado só financia investigações universitárias em tecnologia se houver comparticipação empresarial nesses financiamentos. Claro que para tal é preciso que as empresas (privadas e públicas) tenham estratégias tecnológicas, e para ter estratégia tecnológica é precisa segurança financeira, sem o que uma empresa vive obcecada pelas vendas e compromissos de pagamentos, a prazo não superior a um ou dois anos; e é preciso que, se for pública, não viva apenas para fazer boa figura perante a tutela governativa, que tem um ciclo de vida não superior ao ciclo eleitoral.
Ora nenhum desenvolvimento tecnológico leva tão pouco tempo a criar e a chegar a frutos, a não ser que consista na simples compra "chaves na mão" de algo feito lá fora, para eleitor ver...
Mas, também nas áreas não-tecnológicas o Estado pode promover uma maior ligação entre os temas de Investigação e as necessidades sociais. Porque há-de o Estado português financiar bolsas de doutoramento em História sobre a representação material da realeza assíria, por exemplo, quando não temos nenhuma base de conhecimento particular nem interesses estratégicos no Iraque, e deixar a outros a investigação histórica sobre a formação das cidades angolanas, coisa que devia interessar ao nosso Ministério de Negócios Estrangeiros (nos EUA é a CIA que muitas vezes apoia essas investigações)? Ou porque não se relacionam os doutoramentos em Sociologia às necessidades de integração das minorias étnicas imigrantes, com o apoio das Câmaras Municipais, como nos EUA? Ou ainda, porque não disponibiliza o Ministério da Defesa uma pequena percentagem do seu orçamento para, em conjunto com as nossas empresas, os nossos brilhantes académicos de Automação e Robótica que vivem nuns EUA virtuais terem algo de útil com que se ocupar, como por exemplo o desenvolvimento de um drone português?
Tenho um colega mais novo que se doutorou nos EUA há uns anos sobre a aplicação da teoria dos jogos e em particular dos conceitos de Nash à formação de preços em mercados competitivos de energia. O projecto era financiado por uma entidade interessada, e provavelmente a primeira em que pensarão será numa qualquer petrolífera. Mas não. Quem financiava esse projecto era o equivalente ao nosso Ministério Público, que queria ter meios para a detecção de fenómenos de cartelização na referida formação de preços. Imaginem termos também um Ministério Público assim...
quarta-feira, 20 de janeiro de 2010
SOLUÇÕES À PROCURA DE PROBLEMAS
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
35.º (E ÚLTIMO) POSTAL DE NATAL DE JORGE PAIVA: "AMBIENTE E DESILUSÃO"
Sem mais, reproduzo as fotografias e as palavras que compõem o último postal de Natal do Biólogo Jorge Paiva, Professor e Investigador na Un...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à in...
16 comentários:
Muito bem,
Bom senso, que se podia aprender(também) nas faculdades de filosofia : stude, non ut plus scias sed ut melius.
Cá, temos um Ministério da Economia que aposta no desenvolvimento da cultura. Veja-se o programa "Allgarve" (sim, ainda dura - ainda há massa para distribuir).
"Há muitos países avançados onde o Estado só financia investigações universitárias em tecnologia se houve comparticipação empresarial nesses financiamentos"...
Quais? Exemplos? Realmente gostaria de saber quais são esses países.
É que o caso dos US, da ALemanha, Suecia e Uk, que conheço relativamente bem, a contribuição empresarial para doutoramentos efeitos m universidades é quase nula em termos de financiamento. Elas estão mais preocupadas no business e na sua própria investigação.E a contribuição é muitas vezes ao nível de supervisão e esta muitas vezes é um pouco superficial ou então, é assim propositadamente por questões de propriedade intelectual.
Eu sei que em Portugal existe essa ideia latente em vários sectores (não foi neste blog que eu ouvi e li sobre essa ideia feita). Mas parece-me que aqui trata-se de uma ideia saída do diz-que-disse ou da inferência pessoal sobre o que se pensa-sobre-o-que-acontece-só-porque-sendo-avançado-isso-assim-acontece.
António Silva
A minha experiência foi o contrário: os meus professores preferiam dar o que não tinham estudado nem superficialmente nem profundamente. Acho que a opção denunciada pelo Pacheco Pereira é preferível.
Durante 5 anos na década de 80, apanhei professores no Técnico que nem para porteiros cá da empresa serviam. Houve de tudo, até vigaristas: gente que em vez de indicar os livros pelos quais se guiavam verdadeiramente para dar as aulas, sonegavam essa informação aos alunos nas bibliografias (abençoada internet!), que confundiam deliberadamente o aluno nas aulas, para se passarem por einsteins… O melhor aluno do curso chegou a tirar só 20 nos testes escritos dum semestre e a acabar esse semestre – por via das orais obrigatórias – com média de 17! Os casos de competência excepcional, e honestidade intelectual, contam-se pelos dedos de uma mão, num curso em que havia em média 5 disciplinas semestrais. Esta longa introdução para chegar aqui: que melhor maneira de relacionar os cursos, professores, doutoramentos e doutorados, com a vida real, do que pedir aos alunos, por exemplo 2 anos após a conclusão do curso, que avaliem os professores que tiveram? É absurdo admitir-se que a «média» do país, nada tem a ver com os vários sectores de actividade que o compõem, incluindo o ensino universitário.
Já agora em Portugal, nem os conceitos de Nash são utilizados para fixar preços, p.e., nos sectores bancário, energético e das telecomunicações (já acompanhei a fixação de alguns), nem é preciso formação matemática para concluir – de imediato – que existe uma despudorada cartelização - promovida aliás pelos sucessivos governos, que com isso beneficiam através das receitas do IVA…
Obrigado pelo espaço e felicitações (ao colectivo) pelo excelente blog que não conhecia,
José M. A. Mendes
Caro António Silva,
O que escrevi não resulta nem do "diz-que-disse" nem do "pensa-que-...". Não é o meu género.
O que escrevi é aplicado, por exemplo, no Real Instituto de Tecnologia de Estocolmo ou no Supélec francês, é a razão de ser do Instituto Fraunhofer alemão e a regra das Universidades americanas. De resto, nestas, tanto as Universidades públicas como as privadas (que são as melhores) têm financiamentos públicos E privados.
A questão, porém, não é de montantes, mas sim de princípios. O Estado até pode financiar 90% dos projectos (e a participação das empresas na orientação também lhes custa dinheiro). O importante é que haja demonstração, através da participação empresarial, do INTERESSE para os contribuintes da investigação realizada. Demonstrada pelos próprios, e não interpretada por uma vanguarda iluminada.
Claro que se pode defender que a Investigação não se deve "abastardar" sujeitando-se a interesses privados. É a posição aristocrática tradicional na Europa: a sociedade civil existe para financiar as actividades que a élite dirigente entender realizar, desde o uso de liteiras ombreadas por escravos até ao estudo do sexo dos anjos. Na Investigação como em geral na Ciência e na Cultura.
É até por isso que as "taxas" por cá se denominam de "impostos". É uma escolha. Duvido é que, neste mundo global, isso nos leve longe...
Adoraria saber quais são os doutoramentos que não podem ser considerados como saberes de: "quase tudo sobre quase nada"
O que sei é que muitos dos doutoramentos que não são "à francesa", os tais doutoramentos realizados em quatro anos, podem muito justamente ser considerados como um saber de: "quase nada sobre quase nada".
Ao Anónimo que diz que os profs do IST sonegavam os livros de base das disciplinas na bibliografia, Anónimo que abençoa a Internet suponho que para explicar que era com ela que resolviam o problema, noto só o seguinte: nos anos 80 ainda não havia Internet...
Mas, também nas áreas não-tecnológicas o Estado pode promover uma maior ligação entre os temas de Investigação e as necessidades sociais. Porque há-de o Estado português financiar bolsas de doutoramento em História sobre a representação material da realeza assíria, por exemplo, quando não temos nenhuma base de conhecimento particular nem interesses estratégicos no Iraque, e deixar a outros a investigação histórica sobre a formação das cidades angolanas, coisa que devia interessar ao nosso Ministério de Negócios Estrangeiros (nos EUA é a CIA que muitas vezes apoia essas investigações)? Ou porque não se relacionam os doutoramentos em Sociologia às necessidades de integração das minorias étnicas imigrantes, com o apoio das Câmaras Municipais, como nos EUA?
esta lógica é profundamente perversa, porque supõe um utilitarismo de áreas de conhecimento que linearmente não o são. melhor dizendo, quem estuda o que está ao abandono mas não "na moda", lixa-se.
por outro lado, é muito lírico achar que os painéis de avaliação são independentes e se orientam pelos padrões de exigência / pertinência dos projectos. basta ver quem são os nomes nos painéis de avaliação para ver quem terá ou não bolsa de doutoramento. basta ver de onde é que são para saber para onde vão as bolsas.
os projectos ganham-se mais ou menos assim:
- se o proponente for estrangeiro (mesmo que o projecto não interesse nada para Portugal, porque o que conta é o nº de investigadores estrangeiros cá)
- de onde é o proponente / que universidade vai beneficiar com os resultados
o resto é mais ou menos dependente de alguma sensatez, que nem sempre existe.
" O melhor aluno do curso chegou a tirar só 20 nos testes escritos dum semestre e a acabar esse semestre – por via das orais obrigatórias – com média de 17! "
Mas voce acha que se o professor for desonesto e quiser lixar os alunos (como da a entender) estes tiram 20 no exame escrito? Se acha nao vive no mesmo mundo que eu.
A tradicao de no IST se fazerem orais para notas > 17 e uma boa pratica.
O problema e as orais nao serem publicas (fiz muitas e todas foram em privado) embora pelos estatutos tenham de ser publicas.
Na realidade deveriam ser gravadas em video, hoje tinha umas historias interessantes com prova material, assim sendo qrase ninguem acredita em mim (e ate compreendo).
Bom dia a todos!
Ao Anónimo ex-aluno do IST: as suas experiências poderão ser muito interessantes e reais, mas vejo-lhes pouca relação com o tema deste post.
Ao Anónimo que considera a lógica "utilitarista" perversa e depois critica os painéis de avaliação: o critério que defendo de exigência de manifestações de interesse social nos temas de investigação é o oposto da defesa dos tais painéis. Os painéis servem para substituir a sociedade, são precisamente a "vanguarda iluminada" dirigista típica da concepção monárquica europeia (ou leninista, o que vai dar ao mesmo) - na prática, todos o sabemos, isso é que é profundamente perverso. Até certo ponto este post é precisamente uma crítica a esse sistema que, no entanto, tem merecido grandes aplausos. Aliás, já houve tempo em que a JNICT, a antecessora da FCT, privilegiava essa "ligação à sociedade" para financiar os projectos de I&D, embora nunca tenha alargado isso a áreas não-tecnológicas.
A questão essencial, porém, é que sem a tal participação social na definição dos temas de investigação, ninguém se queixe de que a sociedade depois não dê emprego aos investigadores. Pois se eles não sabem nada que interesse a ninguém a não ser aos próprios!...
Note-se que eu não nego a liberdade de cada um investigar o que quiser! Investiguem o que quiserem, mas não exijam é aos contribuintes que os sustentem!
Ainda sobre os modelos de doutoramento que conduzem ao "quase nada sobre quase nada":
Conheço 3 tipos de doutoramento:
1) O "à francesa", que na verdade eram os 6 anos típicos a estudar um assunto especializado e a esquecer tudo o resto que se aprendera. Podia não ser mau de todo se o assunto em si exigisse a aprendizagem de temas acessórios de utilidade social. Isso tinha ordens de grandeza de maior probabilidade se o assunto resultasse de um projecto definido com a sociedade (que até pode ser o Estado, como mencionei a propósito da História ou da Sociologia).
2) Os actuais doutoramentos de Bolonha: um ano de cadeiras de gestão e um ano de Investigação: isto é sem dúvida o "quase nada sobre quase nada"!
3) O sistema americano: 2 anos de cadeiras dificeis em áreas diferentes das do Mestrado, e depois 1 ou 2 anos de preparação para o tema de Investigação, mais 1 para a própria tese: isto é um doutoramento que alarga o conhecimento e treina a capacidade de investigação. É que esta variante não vê o doutoramento como um fim em si, mas como uma preparação escolar para futuras investigações fora das escolas, na sociedade!
"Ao Anónimo ex-aluno do IST: as suas experiências poderão ser muito interessantes e reais, mas vejo-lhes pouca relação com o tema deste post."
Eu digo que tem tanta relevância como o seu comentário das 21 de Janeiro de 2010 00:27.
Mas eu faço o ponto de contacto. Os mesmos tipos que vinham com o discurso deste post eram os mesmos que enalteciam as regras e eram muito exigentes no seu cumprimento porque diziam que o facto de as regras serem publicas facilitava o contacto com o sociedade e demais balelas mas quando lhes calhava dar o corpo ao manifesto lixavam-se no seu discurso.
Sem trabalho fundamental (que a maioria das pessoas, mesmo professores do técnico e incapaz de avaliar) aquilo que você preza como com valor para a sociedade nem existiria.
Este discurso promove a estagnação a longo prazo (varias gerações) quando se propõe a fazer o oposto.
"3) O sistema americano: 2 anos de cadeiras dificeis em áreas diferentes das do Mestrado"
Totalmente FALSO.
Em muitas universidades americanas o mestrado consiste em fazer estas cadeiras e uma tese fraquinha. Sei disto por observação directa.
No fundo, caro José acaba por concordar comigo que projectos de doutoramento DIRECTAMENTE financiados não existem. Atenção que não coloquei em causa os financiamentos privados das instituições. E nas univ. americanas que conheço ( e conheço várias), os financiamentos privados são de Fundações ou beneméritos. É rara a empresa que ponha lá as suas verbas. Eles colocam essas verbas na sua PRóPRIA investigação. Sim, eles empregam doutorados para esse fim, mas isso acho que já sabe.
Sobre os mestrados nas univ. americanas e doutoramentos, realmente há de tudo um pouco. Do muito exigente ao quase falso .Por isso cuidado com as generalizações, pois pode "enganar" quem isso não sabe.
Só uma achega sobre os doutoramentos à francesa:
eu fiz o meu de 4 anos ( fui dos primeiros JNICTs)e sempre encarei como o princípio e não fim. E vários dos meus ex-colegas assim o fizeram. Não entendo porque mais uma vez se generaliza. Sempre fomos postos em contacto com várias áreasa. Eu fiz doutoramento em engenharia química, mas trabalhei em matemática, alguma f+isica, produtos naturais, electrónica e publiquei 2 patentes. Tudo graças à necessidade dos trabalhos de doutoramento. E até nem fui dos melhores...
Se é para por em causa a falta de ligação num doutoramento entre univ. e uma empresa, eu digo-lhe apenas isto: eu tinha um excelente projecto de doutoramento em que NENHUMA empresa portuguesa queria participar institucionalmente. Claro está que quando se apercebeu que o trabalho at+e tinha potencial comercial, lá me apareceu um CEO com um business plan mal elaborado...enfim,portuguesices.
António Silva
Volto aqui 6 anos depois para constatar que tinha razão. Ninguém emprega os doutorados de Bolonha e com razão.
Enviar um comentário