De João Boavida, professor na Faculdade de Psicologia e Ciências de Educação na Universidade de Coimbra, recebi na sequência do meu post sobre português e ciências de educação, a seguinte "carta aberta", que com o acordo do autor tenho o maior gosto em divulgar:
"No que diz respeito à sua crítica, eu estou de acordo consigo em muitas coisas. Considero, claro, que as ciências da educação, como as outras ciências sociais e humanas, só têm a ganhar em publicar mais em inglês, até para serem mais consideradas cá dentro. Embora já haja muita gente que publica em inglês, talvez tenha razão em dizer que percentualmente se publica ainda muito em português. E também ainda em francês e em espanhol, o que, actualmente, e de igual modo, é perda de tempo.
Mas talvez valha a pena compreender por que é que há ainda um predomínio de textos em português. É uma hipótese de explicação, que dará para o nosso caso, não dará para outros. E nem sei se é boa, mas aí vai. Quando entrei para a Faculdade, há trinta anos, havia um pequeno grupo de professores que trabalhava na Educação e que tinha a seu cargo a Revista Portuguesa de Pedagogia, que vinha já da Faculdade de Letras, fundada por Emile Planchard. E que vivia, como então viviam as outras revistas universitárias, daquilo que nelas publicavam os seus professores, ou professores de outras faculdades e universidades e alguns convidados estrangeiros. Havia, e sempre houve, uma ligação estreita entre o que os professores investigavam e estudavam e aquilo que iam publicando, até porque era preciso manter um certo nível e regularidade na publicação. Nessa altura não se punha o problema de ser “obrigatório” publicar em inglês, ou não se punha com a actual pertinência. O que se publicava correspondia a investigações feitas, quer para obtenção de graus académicos, (provas de aptidão científica e pedagógica, mestrados, doutoramentos e outros graus), quer em linhas de investigação subsidiadas por diversas instituições. Às vezes eram trabalhos de revisão bibliográfica, outras vezes tinham um carácter teórico, outras ainda reflectiam uma perspectiva psicológica, ou sociológica, ou histórica, mas, e é conveniente realçá-lo, a componente de investigação dos artigos que se publicavam foi sempre crescendo.
As coisas evoluíram muito, as instituições ganharam outro ritmo, aos mais antigos, com pós graduações obtidas em universidades estrangeiras, foi-se juntando gente nova, a revista ganhou a regularidade de três números por ano, criou-se um conselho científico internacional, foi alcançando maior divulgação, os trabalhos publicados foram tendo cada vez mais base empírica, como se disse, introduziu-se o anonimato e a dupla avaliação na apreciação dos trabalhos, modernizaram-se as formas de citação e apresentação bibliográfica, tal como a apresentação gráfica geral, introduziram-se os resumos em português, inglês e francês, etc. Enfim a Revista Portuguesa de Pedagogia, como terá acontecido com outras que entretanto foram aparecendo, modernizou-se e ganhou muito maior dimensão científica. E ao contrário do que se possa pensar, foi conseguindo divulgação em Portugal (universidades, escolas superiores de educação, escolas secundárias, etc.) e em Espanha, Brasil e América Latina. É efectivamente um veículo de divulgação e debate de ideias entre professores e estudiosos da educação, sobretudo do ensino superior, e não só em Portugal mas em vários países. E tem ainda publicado números temáticos de muito boa qualidade.
As coisas foram-se orientando neste sentido, resultado de uma evolução, de um conjunto de circunstâncias, da necessidade de afirmação de uma certa autonomia científica e cultural, enfim, uma série de razões para que muitos dos nossos trabalhos fossem ali publicados. Por comodidade? Por facilidade? Talvez, mas também por necessidade de manter um bom nível na revista, que sempre foi uma das nossas preocupações, e nunca deixou de se passada pelos crivos da exigência e da crítica. A qual, como muitas vezes acontece, é mais dura para com os da casa do que para com os de fora, estrangeiros sobretudo. A necessidade de publicar em inglês é relativamente recente, entre nós, e até porque as questões educativas em Portugal, em princípio, interessam pouco aos americanos, embora haja muito problemas que são gerais. Nestas condições, a mudança de orientação que nos exigiram não é tão fácil de fazer como se pode pensar e, sobretudo, leva algum tempo, ainda mais se temos tão poucas pessoas, como é o caso, e somos sujeitos a trabalhos e incumbências de toda a ordem e constantemente.
Paralelamente, o Centro de Psicopedagogia desenvolvia as suas linhas de investigação e ia organizando, a uma média de dois por ano, congressos, sempre com uma forte participação de especialistas estrangeiros e com temáticas baseadas nas investigações que iam fazendo os seus membros. O que se produziu, já o disse e enumerei e não vou repetir-me, corresponde a muita investigação, individual e de grupo, e a muito trabalho sério e de qualidade; aspectos que as anteriores comissões de avaliação consideraram. E que esta devia ter considerado, até porque as investigações tinham sido aprovadas, financiadas, delas se fizeram sempre relatórios para a FCT, e alguns dos livros publicados tiveram apoio da própria FCT. Como disse, os livros são públicos e todos os podem criticar. Estão aí, integrados numa colecção de qualidade (até gráfica) enriqueceram a bibliografia portuguesa sobre os respectivos temas, e são obras de bom nível científico em qualquer parte. Não vejo que haja aqui endogamia.
E não houve endogamia até porque, ao lado destas duas ordens de trabalhos, houve muitas publicações em outras revistas, nacionais e estrangeiras, da responsabilidade e iniciativa dos seus autores, que também podem ser apreciadas. Mas, segundo parece, até nesta vertente a comissão de avaliação dos centros de investigação se enganou nas contas que nos diziam respeito.
Como disse, a sua crítica tem alguma razão de ser. Mas, deixe-me que lhe diga, ela sofre de um certo subjectivismo. Certamente que os investigadores em ciências da educação andarão distraídos de alguns temas importantes, ou até de muitos, mas os temas de investigação são, em educação, tantos e tão variados, que é quase inevitável alguns ficarem à espera que alguém os investigue. O exemplo que apresenta é certamente importante, mas há muitos outros. Haverá sempre hipótese de acharmos que um dado tema, de que gostamos, devia ser investigado, e podemos sempre ficar a fazer más ideias porque não encontramos investigações sobre este nosso tema. Penso que problemas idênticos poderão colocar-se noutros domínios.
Se se analisarem todas as investigações já feitas, e as que estão em curso, quer para a obtenção de graus de mestrado, por exemplo, quer nas diversas linhas de investigação dos centros, ter-se-á uma visão mais completa do que se anda a fazer em Portugal. Obviamente nem sempre a alto nivel, mas frequentemente a muito bom nível. Para não irmos mais longe, uma das autoras do De Rerum Natura, a Helena Damião, tem orientado muito bem e com grande rigor científico, investigações de que já resultaram trabalhos de grande qualidade e actualidade, e outros que estão em curso. E não é, obviamente, caso único.
Acontece é que, depois, muito do que se descobre, verifica e explica, não tem aplicação porque ninguém, nas escolas e no Ministério, está interessado em aplicar, e se aplica não avalia, nem compara, nem verifica os resultados. Sobre educação todos sabem tudo, e desde sempre. Todos têm ideias seguras, métodos eficazes, remédio para os problemas educativos, mas, como dizia ainda a Helena Damião, a maior parte dos que dão opinião e decidem nunca leu umas linhas sobre uma investigação educacional credível. Que não é, de modo algum, o seu caso, eu sei, mas acontece com muitos. Quanto mais complexo é o assunto mais fácil é dar opiniões e encontrar culpados nos que investigam e estudam a educação, e pior, confundir estes com os que decidem politicamente. Uma coisa me parece segura: mesmo que os obscurantistas mais convictos continuem a dizer mal, a investigação em educação vai continuar a fazer-se. E isto porque o pensamento científico sempre acabou por vencer o obscurantismo. E não é de crer que os mecanismos clarificadores que, mais tarde ou mais cedo, o espírito acaba por fazer funcionar, deixem de actuar neste campo. A não ser que todos os governos do mundo decidam que a educação não merece ser estudada nem investigada, que tentar esclarecer com alguma objectividade estes assuntos não tem interesse nem utilidade.
Nada disto me impede de considerar, como já disse, que o Ministro faz bem em promover a competição dos nossos investigadores com os melhores de todas as áreas. E nesta medida os investigadores em ciências da educação terão que competir, não só porque a isso são obrigados mas também porque ainda tem muita gente válida e capaz de o fazer.
Continuo, porém, a pensar que, embora devamos competir tentando publicar o mais possível em revistas americanas, há aqui um problema difícil de conciliar. Por um lado, é indispensável internacionalizar, a alto nível, os nossos investigadores e a nossa investigação, por outro, insisto na ideia de que é preciso manter as publicações nacionais, pelo menos a bom nível. E algum valor tem que se atribuir a isto, porque se não é contabilizado o trabalho que se publica em português, dentro de pouco tempo ninguém publicará em português, ou só se publicará o que não presta. Por outro lado, se não se publicar nada de científico em português a língua portuguesa vai perdendo capacidades ou nem as chega a alcançar.
É um problema que os sujeitos A ou B, individualmente considerados, poderão achar sem importância, mas que a comunidade, em geral, e o Governo, em particular, deverão considerar. Até porque, em última análise, esta perspectiva acaba por considerar o Ministro da Cultura uma desnecessidade. Pior, um estorvo para a internacionalização. A não ser que se considere que o Ministério da Cultura é exclusivamente um ministério da cultura universal, da cultura pura, abstractamente considerada. Mas isto é difícil saber o que seja, porque todas as culturas e as suas mais altas manifestações estão relacionadas com uma realidade histórica, social, geográfica, em suma, cultural. É sempre numa dada cultura que as suas mais elevadas produções aparecem. A ligação ao contexto é estrutural e funcional e, portanto, é indispensável a valorização e qualificação desse contexto para que as grandes produções apareçam. Se o pudéssemos dispensar, substituir por outro, talvez resolvêssemos melhor este problema, mas, em última análise, por este caminho tudo acabava por perder base e significado. Pelo menos numa perspectiva histórico-evolutiva, cronológica, concreta, que é aquela em que todos vivemos e vamos continuar a viver. Como disse inteligentemente um dos intervenientes neste debate, o assunto não se compadece com uma solução “simples”. E todos os que tomaram posições radicais e agressivas, deviam ter em conta que para as situações difíceis, ou de difícil equilíbrio, é preciso ser subtil.
Parece-me, em resumo, que o Ministro da Ciência devia, neste campo, ter jogado em dois tabuleiros. Por um lado, promover a nossa cultura científica ao mais alto nível, por outro, encontrar modos de avaliar o que de melhor se faz em Portugal e em português, contabilizá-lo, dar-lhe créditos. Não o fazendo, a sua política de avaliação levará à morte as publicações científicas em Portugal. E, portanto, o Ministério da Ciência devia sentir-se obrigado a dizer a todas as instituições científicas que publicam em português (revistas, livros, actas, etc.) que não vale a pena continuar a fazê-lo. E que deverão acabar as revistas científicas em Portugal porque não têm qualquer interesse. Até porque os franceses, os espanhóis, os alemães e os italianos, e todos os outros, vão certamente fazer o mesmo. Como as suas línguas deixaram também de ter qualquer cotação científica, já estão todos a bater à porta dos americanos.
Continuo, porém, a pensar que a língua e a cultura portuguesa, como as outras, têm o direito a exigir que não lhes enferrujem propositadamente os êmbolos. E isto pela simples razão de que foram feitos para funcionar."
João Boavida
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1 comentário:
Muito bem. Estas considerações de bom senso são obvias. O que é preocupante é ser necessario lembra-las.
Mas, infelizmente, parece que é...
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