sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008
NO REINO DA ESTUPIDEZ
As notícias que dão conta da oposição da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa à ideia de dar lugar a uma outra unidade maior, incluindo Humanidades, Artes e Ciências Sociais, no quadro da reforma universitária em curso, não são novidade. Podia ser qualquer outra faculdade de qualquer outra das nossas universidades. As universidades não se auto-reformam. Nunca se auto-reformaram em lado nenhum e menos o fizeram em Portugal.
Essa verdade ecoou na antiga Assembleia Nacional, em 1970, quando o deputado Miller Guerra afirmou alto e bom som: “Nem na história, nem no presente, as Universidades do estilo coimbrão-napoleónico-latino, que são as nossas, jamais se auto-reformaram”. É preciso um impulso de fora para vencer a inércia instalada. Por isso o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior fez muito bem em mudar o quadro jurídico da universidade portuguesa, que estava estagnado há décadas. De facto, eu, como universitário, tinha bastantes dificuldades em explicar a um colega estrangeiro que as nossas faculdades tinham um presidente científico além de um presidente administrativo e de um presidente pedagógico e que os Senados estavam, sem ninguém de fora, divididos nos “corpos” de docentes, estudantes e funcionários, com o corpo de estudantes a chegar quase a metade. Agora que a redacção dos estatutos de cada universidade está nas mãos de assembleias eleitas, receio que os interesses instalados vençam os projectos mais inovadores. Pois como pode uma assembleia que reflecte os pesos das faculdades existentes pensar noutras faculdades ou apenas noutros pesos?
A Universidade de Coimbra conheceu uma reforma de inspiração internacional em 1772, com a abertura das Faculdades de Filosofia e Matemática. Mas para isso foi precisa a mão forte do Marquês de Pombal (na figura) que se deslocou “in situ”, como Marquês Visitador, nomeou um Reitor Reformador de sua confiança, D. Francisco de Lemos, e investiu em grande. Que a reforma imposta era algo precária ficou provado após a queda do Marquês em 1777. A Universidade, sem a continuação do investimento, regrediu, a tal ponto que Melo Franco, um estudante brasileiro (talvez ajudado por outro brasileiro, o famoso naturalista José Bonifácio de Andrada e Silva) escreveu e divulgou anonimamente o poema satírico “No Reino da Estupidez”. Nessas estrofes a deusa Estupidez é recebida com todas as honras no claustro académico pelo sucessor do Reitor Reformador (o Principal Mendonça, que foi Patriarca de Lisboa) e entronizada. Defende-a o lente de Teologia e ataca-a o lente de Astronomia. No final exorta a triunfante Estupidez: “Prossegui, como sois, a ser bons filhos,/ Que a mesma, que hoje sou, hei-de ser sempre” (Luís de Albuquerque, “’O Reino da Estupidez’ e a Reforma Pombalina”, Atlântida, 1975). Ora aqui está uma afirmação nada estúpida: a estupidez tende a perpetuar-se.
Mas lá fora as universidades não se auto-reformam? Não muito mais do que cá. A noção moderna de universidade, uma instituição humanista que junta o ensino e a investigação, remonta ao alemão Wilhelm von Humboldt, que, em 1800, pouco depois dos tempos de Pombal, criou de raiz em Berlim a Universidade que hoje tem o seu nome. O fundador, então Ministro da Educação da Prússia, nomeou primeiro reitor o filósofo Fichte. Mas essa universidade, por onde passaram Einstein, Planck, Marx, Engels, etc., nem sempre soube gerir-se de forma independente, tendo flutuado conforme as conjunturas históricas e os poderes constituídos. Foi sendo reformada e financiada.
Os dias de hoje são cruciais para as universidades portuguesas. Numa Europa em que têm de concorrer com a Humboldt, para além de Oxford, da Complutense e de La Sapienza, ainda que não se consigam auto-reformar, seria útil que aproveitassem a actual oportunidade para se prepararem para competir à escala global. Claro que para isso é preciso, além de organização, investimento. Não organizar e não investir seria estúpido. A Estupidez ainda pode ser estúpida, mas não temos que ser filhos dela.
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15 comentários:
Caro Professor: Parabéns pelo post, uma pedrada no charco do imobilismo universitário, paradoxalmente, por vezes, rápido, rapidíssimo, a tomar medidas sem serem devidamente estudadas e meditadas nos seus efeitos directos ou colaterais. Como bem escreve, "claro que para isso é preciso, além da organização, investimento". Atrever-me-ia a acrescentar ir contra interesses instalados. Infelizmente, neste país europeu "onde a terra acaba e o mar começa", o nó Górdio está precismente aí: não se investe quando há organização e não há organização quando se investe. Tarda em aparecer um Alexandre, "0 Grande", que acabe com este "statu quo". Definitamente. E com coragem política. As carpideiras de interesses intalados retardam o funeral da Estupidez.
Em vez de se louvarem os reformadores de reformas que não vão a lado nenhum devíamos antes louvar os reformadores de reformas que se enraízam e dão frutos.
Brilhante! 50 linhas e nenhuma sugestao pratica. :-)
Tudo na mesma...
O maior problema das universidades portuguesas é que têm sido centros de emprego para doutores. Basta contar quantos arriscaram quebrar com os vínculos "da carreira" em pról de uma actividade mais empresarial.
Este é o principal problema das universades portuguesas: guerras de docentes e departamentos pelos lugares mais estáveis e mais lucrativos.
Os próprios reitores são eleitos para "deixarem tudo na mesma"... Hoje, para ser reitor basta promoter "que ninguém é desempregado".
Esta é a principal causa da "falta de auto-reforma".
Uma reforma hoje em dia só possível de duas maneiras, ou pela regra do mercado ou por decreto.
Se Bolonha não tivesse sido por decreto estaria hoje em Portugal?!
Confesso que não estou a ver qual será o grande problema da organização universitária portuguesa. É para já grave a limpeza dos estudantes que - compreendo - um catedrático aplauda. A entrada das forças vivas pode fazer falta, mas já as estou a ver histéricas com necessidade da ciência aplicada e empurrando borda fora tudo que cheirar a não lucrativo. Estranhas estas opiniões vindas de um Físico, mas que também não diz porque é boa esta reforma. Já os aplaudentes, aqui pelos comentários, são os favoráveis a correr com os docentes: despedir, despedir, despedir - como panaceia e palavra de ordem. Curiosamente são também as Universidades mais antigas - as que normalmente levam com as culpas de ter professores menos reformáveis - aquelas que sistematicamente conseguem entrar num ou noutro ranking mundial de produção científica: UC, UL, UP e UTL.
É fácil olhar para certas palavras e torná-las chavões.. Mais dificil é pensar sobre elas...
Não, não defendo o "despedimento selvagem"...
Mas também não defendo: mestrados inúteis e desinteressantes só para dar mais umas "cadeiras" a uns docentes, departamentos mal estruturados em nome de alguns "lugares", docentes que se escapam constantemente das suas responsabilidades académicas em pról das suas actividades empresarias, sem nunca deixarem a "carreira", a inércia de alguns docentes só porque não "têm que dar justificações a ninguém".... E isto tudo com dinheiro dos contribuintes.
Muitos docentes gostam de citar nomes como, Harvard, Yale, MIT, Cambridge, Oxford... Mas quantos docentes ficam por lá por mais de 20 ou 30 anos? E mesmo ficando, quantos ficam tantos anos com as mesmas responsabilides?
Quanto à produção cientifica nacional de "nivel mundial" parece-me um certo exagero.... Qual é a universidade portuguesa que está no top 100 mundial? Segundo o ranking THES (e não só) estão longe disso...
Quando foi o último prémio Nobel português numa área ciêntifica?
No Top 100 não há ninguém, mas sabemos perfeitamente que os há noutros rankings - veja o Ibero-Americano, onde a UP e a UTL tiveram óptimas qualificações nalgumas áreas e ficaram à frente de escolas como a politécnica de madrid, a complutense, UFRJ, USP, Campinas - que mesmo não entrando nos top 100 do costume não são umas escolas quaisquer. Bolonha está longe de vir reorganizar fosse o que fosse. Apenas serviu para poupar dinheiro, e caçar algum aos estudantes. Reformas, sim, mas não a qualquer preço.
Isso dos tops tem aliás que se lhe diga: quantos universidades europeias estão recorrentemene nesse tipo de tops, de que países são e de que países têm saído os nobel científicos ou as Field?
É verdade que a produção cientifica tem vindo a melhorar, no entanto, as universidades portuguesas para serem melhores têm se ambiconar estar no top 100 mundial. É preciso ser realista mas também ambicioso, ser os melhores e não apenas os "mediocres".
Bolonha em Portugal está longe de reorganizar seja o que fôr, pela "incapacidade de auto-reforma". Bolonha podia ter sido muito mais, bastava quererem. Como o que interessa muitas vezes nas universidades é defender "os lugares", Bolonha ficou a menos de metade daquilo que podia ter sido.
No entanto, menos de metade é melhor que nada! Talvez ainda seja o principio....
Recomendo a leitura do artigo do professor Ricardo Reis, em que fala das universidades norte-americanas, na revista Única, Expresso. A diferença não está só nas propinas milionárias!
O preço que se anda a pagar é gastar o dinheiro dos contribuintes para garantir alguns privilégios, colocando as universidades ao serviço da mediocridade e não contribuindo para o desenvolvimento do país.....
(o artigo mencionado anteriormente é do Expresso desta semana)
Há algum tempo circulou um artigo de um professor estrangeiro que visitou Portugal chamado a atenção para um ponto importante: nas grandes universidades americanas, qual a proporção de catedráticos para auxiliares?
Se o problema estivesse só nos catedráticos estariamos nós bem... O problema é a falta "de mobilidade/rotatividade geral"...
Porque razão é que um recém-doutor tem que ficar na universidade na qual se doutorou? Porque razão um doutor tem que ficar mais de 10/20 anos na mesma universidade?
Porque razão um doutor não tem uma abordagem da vida a empresarial a 100%? Porque razão um docente universitário tem as mesmas responsabilidades académicas (de docência ou gestão) por mais de 10 anos?
Se num país tão grande como os EUA consegue-se impôr esta mobilidade, parece-me ridiculo que não se faça o mesmo num país pequeno como Portugal com muito mais "conforto"...
Alvares, a resposta 'as suas perguntas e' muito simples: No sistema actual Portugues os recem-doutores fazem isso tudo porque e' a unica maneira de conseguirem ser professores associados um dia.
Enquanto nao se estabelecer a meritocracia a serio, com avaliacoes a doer, externas e nao influenciaveis, e' irrelevante discutir-se qualquer coisa.
O que e' grave e' que nao sei se a meritocracia se esta' sequer a impor nos novos institutos de investigacao em Portugal. Mas gostaria de ser exposto aos relatorios externos de avaliacoes, a existirem (e deviam ser publicos)...
Nao compreendo bem o que quer dizer com vida empresarial a 100% mas presumo que seja nao ficar na academia. Por outro lado, nao sei essa pergunta nao revela alguma ingenuidade do mundo empresarial portugues mas principalmente do empreendorismo portugues.
Os EUA cultivam uma meritocracia selvagem - embora nao a 100%, claro, tb ha' mta cunha... - especialmente porque aqui ha' dinheiro envolvido. Harvard, tal como a esmagadora maioria dos grandes centros cientificos nos US, e' um negocio. E o negocio apenas floresce atraindo os melhores alunos e investigadores. Isso cria uma cultura do paper/bit cientifico. Nao sei se sera' a melhor cultura cientifica, mais romantica e "pura". Mas funciona a nivel pratico para rankings, etc.
E' um erro comparar leviana e superficialmente as universidades portugueses com as americanas pois assentam nao so' em valores diferentes bem como em modelos de gestao diferentes.
A unica coisa que precisa de mudar e' a implementacao de meritocracia a serio. Isto implica que as avaliacoes negativas constantes tenham repercurssoes praticas. Desconfio que seja necessario uma mudanca radical do sistema de gestao universitario actual que contemple a libertacao de assalariados cujo output seja abaixo de um determinado cut-off.
Bruno, o seu comentário confirmou as minhas afirmações anteriores: "a defesa de lugares nas universidades portuguesas".
Não defendo a "americanização das univeridades portuguesas", no entanto não podemos ignorar o modelo americano. É preciso ver os seus pontos fortes e as suas falhas.
Concordo com a sua visão sobre "meritocracia a sério".
O que Carlhos Fiolhais nos chama a atenção é para incapacidade das próprias universidades de impletarem reformas como essa.
Assim, resta-nos o decreto de lei ou a criação de instituições privadas com novos modelos de gestão e objectivos.
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