sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
INVESTIGAÇÃO: A CONSTRUÇÃO DO SABER
Agora que se está a tratar da avaliação dos professores do ensino superior é oportuno voltar ao tema da missão da universidade. Recupero, para isso, um texto, que publiquei em "A Coisa Mais Preciosa que temos" (Gradiva, 2002), um volume quase esgotado:
O sociólogo António Barreto elencou numa página do jornal “Público”, para melhor as sujeitar a exame, algumas ideias feitas sobre o ensino em Portugal. Uma delas é que “a universidade existe para ensinar”. Logo um professor do ensino secundário lhe saiu ao caminho, admiradíssimo, interrogando-se e interrogando-nos: “Mas para que mais é que pode servir?”
A culpa da ignorância do professor poderá não ser só dele. Será obviamente também da universidade onde deve ter andado pelo menos quatro anos, tempo esse que, pelos vistos, não foi suficiente para ter reparado na primeira função dessa escola superior. Podia ao menos ter lido os livros do autor que pretendia contradizer, para melhor preparar a sua crítica. Se o tivesse feito, teria reparado que António Barreto, no seu livro “Os Silêncios do Regime”, saído em 1992 na Editorial Estampa, fazia a necessária pedagogia:
“As Universidades portuguesas sempre fizeram sobressair, entre todas, a função primordial do ensino. Isto, em detrimento do que deveria ser o seu principal objectivo: o conhecimento. Ou, noutras palavras, a aquisição, o desenvolvimento, a crítica e a renovação do conhecimento. (...) Consagrado o primado do ensino, termos como ‘cientista’ ou ‘investigador’ têm pouco uso nas nossas escola, ao contrário de ‘docente’ na sua mais redutora visão.”
Um outro autor, o matemático João Queiró (in “A Universidade Portuguesa – Uma Reflexão”, Gradiva, 1995) disse o mesmo por outras palavras:
“A universidade é um sítio onde se estuda. Não é um sítio onde se ensina, muito menos um sítio onde se avalia, muito menos ainda um sítio onde se passam diplomas.”
Essa função primordial da universidade não é nova. Foi enunciada pelo alemão Alexander von Humboldt no século XIX: a universidade serve, em primeiro lugar, para investigar, serve para disseminar cultura e serve, ainda, para ensinar. Esta missão plural da universidade contrasta com a função exclusiva de formação profissional, que prevaleceu na Idade Média quando as faculdades principais eram Teologia, Cânones (Direito Canónico), Leis e Medicina. Modernamente acrescenta-se à trilogia de Humboldt a prestação de serviços à comunidade, a qual nem sempre se faz sem prejuízo da criação de saber ou da difusão de cultura.
Numa universidade que se preze, em primeiro lugar cria-se, constrói-se saber. Se assim não fosse, o ensino aí professado depressa se tornaria anquilosado. Ensinar-se-iam repetida e acriticamente as mesmas matérias... Uma universidade em que só se ensine devia antes ser chamada liceu superior. O crítico de Barreto deve ter andado num liceu superior, mero retransmissor de conhecimentos, formador (formador? talvez melhor informador) de pessoas que poucas possibilidades terão de criar conhecimento novo e original.
A investigação consiste precisamente na construção de novo saber. Poder-se-ia fazer um inquérito sociológico e perguntar à população nacional o que é investigar. Para alguns, as que só andaram num liceu ou num liceu superior, investigar talvez seja sinónimo de ler. De facto, quem investiga lê muito. Mas ler não é sinónimo de investigar (está equivocado aquele professor universitário que afirmou que investigava, sim senhor, pois até preparava as suas aulas). Talvez outros associem a investigação à pesquisa criminal. Com efeito, um agente da Polícia Judiciária é vulgarmente conhecido por investigador. Talvez esta acepção esteja mais próxima da verdadeira do que a anterior. Sherlock Holmes, ao descobrir o autor de um crime, está afinal a fazer algo parecido com o que faz um investigador científico.
Qual é então uma boa definição de investigação? Investigar é realizar uma “pesquisa crítica e sistemática, com base por exemplo na experimentação, que se destina a rever conclusões aceites à luz de factos novos.” Repita-se para esclarecimento dos que pensam que investigar é simplesmente ler o que alguém escreveu: “Rever conclusões aceites à luz de factos novos”.
É evidente que investigar não é tarefa fácil. Se o fosse, o número de investigadores seria muito maior. Conforme notou Henry Rosovsky, professor de economia que foi “dean” da Faculdade de Artes e Ciências da Universidade de Harvard, em Boston, e escreveu o interessante livro sobre a missão das universidades “University: An Owner’s Manual” (vem lá a definição anterior de investigação), mesmo nos Estados Unidos, que tem as melhores universidades do mundo (como precisamente a de Harvard), poucos professores universitários são investigadores. Nas chamadas “research universities”, todos os professores são investigadores, sendo escolhidos justamente pelo seu currículo de investigação. Mas, em muitos “community colleges”, que são a maior parte das escolas superiores, os docentes são pessoas que pouca ou nenhuma ideia terão sobre o que é a investigação. Em Portugal não há ainda bons “rankings” de universidades, mas, quando os houver, semelhante destrinça será decerto feita.
Há quem diga que não se pode fazer tudo bem ao mesmo tempo. Um bom investigador não pode ser um bom professor. E um bom professor não pode ser um bom investigador. Se há tempo para uma coisa não haverá para a outra. Rosovsky pergunta então quais poderão ser as motivações para um aluno ingressar numa “research university”, isto é uma verdadeira universidade, em vez de ir para um “university college”. E dá a resposta, enumerando três ordens de razões.
1) Um professor que também constrói o conhecimento é um optimista. Ele acredita que é possível saber e faz por isso. É uma pessoa curiosa a respeito do mundo e, portanto, necessariamente mais interessante aos olhos dos seus alunos. Na peça “Jacques Le Fataliste”, que Dennis Diderot escreveu e que Milan Kundera reescreveu, um pessimista afirma repetidamente que “está tudo escrito lá em cima”. Ora bem, para um investigador, não está tudo escrito lá em cima: pelo contrário, pode escrever-se cá em baixo e ele escreve...
2) Um professor em exclusivo, uma vez atingido o topo da carreira, tende a “enferrujar” se for repetindo as mesmas matérias. Mas o mesmo não se passa com um investigador activo, que tem sempre problemas novos em que pensar, locais novos onde ir e pessoas interessantes para conhecer. Escreve artigos e frequenta congressos, evitando o tédio. O romancista inglês David Lodge diz justamente que as três tecnologias que mudaram a universidade foram a fotocopiadora, o telefone e... o avião a jacto.
3) Embora seja difícil medir a produtividade pedagógica (pode tentar medir-se a qualidade da docência analisando inquéritos dos alunos, mas este processo não deixa de ser falível), é relativamente fácil medir a produtividade científica: basta atentar no número de “papers” aceites, no número de citações que tiveram, no impacto das revistas que os publicaram, etc. É menos provável cometer um erro ao contratar um professor universitário atendendo apenas ao seu currículo científico do que atendendo apenas ao seu currículo pedagógico. Claro que a investigação é hoje uma actividade onde nem sempre se respeitam regras (o pacato Dr. Arrowsmith, do livro de Sinclair Lewis, não se compara aos cientistas em tremenda competição de “A Dupla Hélice”, o livro auto-biográfico de James Watson), mas, apesar de tudo, uma avaliação científica é bem mais justa do que uma avaliação pedagógica.
Em resumo: conhecer é uma obrigação essencial da universidade moderna.
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5 comentários:
É preciso que o saber
volte às universidades,
deixando apenas de ser
um museu de antiguidades.
JCN
Muito bom texto. Vejo, pelo menos aqui no Brasil, uma grande preocupação com a 'educação', mas pouco ainda se fala do 'conhecimento'. E nas universidades brasileiras a pesquisa tem entrado em total declínio, ganha-se dinheiro do Estado para pesquisar (as pós-graduações) os assuntos mais estapafúrdios (como "o uso do pronome 'se' nas músicas de Caetano Veloso", seria isso pesquisa séria?!). Sem falar que a divisão do sistema de ensino proposta pelo Ministério é ruim, e além do mais restringe curricularmente as instituições que não são públicas. Muito a ser feito!
"Ensinar-se-iam repetida e acriticamente as mesmas matérias"
É precisamente este um dos grandes problemas das universidades, nos cursos de ciências sociais e humanas então é a desgraça, com grande parte dos docentes vindos das àreas da pedagogia e educação, ou seja licenciados em ensino de algo, preferem a pedagogia ao conhecimento continuo e reciclado.
Depois temos docentes que param no tempo e as matérias são completamente arcaicas comparado com outras universidades, com bolonha pior.
Há docentes que orientam trabalhos fins de curso sem perceberem da temática, ou outros mais honestos impedem que os alunos estudem certas temáticas porque eles não as dominam..
Há ainda nos cursos as chamadas disciplinas optativas que nunca abrem porque os docentes não as sabem dar, mas curioso, repete-se ano e ano a situação e os docentes nunca as sabem dar.
Em Portugal no que toca às ciências sociais a esmagadora maioria são "university college" alimentados por uma politica de financiamento das universidades arcaicas onde despejam centenas de licenciados no mercado de trabalho saturado, sem qualquer qualificação.
Porque outro problema da falta de reciclagem dos cursos é a falta de avaliação que existe, os docentes fingem avaliar e permitem que sejam licenciadas pessoas que em termos profissionais são completas nódoas, não sabem o que andam a fazer e nem sabem o que aprenderam, com bolonha de apenas 3 anos pior!
Outro exemplo, eu estudei na área de ciências sociais e humanas numa "university college" que existe a sul do Tejo e a norte do Algarve..
Felizmente hoje tenho o meu trabalho e estou a satisfeito, tive como professores uns excelentes, uns medianos e uns terrivelmente medíocres!
Essa universidade padece desde há uns anos a esta parte, de um falso discurso que é a interdisciplinaridade, que é apregoado por ai aos quatro ventos, suponho que no resto do país aconteça o mesmo.
Mas o que acontece na prática, tanto no sistema antigo, o meu, como em bolonha é que a mesma não existe, os currículos são desenhados para conterem até à náusea disciplinas da mesma área, raramente há disciplinas de outras áreas e muitas vezes nem abrem.
Formata-se de tal maneira o estudante, que se lhe fecha a mente para outras realidades, o estudante chega cá fora só sabe fazer aquilo, pouco e quando sabe e foge das outras áreas científicas..
Agora imaginem, eu licenciei-me e para conseguir aprendizagens ou formações em áreas diferentes é difícil como escalar o Evereste.
Parece que cometemos um crime público se quisermos tirar uma formação profissional simples, de poucas horas noutra área diferente para complementar a nossa formação!
Existe nos university college uma espécie de política que leva à imobilidade formativa, como no passado, quem nascia do povo seria sempre do povo, quem for daquele curso será sempre daquele curso e só pode fazer isso, sendo que o estado através dos ipj's, dos IEFP e dos cursos de formação dados por particulares mas pagos ou pelo estado ou pela cee alimenta esta política.
Imaginemos, uma pessoa tira educação de infância ou sociologia, se quiser ir tirar um ofício de mecânica ou carpinteiro não pode, tem excesso de habilitações e apesar da lei não o proibir, na prática os organismos que ministram esta formação quase todos do estado não o permitem, e notem, mesmo que a pessoa pague do seu bolso, se este é um exemplo extremo pensem em pequenos cursos de formação e complementação como gestão de eventos, auto cad, animação cultural e coisas do género! Não pode, está a pecar contra a sociedade!
Pergunto eu porque é que existe este funil?
Porque é que isto continua ou se agravou? depois de 50 anos da análise de snow sobre as "duas culturas"?
Sem ser a normalidade,
quantas vezes a ciência
anda a passear na rua
fora da universidade
que não cumpre a missao sua
de lhe prestar assistência!
Nem todo o saber está
dentro da universidade:
quanto dele ambulará
pelas ruas da cidade!
Quando nela Torga andou
não deu por ela, parece,
como ela não reparou
no Poeta que desconhece.
JCN
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