Recentemente, após uma palestra que dei na Universidade do Minho sobre a teoria quântica no secundário fui questionado sobre a distinção entre física e a química. Transcrevo o meu texto sobre o assunto de "Curiosidade Apaixonada" (Gradiva, 2005):
A escola associa tradicionalmente a Física com a Química na disciplina de Ciências Físico-Químicas. Há, por isso, quem pense que são ciências gémeas. Serão?
Não são decerto gémeas, porque a Física nasceu no século XVII com o inglês Isaac Newton, autor dos “Princípios Matemáticos de Filosofia Natural”, ao passo que a Química só surgiu no final do século XVIII com o francês Antoine Laurent Lavoisier e o seu “Tratado Elementar de Química”. Facto curioso e pouco conhecido, revelado pelo economista John Keynes, é que Newton foi um alquimista secreto, talvez o último dos grandes alquimistas (não esqueçamos que a alquimia é uma pré-química, é uma espécie de mãe da química!) de modo que foi do fracasso do sonho alquímico de um físico que a Química pôde surgir. Mas a Química tem, de facto, grandes afinidades com a Física. A Física gosta da Química e vice-versa. Não será a disciplina casada com a Física, porque, desde Newton que se sabe que quem forma um matrimónio duradouro com a Física é a Matemática. A Física, e nisso contrasta com a Química, está profundamente unida à Matemática, partilhando com ela cama e mesa a ponto mesmo de não poder sobreviver a um divórcio. Assim, só resta à Química ser uma namorada da Física, com a qual tem tido um prolongado devaneio e com quem naturalmente tem, de vez em quando, alguns arrufos.
Tão enlaçadas por vezes as duas ciências que é difícil destrinçar a Física da Química, mas uma definição convencional é que a Física trata das propriedades da matéria e da energia e que a Química trata da organização dos átomos, que se combinam para formar moléculas e materiais. Para os químicos, os átomos são portanto blocos que se ligam num jogo de complexidade crescente, que vai dos átomos isolados até às organizadíssimas estruturas da vida. Como os átomos são tanto dos físicos como dos químicos, é natural que seja longo o convívio da Física com a Química. Muitos Prémios Nobel da Química foram ou são até físicos ilustres, uma vez que os químicos, diligentemente, se adiantaram aos físicos no respectivo reconhecimento. O caso mais antigo é também o mais pitoresco e, por isso, vale a pena contá-lo brevemente. A estrutura do átomo é do domínio da Física. Mas o britânico (nascido na Nova Zelândia) Ernest Rutherford, descobridor do núcleo atómico – o ponto minúsculo no centro do átomo - , ganhou no início do século XX não o Prémio Nobel da Física, mas sim... o da Química! Rutherford, autor das primeiras reacções nucleares artificiais, não resistiu a declarar:
“Tenho visto reacções nucleares muito rápidas, mas nenhuma foi tão rápida como a da Academia Nobel que de repente me transformou de um físico num químico”.
Mais recentemente, em 2001, o físico norte-americano de origem austríaca Walter Kohn recebeu também o Prémio Nobel da Química pelo seu notável contributo para resolver a equação fundamental da mecânica quântica, facto que o obrigou a iniciar as suas conferências para químicos esclarecendo que não sabia quase nada de Química... E mostrava um cartune que o representava no meio dos frascos de um laboratório de química, onde ele já não entrava desde os tempos do liceu. Os físicos, por seu lado, também não se têm importado em distinguir e premiar químicos. Lá fora é comum encontrar físicos nos departamentos e laboratórios de Química assim como químicos nos departamentos e laboratórios de Física (antepõe-se o “lá fora”, porque em Portugal, um sistema universitário anquilosado tem impedido essa hoje tão necessária interdisciplinaridade).
Mas há também zangas. Em 1929, o físico inglês (que, por formação, era engenheiro electrotécnico) Paul Dirac, de quem se comemorou o centenário do nascimento em 2003, escreveu uma frase famosa que pretende reclamar que a Química não passa de um ramo da Física. Repare-se que três anos antes, com a ajuda do próprio Dirac, tinha aparecido a mecânica quântica, a doutrina que permite explicar o funcionamento dos átomos. O papel maior de Dirac tinha sido escrever uma equação matemática (inspirada por argumentos de natureza estética) que juntava a teoria quântica de Bohr e outros com a relatividade de Einstein. A equação de Dirac, bela e lapidar, permitia, pelo menos em princípio (haveria que resolvê-la, o que era impossível em casos não triviais, dada a indisponibilidade na época do computador), descrever uma multidão de fenómenos físicos e a totalidade dos fenómenos químicos. Vejamos então o que Dirac afirmou:
“As leis físicas subjacentes à teoria matemática de uma larga parte da física e de toda a química são, portanto, completamente conhecidas, sendo a única dificuldade o facto de a aplicação destas leis conduzir a equações demasiado complicadas para serem resolvidas. É por isso desejável desenvolver métodos práticos de aplicação da mecânica quântica que ofereçam uma explicação das principais características dos sistemas atómicos complexos sem recorrer a muitos cálculos.”
Esta afirmação conduziu a uma discussão sobre a “redução” da Química à Física. Será que toda (sublinhe-se: toda) a Química se pode reduzir à Física? Ou usando, uma linguagem um pouco mais forte, será que a Física possui toda a Química?
Embora se possa perceber o que Dirac tinha em mente, julgo que é manifestamente exagerado pretender que a Química seja um ramo da Física. Na mesma linha de ideias, a Biologia seria um ramo da Química e, portanto, um subramo da Física. Etc. Isto é, tudo ou quase tudo seria Física. A afirmação de Dirac, mais do que reducionista, parece, vista deste modo, totalitária. Não haveria várias ciências mas simplesmente uma ciência. Reside aqui decerto um dos motivos de algumas zangas entre físicos e químicos. Os físicos são acusados da “tentação totalitária” , da tentação de tudo quererem englobar. É um facto que alguns físicos – os que perseguem, na linha de Dirac, mas agora a um nível mais microscópico, uma “teoria de tudo”, uma “teoria final” – defendem que o “leitmotiv” da Física deve ser a busca do mais pequeno e da força unificada que una os blocos mais fundamentais. Mas não é menos verdade que cada vez mais físicos entendem hoje que o domínio da complexidade não lhes é alheio e que o Universo é muito mais vasto e plural do que a atitute estritamente reducionista pressupõe.
Física e Química são subculturas diferentes da mesma cultura científica. São maneiras diversas de ver o mesmo mundo. Concerteza que têm, por isso, muito em comum (usando uma metáfora teológica, não pode o homem separar aquilo que Deus uniu!). Mas também concerteza que são disciplinas com individualidade própria. Os esforços a fazer deverão ir não no sentido de fundir essas culturas mas sim de fomentar o seu contacto. Isto é: de manter o namoro sem zangas de maior.
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7 comentários:
Artigo muito interessante e bem feito, como de costume, mas ...
"Não haveriam várias ciências mas simplesmente uma ciência."
NÃO!
Não haveria várias ciências mas simplesmente uma ciência.
O verbo haver é traiçoeiro!
M. Helena Cabral
Cara M. Helena Cabral
Muito obrigado, já corrigi o lapso.
Carlos Fiolhais
Que bela fofoca de vizinhança. rsss...
Sou novo e não tenho nenhuma especialidade em Física, nem mesmo a do ensino médio, pois fiz supletivo. Mas penso que nem toda proposição física, contudo, é passível de expressão por uma equação.
Não só a Física, mas todas as ciências são construtos humanos que pretendem descrever a realidade por meio de modelos abstratos que são feitos. A realidade em sí é tal qual é, e não se importa com qualquer descrição que dela se faça.
Mas a física, absolutamente não é matemática. A matemática é uma ferramenta que possibilita descrever os fenômenos físicos de forma a que se possam relacionar as grandezas envolvidas e formular um modelo teórico descritivo que permita previsões. Mas o comportamento da natureza se dá à revelia de seu modelamento matemático. O físico deve sempre cotejar sua descrição matemática com a experiência e a observação para proceder às correções necessárias.
Isto é, dizer que algo é “físico”, não é dizer que seja material, mas sim “natural”, isto é, devido à composição substancial (matéria, campo e radiação), à estrutura e a seu funcionamento. Portanto físico são não apenas os corpos, mas os eventos por eles experimentados. Um fenômeno é uma certa categoria de eventos e uma “ocorrência” é um conjunto de eventos elementares correlacionados, envolvendo vários fenômenos. Um “comportamento” é um modo de se dar uma ocorrência. Assim a mente e todos os fenômenos psíquicos, como pensamento, percepção, memória, emoção, volição e outros são ocorrências, que podem ser consideradas de origem física.
Por outro lado, uma outra concepção, denominada “Holismo”, considera que cada nível da realidade possui elementos que lhe são próprios e não podem ser reduzidos a uma explicação em termos dos níveis inferiores. Em suma, o todo não se reduz à soma de suas partes. De fato, não. Mas eu entendo que o holismo pode ser encarado de uma perspectiva reducionista desde que se considere que a contribuição das partes para o todo não seja dada pela simples “soma”.
Essa questão de que o todo é a soma das partes é que leva algumas pessoas a rejeitar o reducionismo em favor de uma concepção holística da realidade. O reducionismo não envolve linearidade. Efeitos cumulativos e de retro-alimentação estão presentes. Tendo em conta essas não linearidades, o holismo mesmo reduz-se ao reducionismo (não linear). Mas é preciso entender que se trata de uma abordagem metodológica. A realidade é sempre o todo. Mas ele pode ser entendido e explicado como constituído (mas não sendo a soma) das partes.
A Física nasceu no século XVII com Newton? Galileu, Kepler e Tycho Brae mas também Copérnico foram varridos para uma idade pré científica.
Na Wikipedia pode ler-se (retirei as referêncis):
"The turn of the second millennium saw the development of an experimental method emphasizing the role of experimentation as a form of proof for scientific inquiry together with the development of physical optics where mathematics and geometry were combined with the philosophical field of physics. The Iraqi physicist, Ibn al-Haytham (Alhazen), is considered a central figure in this shift in physics from a philosophical activity to an experimental and mathematical one, and the shift in optics from a mathematical discipline to a physical and experimental one. Due to his positivist approach, his Doubts Concerning Ptolemy insisted on scientific demonstration and criticized Ptolemy's confirmation bias and conjectural undemonstrated theories. His Book of Optics (1021) was the earliest successful attempt at unifying a mathematical discipline (geometrical optics) with the philosophical field of physics, to create the modern science of physical optics. An important part of this was the intromission theory of vision, which in order to prove, he developed an experimental method to test his hypothesis. He conducted various experiments to prove his intromission theory and other hypotheses on light and vision. The Book of Optics established experimentation as the norm of proof in optics,and gave optics a physico-mathematical conception at a much earlier date than the other mathematical disciplines. His On the Light of the Moon also attempted to combine mathematical astronomy with physics, a field now known as astrophysics, to formulate several astronomical hypotheses which he proved through experimentation."
A minha pergunta é se alguém já conhecia Ibn al-Haytham (Alhazen), eu não.
Ao administrador (ou autores) de De Rerum Natura:
Desde ontem que não consigo comentar aqui com o meu perfil de WordPress (problemasteoremas).
Será um problema que terei de esclarecer com WordPress ou haverá algum motivo ligado às definições de DRN para isto me estar agora a acontecer?
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