terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O MERIDIANO DE PARIS


Do meu livro Curiosidade Apaixonada saído em 2005 na Gradiva (na imagem François Arago):

O tempo tem efeitos muitos estranhos. Por vezes consegue que pessoas praticamente desconhecidas em vida se tornem famosas em morte. Foi o caso na ciência francesa de Sadi Carnot (1796-1832), o jovem engenheiro da Escola Politécnica de Paris a quem o devido crédito pelos fundamentos da ciência termodinâmica só tardiamente foi reconhecido. E por vezes consegue que pessoas famosíssimas em vida fiquem mais postumamente enterradas na maior obscuridade. Foi o caso ainda na ciência francesa de um outro aluno da Escola Politécnica: François Arago (1786-1853) foi um astrónomo e físico que brilhou na primeira metade do século XIX para depois se desvanecer ao ponto de quase só o encontrarmos nos manuais de Física franceses.

Carnot e Arago foram contemporâneos, tendo o segundo sido professor do primeiro na escola de élite francesa (cuja aura só é comparável à École Normale). Mas Carnot era uma pessoa algo reservada. Publicou um único livro em vida (“Reflexões sobre a Potência Motriz do Fogo”, que continha já a Segunda Lei da Termodinâmica ou Lei da Entropia, muitos anos antes de ela ter adquirido esse nome), mas esse livro não conheceu grande divulgação imediata, e morreu apanhado numa epidemia de cólera aos 36 anos. Pelo contrário, Arago era extrovertido. Publicou várias obras, entre os quais a “Astronomie Populaire” destinada a interessar o grande público pelos fenómenos dos céus (foi, neste aspecto, o antecessor de Claude Flammarion, que de resto reconheceu a sua dívida para com o percursor) e morreu velho e célebre, não apenas pela sua vida em prol da ciência e da divulgação da ciência mas também e principalmente pela sua entrada na vida política, uma carreira que o conduziu a Ministro da Marinha e das Colónias. Foi nesta última posição que decretou o fim da escravatura na França e o sufrágio universal (masculino, claro).

Fez em Outubro de 2004 cento e cinquenta exactos anos que morreu François Arago. O Observatório Astronómico de Paris, na margem Sul do rio Sena, do qual ele foi director, celebrou a efeméride com uma notável exposição, que mostrou não só retratos do cientista (impressiona ver o papel entrópico do tempo, que transforma um belo jovem num ancião cego e diabético) e da sua época como cartas, livros e instrumentos astronómicos e físicos do século XIX. A porta da espaçosa sala do meridiano – assim chamada porque ela é atravessada de Norte a Sul pelo meridiano de Paris, conforme se pode ver pela linha marcada no solo - abre-se como uma preciosa cápsula do século XIX. O visitante sente-se a entrar numa máquina do tempo, como que contrariando a tal entropia.

O meridiano de Paris tem muito a ver com Arago. Saído da Escola Politécnica, a sua primeira missão foi continuar as explorações para traçar o meridiano de Paris na Catalunha e nas Ilhas Baleares. O Observatório de Paris foi o berço da geodesia, a ciência da medida da Terra. Com efeito, foi ainda antes de Arago nascer que um astrónomo do Observatório mediu um grau do meridiano de Paris para cima e para baixo do belo edifício de estilo clássico. Nos tempos conturbados da Revolução Francesa, e na ânsia de mudar toda a ordem do antigo regime, o então criado Comité dos Pesos e Medidas decidiu que a nova unidade de comprimento – o metro - havia de ser a décima milionésima parte de um quarto de meridiano terrestre. Era pois necessário medir com suficiente precisão o meridiano terrestre. Com a presença de Lavoisier, o fundador da química (e também a mais famosa vítima da invenção do Dr. Guillotin), partiram em 1792 de Paris duas carruagens, uma para o Norte, em direcção de Dunquerque, e outra para o Sul, em direcção de Perpignan, com os astrónomos Delambre a Méchain a bordo, além de ajudantes e pesado equipamento. Missão: medir o meridiano de Paris com suficiente precisão ao longo de todo o território francês. Não foi uma tarefa fácil dada a época revolucionária que então se vivia: os cientistas ora eram tomados como espiões ora como mágicos (a história, que se lê como um romance, está contada no livro “A meridiana: 1792-1799”, de Denis Guedj, na Gradiva). Ora caberia precisamente a Arago e a um colega seu (Biot, que surge hoje nos livros de Física devido à lei de Biot e Savart relativa à acção magnética de um fio eléctrico) continuar, em 1807, a missão inacabada, o que continuou a não ser fácil. Arago foi apanhado na guerra entre a França e a Espanha que então irrompeu. Em França deixou de haver notícias de Arago, tendo a família a certa altura mandado celebrar missa pelo defunto. Mas as notícias da morte de Arago eram um pouco exageradas. Vejamos como o Catálogo da exposição no Observatório de Paris (“François Arago et l’ Observatoire de Paris”) narra as aventuras de Arago:

“Prisioneiro [em Espanha], evadiu-se tendo conseguido atingir Argel, de onde embarcou num navio que transportava dois leões oferecidos pelo dei de Alger a Napoleão I. O navio foi interceptado por um corsário espanhol e levado para a Catalunha. Prevenido por Arago, o dei protestou e fez libertar o navio que continuou a rota para Marselha. Mas não foi o fim da viagem: uma tempestade reenviou o barco para as costas de África do Norte e Arago, tendo conseguido chegar a Argel por terra e embarcar de novo, só chegou a Marselha a 2 de Julho de 1809. Ao longo de todo este périplo, conseguiu conservar todos os seus instrumentos e o resultado das suas medidas. A sua odisseia causou grande impressão, tendo favorecido a sua eleição para a Academia das Ciências três meses após o seu regresso”.

Vale a pena acrescentar que em 25 de Junho de 1795 (7 de Messidor do ano III no calendário revolucionário) tinha sido criado em Paris o “Bureau des Longitudes” para “fazer florescer a Marinha”, o que só seria possível com o melhor conhecimento do globo terrestre. O Bureau passou a dirigir o Observatório de Paris (que assim se deveria assim libertar da sua origem e aura real). Foi Laplace, o maior dos astrónomos do seu tempo, quem nomeou o jovem Arago secretário-bibliotecário do Bureau des Longitudes, hoje situado no Institut de France, sede da Academia Francesa. Durante a expedição espanhola foi nomeado astrónomo adjunto do Bureau e, depois, membro efectivo. Em 1843 Arago passou justamente a Director do Observatório de Paris.

Uma das inovações de Arago no Observatório foi a construção de um anfiteatro de 800 lugares onde ele próprio deu cursos de astronomia popular (o Bureau des Longitudes tinha também por missão transmitir a ciência para o público em geral). O anfiteatro não sobreviveu ao seu construtor, pois o seu aluno e sucessor Le Verrier (o descobridor do planeta Neptuno, olhando para o sítio que os cálculos indicavam) transformou em seu apartamento o que era um sítio de aulas, facto a que não foi estranha a rivalidade que alimentava com o mestre.

Poder-se-á perguntar por que é que a fama tão grande Arago declinou com o tempo? Acontece que Arago percorreu vários temas da ciência, da geodesia à astronomia, passando pela física. No quadro da Física deu várias contribuições ao electromagnetismo e principalmente à óptica: observou os astros com um polarímetro (instrumento para ver luz polarizada), sendo por isso considerado o primeiro astrofísico, e tomou partido na contenda entre as teorias corpuscular ondulatória da luz ao propor uma experiência sobre a velocidade da luz na água e no ar – ganhou a teoria ondulatória. Mas não acabava os trabalhos que começava: em vez disso tentava que outros os continuassem... Que teria sido do brilhante mas jovem físico Fresnel, defensor ardente da teoria ondulatória, sem o apadrinhamento de Arago? Não nos podemos esquecer que, no lado da teoria corpuscular, estavam nomes como Laplace e Biot. Curiosamente, na exposição do Observatório estava uma montagem moderna, com um laser, da experiência crucial proposta por Arago sobre a velocidade da luz na água e no ar. O visitante podia pedir a uma simpática monitora para accionar o laser e mostrar no écran a imagem da luz depois de uma “corrida” nos dois meios. Agora como há 150 anos a luz é mais rápida no ar do que na água.

A relação entre Arago e o meridiano de Paris está hoje perpetuada por um monumento singular, ou melhor plural. Havia uma estátua de Arago perto do Observatório, mas ela foi fundida pelos alemães em 1942. A cidade de Paris e o Ministério da Cultura decidiram por isso fazer um monumento, em 1994, que assinalasse o bicentenário do nascimento. Um escultor holandês ganhou o concurso público, com uma ideia muito original: colocou 135 medalhões de bronze só com o nome de Arago e a direcção N-S marcada no chão de Paris do Norte a Sul da cidade, ao longo do meridiano. Por isso, o nome de Arago está hoje espalhado por Paris. Estimado leitor, quando for à cidade-luz, não deixe de olhar com cuidado para o chão a ver se encontra o nome de Arago...

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