terça-feira, 24 de julho de 2007

A tia do "eduquês"

O novo programa da Área de Integração é o último grito da ideologia do “eduquês” e ao mesmo tempo mostra claramente por que razão esta ideologia assassina teve tanta facilidade em penetrar nas nossas escolas. O “eduquês” penetrou rapidamente porque na cabeça de muitos responsáveis “cultura” (científica ou não) é sinónimo de conversa de tias de Cascais à hora do chá. E é isso que temos nesta nova megaprodução ministerial. Recorde-se que este é um programa para os filhos dos pobres, que são demasiado estúpidos, no entender do ministério, para seguir a escolaridade dos outros: irão assim optar por uma ilusória escolaridade profissionalizante, que nenhuma profissão irá proporcionar, excepto as mesmíssimas profissões não especializadas — e mal pagas — que eles teriam sem tais cursos. Seria menos mau se realmente se ensinasse uma profissão aos adolescentes dos cursos profissionais — qualquer coisa de palpável. Mas não só não se irá ensinar tais coisas, porque a escola não tem competência para isso, nem há necessidade de a ter, como se procura complementar tais cursos práticos com uns pós de “cultura”. A Área de Integração, em particular, visa substituir a disciplina de Filosofia que, segundo o ministério, os filhos dos pobres são demasiado estúpidos para compreender.

E o que é esta filosofia para pobres? Bom, é tudo menos compreensível para qualquer adolescente que traga carências culturais de casa. Vejamos: um adolescente destes não consegue, do ponto de vista dos asnos do nosso Ministério Pimba da Educação, compreender problemas filosóficos centrais — problemas como a questão de saber se existe Deus ou não, ou a questão de saber o que é a arte, ou a questão de saber se temos livre-arbítrio, ou a questão de saber se na acção moral só contam as intenções ou pelo contrário se contam as consequências. Mas consegue compreender o seguinte (e passo a citar):

— “a construção do conhecimento ou o fogo de Prometeu”, para o qual a leitura recomendada é O Sentimento de Si, de Damásio;
— a “problemática” da inteligência artificial, para o qual a leitura recomendada é O Erro de Descartes, também de Damásio;
— “todo o comportamento é comunicação (“ninguém pode não comunicar”, ou o destino social do homem)”;
— “compreender os códigos como sistemas em que os signos se organizam”; etc.

Estes são alguns dos tópicos dos maravilhosos temas-problema inventados pelo pobre de espírito que escreveu este programa. (Não é uma maravilha que no ministério sempre se fale com muitos hífens? Trata-se de temas ou de problemas? Não se sabe. E qual é exactamente a diferença? Também não se sabe. É assim a sandice nacional.) E o que se torna óbvio ao tresler esta aberração? Que esta gente pensa que conhecimento é conversa de tias à hora do chá, em que toda a gente fala de tudo sem saber realmente de nada, só para exibir a sua capacidade para fingir que compreende física quântica, o Damásio e as “problemáticas” sócio-culturais-ou-qualquer-outra-coisa-que-leve-hífen.

Poderá servir tal mosaico de idiotices para complementar a formação do desgraçado do estudante que pensa que vai aprender uma profissão na escola? Dará tal mosaico de idiotices alguns instrumentos críticos para que o estudante possa pensar por si? Não. Nem de perto. Tudo o que vai fazer é transmitir-lhe meia dúzia de ideias feitas: os preconceitos do nosso tempo. Na parte da religião, por exemplo, não há sombra de alusão a quaisquer instrumentos que permitam discutir se Deus existe ou não, ou se é epistemicamente legítimo crer em Deus na ausência de provas. Não se trata de dar instrumentos para avaliar criticamente a religião, mas antes de meter na cabeça dos estudantes que a religião é um fenómeno humano que devemos apreciar bovinamente — tal e qual uma tia de Cascais aprecia a Torre Eiffel quando vai a Paris comprar um perfume.

Mais delirante ainda é a parte da estética. Recorde-se que o Ministério Pimba da Educação priva não apenas os estudantes da via profissionalizante, mas também todos os outros, de qualquer acesso decente à cultura musical e às belas-artes (só os filhos dos ricos têm acesso a estes conteúdos em escolas privadas ou em actividades extra-escolares). Pois é este mesmo ministério que aprova um programa que declara triunfante que visa a seguinte competência: “Formação de uma sensibilidade estética em relação ao mundo natural e à arte, nas suas diversas expressões” (em termos técnicos, isto não é sequer uma competência — ter sensibilidade estética não é uma competência, é a condição de possibilidade para ter algumas competências em estética). E, claro, um autor aconselhado para esta parte, pelo ministério, é... Walter Benjamim — cujos escritos raiam o ininteligível até para os especialistas no seu pensamento, tornando-os inacessíveis à generalidade dos professores, quanto mais dos estudantes. Um bom livro introdutório de estética ou filosofia da arte, que qualquer adolescente ou professor possa verdadeiramente compreender, não se vê na bibliografia, claro, apesar de existirem alguns bons em português — afinal, não se trata de ensinar história da arte ou filosofia da arte ou arte ou qualquer coisa de minimamente preciso e genuinamente operativo, mas de exibir palavreados e referências bibliográficas eruditas para assustar papalvos.

É o completo delírio, do mais puro “eduquês”. E o resultado disto? Perante tanta vagueza, a generalidade dos professores e estudantes vão sentir-se perdidos. O índice de reprovações será muito alto, excepto se o professor fizer precisamente o que o ministério claramente visa: aceita-se tudo, desde que o estudante embrutecido diga mais ou menos as mesmas boçalidades que ouvimos todos os dias na televisão e que as tias de Cascais comentam à hora do chá. Ou seja: uma completa fraude cognitiva e educativa. Mais valia não massacrar os estudantes com tais disparates e deixá-los a namorar e a jogar jogos de computador em vez de os submeter a tão estapafúrdia disciplina.

A ideologia do “eduquês” comete sempre o mesmo erro: pensa que para os filhos dos pobres as matérias centrais das disciplinas centrais, matérias razoavelmente claras e directas, são mais difíceis. Não são. É muito mais fácil ensinar elementos básicos da geografia ou problemas centrais da filosofia ou noções matemáticas elementares a estudantes culturalmente desfavorecidos do que estas conversas vagas que só quem tem uma certa preparação cultural pode fingir que domina — fingir, pois não se pense que o autor desta idiotice disfarçada de programa alguma vez leu realmente Walter Benjamin ou o próprio Damásio e os compreendeu, pois se os tivesse lido e compreendido saberia que não se trata de obras que versem sobre conteúdos acessíveis a estudantes — estudantes que o ministério decidiu que são demasiado estúpidos para compreender os princípios elementares da ética de Kant.

E não é apenas uma questão de ser mais fácil ensinar tais coisas do que os dislates deste programa. Os ideólogos do “eduquês” também nunca conseguem perceber que o que melhor prepara os estudantes para participarem activamente no mundo contemporâneo é um conhecimento sólido, ainda que elementar, das disciplinas centrais do conhecimento humano, e não um ror de tolices vagas, que se limitam a reproduzir a cultura dos programas da manhã do Luís Goucha — que seria capaz de fazer um programa melhor do que este excremento; pelo menos, seria menos pretensioso e mais assumidamente ao estilo das tias de Cascais.

12 comentários:

Anónimo disse...

"o que melhor prepara os estudantes para participarem activamente no mundo contemporâneo é um conhecimento sólido, ainda que elementar, das disciplinas centrais do conhecimento humano"

CLAP CLAP CLAP

Anónimo disse...

mp-s:

ahahahahah

o seu CLAP CLAP CLAP está genial.

Sem comentários.

Anónimo disse...

Há cerca de vinte anos alguns empresários não escondendo um certo tom provocatório, diziam que se pudessem até licenciados contratavam para andar com o empilhador ou para servente. Isto, porque os licenciados lhes davam garantias de maior produtividade a arrumar cargas de paletes ou de tijolos.

Pelo andar do ensino durante estes anos, julgo não faltar dia nenhum para se ter que exigir doutoramento para estivador. E o mais incrível é que os empresários que decidam fazer essa exigência não vão poder dizer que os doutorados lhes dão vantagem para estivador, ou para muitas outras profissões. Serão, acredito, pessoas carregadinhas de competências mas se não dominarem os conteúdos teremos fortes tendências para a verborreia. Se excluirmos também a ausência de exercício do sentido crítico, só restarão autómatos inseridos em massas corpóreas mais ou menos amorfas, esponjosas, fluidas, pegajosas, lânguidas, ou o que queiram.

Alunos das áreas profissionalizantes a dominar Damásio e semântica. Viva o luxo!

Mas neste retrato da sociedade, os empresários também não se podem ficar a rir muito porque se é assim na formação dos possíveis empregados, tirando poucas alegres experiências de alguns grandes grupos e meia dúzia de promissores casos de jovens empresas, a esmagadora maioria da classe empresarial deste país sofre de arrogância, visão curta já é exagero porque simplesmente não existe visão de futuro e sobretudo o que prevalece é o provincianismo.

Por estes dias vi um anúncio a um curso de uma escola superior que me pareceu oportuno nos tempos que correm: Licenciatura em "Ciências" da Cultura e Mestrado em "Ciências" da Cultura / Cultura Artística.
As aspas obviamente são minhas. Espero que não vos pareçam exageradas.

Artur Figueiredo

José Oliveira disse...

Cada vez me convenço mais que o objectivo do ME é manter os alunos na ignorância. Até porque formar alunos que fossem capazes de pensar por si sós, começavam a questionar muitas coisas...

Para mais: visto que as áreas de Humanística -- tipo filosofia e por aí fora --, como não servem para formar trabalhadores, "não prestam para a escola"!

Ainda que as escolas profissionais formem os alunos para um profissão específica, não quer dizer que não devam aprender outros assuntos. Mas enquanto as pessoas só servirem para trabalhar, vamos continuar assim...

Anónimo disse...

Meses atrás (julgo que em Março), conforme foi noticiado nos jornais, realizou-se no Porto, uma manifestação de estudantes contra os exames nacionais. Não sei porque carga de água, pouco paricipada: estaria a chover? Parece-me optimismo exagerado acreditar que por detrás desta manifestação estivessem uns pós de cultura literária pela leitura da obra pessoana, ainda que apenas do seu poema "Liberdade": "Ai que prazer/Não cumprir um dever./Ter um livro para ler/E não o fazer/Ler é maçada./Estudar é nada!" Agora com a leitura das complexas obras de António Damásio (sobre o aspecto filosófico e, principalmente, neurobiológico) não tarda nada que os alunos jstifiquem junto dos pais o seu desejo existencial de comer guloseimas: "Como chocolates, logo existo!" E qual é o pai que quer arrostar pela vida fora o remorso de ter atentado conta a existência do seu rebento? Para mais agora que o abono de família, por cada filho, foi aumentado? E como não há duas sem três, uma derradeira pergunta, esta mais "à séria", como para aí se diz: Não é verdade que "ridendo castigat mores" dos responsáveis institucionais por uma sociedade que anda a brincar com o futuro das suas gerações mais jovens?

Anónimo disse...

Por "lapsus calami", escrevi (3.ª e 4.ª linhas do comentário) " não sei porque carga de água...", quando o que queria escrever era, "não sei por que carga de água..."

Anónimo disse...

24 de Julho de 2007 13:50

Andre', o seu comentario e' ambiguo... :O)

Eu estava a aplaudir: acho mesmo que, ao finalizar o ensino secundario, o que e' importante e' mesmo o tal "conhecimento solido, ainda que elementar, ddas disciplinas centrais do conhecimento humano". Saber calcular derivadas, saber trigonometria, saber ler graficos, saber as ideias basicas (de forma simplificada e elemnentar) da ligacao quimica, da estrutura de uma celula, escrever uns programas muito simples, usar o Mathematica ou Maple, saber ler e interpretar poemas e prosa, saber analisar um texto literario, saber falar e escrever com alguma destreza duas linguas estrangeiras, etc etc etxc

José Manuel Dias disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Carlos Medina Ribeiro disse...

Um dia destes, meti no meu blogue um passatempo cujo prémio dependia de uma particularidade bizarra:

Era preciso aplicar a regra dos noves-fora ao nº indicado no "site-meter", e o premiado seria o primeiro leitor que obtivesse "7".

Pois bem... O problema foi aparecer quem soubesse "essa coisa"!

Pouco depois, dei por mim a ensinar as "provas dos nove" a um professor do Ensino Secundário...

Valter Boita disse...

Porque é que eu concordo com tudo o que foi escrito neste "post"?
Ops!, é melhor não fazer demasiadas perguntas, senão estas ainda se tornam temas/problemas ou "“problemáticas” sócio-culturais-ou-qualquer-outra-coisa-que-leve-hífen." :)

António Daniel disse...

De um professor que ensina AI.
Mas alguém julga que lecionamos em conformidade com as directrizes do ministério. Era só o que faltava! Apesar de levar em consideração certas referências (caso contrário era processado por não andar de cócoras) jamais me deixo guiar por imbecilidades. Os alunos são todos iguais!
Não se recordam dos guias de aprendizaegm editados pelo ministério para o Ensino Recorrente Por Unidades Capitalizáveis? A m... é a mesma.

Ps: parabéns pela Arte de Pensar.

António da Cunha Duarte Justo disse...

Um povo que pensa serve o bem comum mas torna-se num perigo para a classe dominante. Por isso é do todo interesse desta classe (especialmente a classe política) que o povo frequente muitos anos a escola mas sem aprender a pensar nem a discutir o que se encontra por trás da chamada liberdade ou livre arbítrio. Em questões do Olimpo, Prometeu será sempre castigado pelos deuses!O saber quer-se só nas maus de poucos oligarcas!!!...

A panaceia da educação ou uma jornada em loop?

Novo texto de Cátia Delgado, na continuação de dois anteriores ( aqui e aqui ), O grafismo e os tons da imagem ao lado, a que facilmente at...