segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Desconcerto curricular no ensino da música

Na sequência do texto do Carlos, intitulado “Desconcerto educativo”, afixado no De Rerum Natura no passado dia 15 de Fevereiro, e para que se perceba qual o lugar da música no Ensino Básico, bem como a sua substância, aqui sistematizo, praticamente transcrevendo, o que é prescrito nos documentos que estabelecem o currículo nesse nível de ensino em Portugal: Decreto-Lei n.º 6/2001 de 18 de Janeiro; Currículo Nacional do Ensino Básico: Competências Essenciais datado de 2001; Decreto-Lei n.º 209/2002 de 17 de Outubro.

“A música é um elemento importante na construção de outros olhares e sentidos em relação ao saber e às competências, sempre individuais e transitórias, porque se situa entre pólos aparentemente opostos e contraditórios, entre razão e intuição, racionalidade e emoção, simplicidade e complexidade, entre passado, presente e futuro.
(Currículo Nacional do Ensino Básico, página 165).

Com a citação acima destacada, constante no Currículo Nacional do Ensino Básico, inicia-se a explicação do que é a Literacia Musical, uma competência global que os alunos devem adquirir, ao longo dos nove anos que compõem o dito nível de ensino. Segue-se o esclarecimento da relação entre as competências musicais mais específicas e as competências gerais, uma vez que toda a aprendizagem deve acontecer “numa rede de dependências e interdependências”. Um esquema complexo, que ocupa uma página inteira desse documento, do qual omito a maior parte da informação, sistematiza a ligação da música – ou, como se refere, da(s) música(s) - com as Línguas, a Matemática; as Ciências Humanas e Sociais, as Ciências Físicas e Naturais, as Tecnologias, a Expressão e Educação Físico-Motora, e as outras Artes.

Vejamos, então:

1. O lugar da Música no Currículo do Ensino Básico

O Ensino Básico é composto por três ciclos. O plano curricular de cada um desses ciclos inclui duas dimensões: “Áreas curriculares” (que estão divididas em “Áreas Curriculares Disciplinares” e “Áreas Curriculares Não Disciplinares”) e “Actividades de Enriquecimento Curricular”. Estas dimensões devem ter presente e orientar-se por um aspecto que lhes é transversal: a Educação para a Cidadania.

No 1.º ciclo, com a duração de quatro anos, as “Áreas Curriculares Disciplinares” incluem as “Áreas Curriculares Disciplinares de Frequência Obrigatória” (Língua Portuguesa, a Matemática, o Estudo do Meio, as Expressões Artísticas e Físico-Motoras) e uma “Área Curricular Disciplinar de Frequência Facultativa (Educação Moral e Religiosa).
As “Áreas Curriculares Não Disciplinares” incluem a Área de Projecto, o Estudo Acompanhado e a Formação Cívica.
As “Actividades de Enriquecimento Curricular” podem incluir a Expressão Musical.

No 2.º ciclo, com a duração de dois anos, as “Áreas Curriculares Disciplinares” incluem as áreas de Línguas e Estudos Sociais (Língua Portuguesa, uma Língua Estrangeira; História e Geografia de Portugal) de Matemática e Ciências (Matemática e Ciências da Natureza) de Educação Artística e Tecnológica (Educação Visual e Tecnológica e Educação Musical) e de Educação Física. Nestas Áreas inclui-se, ainda, a “Área Curricular Disciplinar de Frequência Facultativa (Educação Moral e Religiosa).
As “Áreas Curriculares Não Disciplinares” incluem a Área de Projecto, o Estudo Acompanhado e a Formação Cívica.
Existem, ainda, as “Actividades de Enriquecimento Curricular” e "Outra Componente" a decidir pela escola.

No 3.º ciclo, com a duração de três anos, as “Áreas curriculares disciplinares” incluem a Língua Portuguesa, duas Línguas Estrangeiras, Ciências Humanas e Sociais (História e Geografia), Matemática, Ciências Físicas e Naturais (Ciências Naturais e Físico-Químicas), Educação Física, Introdução às Tecnologias da Informação e da Comunicação, e Educação Artística (Educação Visual e Outra Componente por oferta da escola, que pode ser Educação Musical.
As “Áreas Curriculares Não Disciplinares” incluem a Área de Projecto, o Estudo Acompanhado, a Formação Cívica.
Existem, ainda, as “Actividades de Enriquecimento Curricular” e "Outra Componente" a decidir pela escola.

Fazendo o raciocínio do fim para o princípio, e não me desviando daquilo que está estabelecido nos documentos macro-curriculares vigentes, é possível afirmar que a Música não tem um lugar bem definido nem estável no currículo do Ensino Básico, pois no 1.º ciclo pode situar-se nas “Actividades de Enriquecimento Curricular” que são “actividades de carácter facultativo” (Decreto-Lei n.º 209/2002)., no 2.º ciclo situa-se nas “Áreas Curriculares Disciplinares” e no 3.º ciclo, apesar de se situar nestas áreas, pode ou não ser disponibilizada pela escola.

Por outro lado, tendo em conta as múltiplas componentes do currículo, o lugar da Música é ínfimo no Currículo do Ensino Básico.

2. A substância do ensino da Música no Currículo do Ensino Básico

Para se compreender este aspecto é importante saber quais são as competências que os alunos devem adquirir com a aprendizagem da música.

São três as competências centrais referidas: “ouvir, interpretar e compor”. Essas competências articulam-se, no esquema acima reproduzido, com “quatro grande organizadores”: interpretação e comunicação; percepção sonora e musical; cultura musical nos contextos; e criação e experimentação (Currículo Nacional do Ensino Básico, página 170).
Tais “organizadores” são especificados em competências que os alunos devem demonstrar no final do nível de Ensino em causa, as quais, por sua vez, remetem para “tipos de situações de aprendizagem” que se lhes deve apresentar em cada ciclo.

Noutro esquema, mais complexo do que este, com setas que apontam em todos os sentidos, as três competências centrais ligam-se às seguintes proposições: “Interpreta, sozinho e em grupo (canto e instrumento) diferentes géneros e tipologias musicais”; “Adquire diferentes códigos e convenções de leitura, escrita e notação musical”; “Compreende as relações entre a música, outras artes e áreas do conhecimento tendendo à perspectiva sócio-histórica, sócio-técnica e cultural”; “Compreende a música em relação à sociedade, à história, à cultura”; Analisa, descreve, compreende e avalia auditivamente produtos e processos musicais”; e “Improvisa, compõe e faz arranjos a partir de elementos predefinidos ou outros” (Currículo Nacional do Ensino Básico, página 172).

Em suma: é ambiciosa e complexa a substância do ensino da Música no Currículo Ensino Básico.

3. Conjugando os pontos 1 e 2

A análise dos documentos em apreço – redigidos numa linguagem hermética, confusa e redundante, de que é exemplo a frase com que iniciei este texto – permite inferir que existe uma incongruência, eu diria inultrapassável, entre o lugar recôndito que a música ocupa no currículo do Ensino Básico e as ambições que, no mesmo documento, são explicitadas para a sua aprendizagem.

Assim, uma vez reformados os Conservatórios, e entregue uma boa parte das suas competências às escolas básicas, diminuem as possibilidades de os alunos entre os seis e os quinze anos, ou seja, no período de vida mais adequado para a aprendizagem da música terem acesso, no ensino oficial, ao acompanhamento, à exigência e à dignidade pedagógica que essa aprendizagem requer.

E porquê? Porque as escolas básicas não têm nem se prevê que venham a ter num futuro próximo, condições logísticas para assumirem essa responsabilidade, porque a preparação dos professores que leccionam música tem lacunas graves, porque as condições em que estes professores trabalham são degradantes, porque as turmas têm vinte alunos ou mais, porque as escolas não dispõem de espaços adequados nem de instrumentos musicais… Porque, enfim, no nosso país, apesar da retórica da tutela, a música não foi no passado, nem é no presente encarada como uma área fundamental de aprendizagem formal, ainda que a investigação científica nos diga que é, ainda que a tradição educativa ocidental a justifique, ainda que seja obrigação moral da Escola transmitir a herança civilizacional e cultural às novas gerações.

Uma última nota: não obstante o ensino da música ter sido recentemente integrado nas “Actividades de Enriquecimento Curricular” do 1.º ciclo de escolaridade, o problema mantém-se, pois, mesmo que todas as condições acima referidas fossem excelentes, não é possível em dois blocos de 45 minutos por semana, levar os alunos, em grupos heterogéneos e alargados, a “ouvir, interpretar e compor música”.

Figura: Chichorro, Aula de Música, Óleo sobre tela, 2002 (Retirada de: http://espacotempo.files.wordpress.com/2006/10/chichorro-aula-de-musica-oleo-sb-tela-100x81-2002.jpg).

Documentos consultados:
- Ministério da Educação (2001). Currículo Nacional do Ensino Básico – Competências essenciais. Lisboa: ME/DEB.
- Decreto-Lei n.º 6/2001 de 18 de Janeiro (Organização Curricular do Ensino Básico).
- Decreto-Lei n.º 209/2002 de 17 de Outubro.

4 comentários:

Musicologo disse...

Completamente de acordo.

Alguns aspectos práticos:

A maioria dos alunos chega ao 2º ciclo "sem saber" o que é música. Vêm pré-formatados com contextos e culturas muito próprias e suas, vindas de áreas geográficas e sociais muito distintas. E depois agrupam-se em turmas de vinte e é suposto todos, de repente, convergirem num ensino uniforme.

Como é possível ensinar música a vinte alunos ao mesmo tempo? Instrumento? Impossível! Teoria? É possível ensinar a ler uma pauta, mas depois, sem a prática nem o contexto para a aplicar, as crianças acham chato e acabam por esquecer (é como uma linguagem, tem de ser exercitada). O único instrumento consensual e prático tem sido a flauta de bisel do liedl, de 5 euros que toda a gente pode levar e tocar. Além de extremamente irritante é um instrumento desmotivador. Não interessa a quase ninguém aprendê-lo, nem tocá-lo.

É possível e desejável a escuta. Podemos mostrar às crianças música clássica, contemporânea, música tradicional Portuguesa, músicas de outras culturas. Mas isso requer uma atitude passiva e contemplativa que muitas vezes não é compatível com a adrenalina própria de crianças do 2º ciclo.

As óperas infantis do Carlos Godinho funcionam mais ou menos bem. Sendo cantadas estilo Karaoke, e tocadas com orquestra Orff, sendo a turma disciplinada, é possível articulá-las. A experiência mostra-me que as raparigas sentem-se mais à vontade e gostam delas. Os rapazes distanciam-se. Pecam estas obras por serem muito "aculturadamente Portuguesas" e restringidas em termos de género.

Faz falta uma hip-opera ou algo no género, no nosso repertório, adequado ao 2º ciclo. Que é feito do "Alex e dos putos do bairro"?

O ensino da música no 3º ciclo, com as turmas divididas funciona muitíssimo melhor: os alunos são mais velhos e um pouco mais disciplinados e controlados. Vêm em menor quantidade e é possível formar pequenos grupos coesos, quase bandas musicais e já com algumas bases para conseguirem fazer crítica musical, introspecção e composição.

Conclusões: No segundo ciclo é imperativo dividir as turmas de música em dois. No máximo dez alunos numa turma de música, se queremos ter um mínimo de aspirações a conseguir-se uma prática de grupo coerente e com sucesso.

É preciso renovar o repertório que muitas vezes é desadequado e desajustado culturalmente (isso também requer trabalho do professor em conhecer os seus alunos e os seus gostos e conseguir encaixar as coisas).

É preciso planificar as aulas de 90 minutos em pelo menos três blocos de meia hora cada um: teórico (quando chegam e ainda estão fresquinhos); prático (para soltarem a adrenalina e porem em prática aquilo que acabaram de aprender); contemplativo (quando já estão cansados, já conseguem ouvir o que lhes querem "impingir" - a música que devem conhecer e que não passa na rádio nem nos morangos com açúcar.

Ah! E rezar para que sejam crianças que saibam o que é uma sala de aula e tenham noção que música não é barulho! Senão, contar que se vai gastar dois meses a ensinar-lhe que lá por se estar numa sala de música, não é entrar por ali adentro e bater os pratos como se fossem tachos, e bater nos tímbales como se fossem sacos de boxe.

Assim, talvez as coisas comecem a funcionar.

Musicologo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Armando Quintas disse...

Mais do mesmo, o ataque cerrado dos pedagogos da treta do ministério da (des)educação aos conteudos instrutivos continua de vento em popa, já atacaram a filosofia, agora atacam a musica, depois talvez seja a historia e assim vão retirando essas matérias chatas e enfadonhas do ensino que obrigam as crianças a pensar para as poderem instruir nos seus programas pré-formatados em que não se pensa e se age como um robo perante as ordens dos ideologos da sociedade deste país..

Portugal no seu melhor mais uma vez..

Adelaide disse...

Há duas coisas que me parecem importantes no ensino da música, e que contrariam certos clichés: a música é algo cuja função é dar prazer, exercitar as emoções, ginasticar a sensibilidade e a delicadeza. Há algum hedonismo em quem aprecia e pratica música, pois só o faz bem quem o faz por prazer. A motivação é essencial para que haja esforço e para que os automatismos de leitura e execução se possam instalar. Ou seja: será a música realmente compatível com a ideia de sacrifício, como vejo muita gente pensar? Música é prazer, da mesma forma que o trabalho árduo pode ser prazer. Por isso é que acabar com o regime supletivo nos Conservatórios é um fingimento completo. Finge-se que se elimina o acessório, quando na realidade se está a dar cabo da coluna vertebral do sistema. Por outro lado, faz-se com que as famílias se posicionem o mais possível no sentido de colocar os seus rebentos no topo de um iceberg em derretimento acelerado, cujas margens estão condenadas (isto é, num ensino integrado, dirigido para uma profissão musical, que ainda se está para ver em que condições vai poder funcionar). E ao fazerem-no um tanto atabalhoadamente fingem perante o Estado que os seus filhos querem mesmo ser músicos, mas essa é a única maneira que lhes resta de darem essa escolha, entre muitas outras, aos seus filhos. Mas é um fingimento, convenhamos...
Outra coisa importante é a coerência do sistema de aprendizagem e de produção musical. Como é possível um aluno perceber o que é uma orquestra sem poder articular-se com outros para formar uma? Sem tomar consciência da especificidade de cada instrumento, coisa que actualmente, nos Conservatórios, se faz até mais pelo convívio entre os diferentes instrumentistas do que pela leitura de livros ou pela audição de CDs com orquestras (únicas estratégias que restarão a quem ensine música nas escolas básicas do Estado...)? Aprender música com vista a um resultado satisfatório não é exclusivamente um acto individual, como muitos pensam (se bem que essa componente seja importante, e ela implica o ensino personalizado de um instrumento), nem é algo que se faz apenas em grupos grandes, ou em coro (única maneira de o fazer nas escolas básicas). Há uma coerência do sistema de ensino musical que deve ser mantida, de preferência sem fingimentos assentes em ideias erradas. Ora, esse sistema, e a sua coesão interna, é também feito da retroacção mútua entre os indivíduos que o compõem. São os alunos, e as relações que se estabelecem entre eles, que fazem boa parte do sistema, pelo menos a partir do momento em que percebem que o que fazem dá prazer, tanto a eles como aos outros.
Um jardim zoológico feito de muitas jaulas para cada músico ensinar em escolas desgarradas de um ecossistema mais vasto não é o habitat diverso duma orquestra, ou do caminho para lá se chegar! Há ensinos que devem continuar a poder existir, mesmo sem ser com a finalidade de produzir músicos profissionais, por uma questão de... como agora se diz, «massa crítica».
Não pode haver harmonia à força. Democrático e simultaneamente culto é permitir a qualidade a todos (até aqui todos podiam estudar música no Conservatório, pois isso não dependia do dinheiro das famílias), percebendo a delicadeza do solo que se pisa, e não o é massificar, estragar, pisotear. Os bulldozers nada têm a ver com música.
Adelaide Chichorro Ferreira

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