terça-feira, 12 de janeiro de 2010

“A cidade”

Maria de Fátima Sousa e Silva e Custódio Magueijo traduziram textos de diversas peças de Aristófanes - Acarnenses, Lisístrata, Paz, Pluto, As mulheres que celebram as Tesmosfórias, As Nuvens, Os Cavaleiros, As Mulheres no Parlamento e As Aves - que Luís Miguel Cintra encenou. O resultado é uma peça intitulada A Cidade que estará em cena no Teatro São Luíz, em Lisboa, entre 14 de Janeiro e 14 de Fevereiro.

O De Rerum Natura falou com a professora do Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra a este propósito.
De Rerum Natura (DRN): A Cidade é apresentada como uma “colagem de textos” do autor de Atenas. Como encarou o desafio de os harmonizar e tornar compreensíveis, para uma representação no início do século XXI?

Fátima Sousa e Silva (FSS): Esse trabalho de seleccionar e colar os textos coube a Luis Miguel Cintra e baseou-se numa leitura que ele fez sobre as traduções das diversas comédias que eu e o Doutor Magueijo tínhamos traduzido e publicado na íntegra desde há anos já. Esse ensaio de ‘colagem’ foi-me então enviado por Luís Miguel Cintra para dar uma opinião e sobretudo para retocar ou renovar as traduções à medida do conjunto e da intenção do espectáculo. A verdade é que me interessou desde o primeiro momento.

DRN: Luís Miguel Cintra elogiou publicamente o seu trabalho de tradução, sublinhando que tem um sentido muito apurado do que é a dinâmica teatral. Nessa dinâmica foi preciso trazer um clássico ao presente e ao grande público. Como se faz isso?

FSS: No caso de Aristófanes, a situação é um pouco paradoxal. Por um lado, há um compromisso entre os textos e a Atenas real do século V a. C. – sátira aos políticos ou figuras públicas da época, alusões a episódios próximos, referências a espaços concretos – que são impenetráveis para o público comum de hoje; mas por outro a realidade da vida democrática ateniense é tão próxima da nossa – na corrupção, na demagogia, nas causas sociais – que o público moderno sente-se imediatamente identificado com o que vê. O segredo da adaptação estará, primeiro, numa exclusão ou ‘modernização’ de alusões que não passam e paralisam o efeito de conjunto; e depois no uso de uma linguagem que, sem ser infiel ao original, seja natural e eficaz aos nossos ouvidos.

DRN: Sem, obviamente, pretender que desvende toda A cidade, perguntar-lhe-ia de que trata a peça?

FSS: O fio geral é claro: sensação de que tudo vai mal na cidade para desespero dos cidadãos; diagnóstico, em diversas situações, dessa mesma verdade; tentativas – frustradas – para melhorar a situação, que afinal parece uma fatalidade. É a natureza humana a funcionar!

DRN: Aristófanes não nos dá uma visão idílica da democracia. Os problemas que aponta nas suas peças continuam actuais nas nossas democracias?

FSS: Absolutamente, e esse é o principal fascínio em rever Aristófanes: a sensação de que afinal nada mudou em sociedade desde o século V a. C. E que tipo de problemas assinala ele? A caça ao voto através da retórica, a corrupção no exercício do poder, a crise da justiça, o falhanço da educação, as ousadias de intelectuais vanguardistas, os conflitos homem/mulher, o poder do dinheiro. O que acha? Não tem a sensação de estar a ler um qualquer dos nossos jornais diários ou a assistir a um noticiário televisivo?

DRN: A educação também é abordada na peça. Como vê Aristófanes a educação do seu tempo?

FSS: Pois é, sei que lhe é caro esse tema. Aristófanes, em particular numa das suas comédias que se intitula Nuvens, apresenta-nos uma confrontação entre dois modelos educativos: o antigo e o novo. O primeiro é o que serviu para formar cidadãos de excelência e construiu as horas gloriosas da Atenas de há meio século atrás. O segundo é o responsável por gente inútil e desocupada, cujo maior talento é uma língua apurada e falta de princípios. Há, sem dúvida, exagero no retrato. Afinal Atenas vivia também, apesar de todas as imperfeições de um novo modelo e das críticas que merecia, uma fase de apogeu intelectual. Aqui não sei se nos sentiremos identificados pela positiva ou pela negativa com o que então aconteceu.

Deixe-me que lhe agradeça ter podido dar este testemunho sobre um espectáculo que merece, sem dúvida, ser visto.

DRN: O De Rerum Natura é que agradece a oportunidade de falar com uma das responsáveis pelo facto de a cultura clássica continuar viva e com o brilho que podemos perceber n' A Cidade.

Ficha de A Cidade
Co-produção com o Teatro Municipal de S. Luiz.

Local: Teatro Municipal de S. Luiz, Sala Principal.

Data: De 14 de Janeiro a 14 de Fevereiro de 2010.
Horário: Quarta a sábado às 21H00. Domingos às 17H30.
Sessão com interpretação em Língua Gestual Portuguesa: 31 Janeiro às 17h30.

Tradução: Maria de Fátima Sousa e Silva e Custódio Magueijo
Adaptação e colagem: Luis Miguel Cintra
Encenação: Luis Miguel Cintra
Cenário e Figurinos: Cristina Reis
Desenho de luz: Daniel Worm d’Assumpção
Música: Eurico Carrapatoso
Colaboração musical: João Paulo Santos
Acompanhamento: Vocal Luís Madureira

Sem comentários:

UM CRIME OITOCENTISTA

Artigo meu num recente JL: Um dos crimes mais famosos do século XIX português foi o envenenamento de três crianças, com origem na ingestão ...