sábado, 9 de junho de 2007

Salvia Divinorum

O último número da revista «The Scientist» tem um artigo muito interessante sobre o efeito em ratos de salvinorin A, um dos compostos isolados da Salvia divinorum, uma planta da família da vulgar e inocente menta.

A salvinorin A, a substância psicoactiva natural mais potente que se conhece e cujas possibilidades terapêuticas merecem a atenção da comunidade científica nos últimos tempos, é quimicamente muito curiosa. De facto, este agonista dos receptores kappa-opióides, é não só o único alucinogénico que não tem actividade sobre os receptores de serotonina 5-HT2A, como o único diterpeno psicadélico.

Designam-se por terpenos os compostos ubíquos no reino vegetal que pertencem a uma família de metabolitos secundários com origem biossintética comum: o ácido mevalónico, o qual por sua vez provém da acetil coenzima A. Os terpenos - que são, por exemplo, os componentes maioritários dos óleos essenciais de plantas sortidas e incluem compostos como as vitaminas A (igualmente um diterpeno) e E, os esteróides, saponinas ou os carotenos - têm sido utilizados em aplicações terapêuticas sortidas, desde o cineol (ou eucaliptol), mentol ou cânfora ao taxol ou paclitaxel, um diterpeno encontrado na Taxus brevifolia que se revelou muito eficaz no tratamento de alguns tipos de cancro.

A S. divinorum é originária do México, mais concretamente da Sierra Mazateca, no estado de Oaxaca, a oeste do Istmo de Tehuantepec, sendo uma espécie muito rara que se propaga quasi exclusivamente por estacas, cultivada por curanderos zapotecas que a integraram na farmacopeia tradicional.

Sabe-se relativamente pouco sobre o uso medicinal/ritual da Salvia Divinorum. Toda a literatura a respeito da sua utilização é muito recente, especialmente se comparada com os registos com mais de três séculos referentes ao teonanacatl, ololiuqui e peiote, outros psicotrópicos integrantes da medicina/religião tradicional desta zona do globo.

O teonanacatl ou cogumelo sagrado, também designado por 'carne de Deus' depois da aculturação cristã, refere os cogumelos psilocybe, que contêm poderosos alucinogénicos como a psilocibina e a psilocina. A representação dos cogumelos sagrados é abundantemente encontrada na arte pré-colômbica, desde frescos no vale do México que datam de 400 a.C. às pedras cogumelo esculpidas ou gravadas pelos maias na Guatemala, algumas com cerca de 3000 anos.

O peiote é o cacto Lophophora williamsii utilizado ritualmente por vários povos indígenas, tais como os Huichol no Norte do México e os Navajos no Sudoeste dos Estados Unidos. A substância activa do peiote é a mescalina ou 3,4,5-trimetoxifeniletilamina popularizada na década de sessenta por Carlos Castañeda e Aldous Huxley.

O padre jesuíta Bernabé Cobo descreve na sua inestimável obra o uso ritual do cacto São Pedro, huachuma ou wachuma (Echinopsis pachanoi) - que contém igualmente mescalina -, utilizado por xamans andinos. Existem várias evidências arqueológicas de que o São Pedro era usado pelo que ficou conhecido como cultura ou horizonte chavín, uma das primeiras civilizações peruanas que influenciou todas as subsquentes, que floresceu há cerca de três mil anos. São encontradas várias representações de huachuma, nomeadamente de sacerdotes com o cacto na mão, no centro religioso desta cultura, Chavín de Huántar.

Ololiuhqui é o nome asteca para as sementes de certas plantas trepadeiras (Convolvulaceae) que são utilizadas desde os tempos pré-colombianos em cerimónias religiosas e práticas mágicas curativas. As «sementes da Virgem« são sementes de Rivea corymbosa - e contêm LA, amida do ácido d-lisérgico, um composto muito semelhante ao LSD.

O frade franciscano Bernardino Sahagun, na «Historia General de las Cosas de Nueva Espana», escreve sobre «uma erva, denominada coatl xoxouhqui (serpente verde) que produz sementes que são chamadas ololiuhqui».

Também o médico Francisco Hernandez, que Felipe II enviou da Espanha para o México, de 1570 a 1575, para estudar os medicamentos dos nativos, incluiu um capítulo «Sobre Ololiuhqui» no «Rerum Medic arum Novae Hispaniae Thesaurus seu Plantarum, Animalium Mineralium Mexicanorum Historia», publicado em Roma em 1651, que não só fornece uma descrição detalhada como a primeira ilustração do ololiuhqui. No texto que acompanha a ilustração lê-se : «Ololiuhqui, que outros chamam coaxihuitl ou planta-serpente, é uma trepadeira com folhas magras, verdes, em formato de coração.... As flores são brancas, bastante grandes.... As sementes são arredondadas.... Quando os sacerdotes dos índios queriam visitar os deuses e deles obter informação, eles comiam desta planta para ficarem inebriados.».

Embora alguns antropólogos defendam que há fortes indícios de que a erva Pipiltzintzintli, de que há inúmeras referências de utilização pelos Astecas, era a Salvia Divinorum, a primeira referência a esta planta foi feita pelo antropólogo Jean Basset Johnson em 1939. Durante a sua investigação do uso dos cogumelos psilocybe, Johnson escreveu que a «erva de Maria» era utilizada em cerimónias curativas e «Os shamans, bem como outras pessoas, usam plantas narcóticas também com a finalidade de encontrar objectos perdidos. Nalguns casos, usam teonanacatl, enquanto noutros usam uma semente chamada 'semilla de la Virgen' [sementes de Rivea corymbosa]. A 'Yerba de Maria' também é usada».

A revista Journal of Ethnopharmacology no seu volume 7 de 1983 inclui um artigo muito interessante (reproduzido aqui) sobre a utilização da sálvia dos adivinhos pelos curanderos Zapotecas, que continuam a utilizá-la quasi como panaceia, nomeadamente para tratamento de anemias, diarreia, reumatismo, dor de cabeça, ansiedade e depressão ou para a indução de «visões», em que neste caso a planta é consumida num complicado ritual envolvendo orações à santissima trindade, à Virgem, São Pedro e mais santos do panteão católico.

A curiosa aculturação da «erva de Maria», utilizada em práticas médico-religiosas em tudo semelhantes às envolvendo cogumelos teonanacatl e sementes ololiuhqui, já fora testemunhada em 1962 por Albert Hofmann, o pai do LSD, em conjunto com a esposa, Gordon e Valentina Wasson e a viúva de Jean B. Johnson, Irmgard Weitlaner Johnson, que trabalhava no Museu Nacional de Antropologia na Cidade de México. Hofmann relata no livro «LSD - A Minha Criança Problema», no capítulo «À procura da Planta Mágica 'Ska Maria Pastora' no território Mazateca», que a cerimónia apenas prosseguiu depois de os presentes terem respondido «creemos» à interrogação da curandera «Nós acreditamos no sangue de Cristo e na santidade dos ritos?»

Embora tenha sérias dúvidas sobre uma possível utilização da salvinorin A no tratamento de doenças «mágicas» como o panzón de barrego, uma doença supostamente causada por mau-olhado ou praga, este é certamente um composto que abre enormes possibilidades, do tratamento de Alzheimer ao tratamento de dependências sortidas. Nomeadamente levanta a possibilidade do desenvolvimento de uma nova classe de opióides terapêuticos baseada em diterpenos.

3 comentários:

Anónimo disse...

Os maiores conglomerados farmacêuticos, os multinacionais, parecem sofrer de uma "verdadeira febre de procura" por novos compostos moldados pela natureza durante milhões de anos de evolução, visto que este "laboratório" decididamente já testou bilhões de possibilidades para cada caso, e nos apresenta um verdadeiro tesouro pronto para ser explorado.

Uma análise na lista dos 20 produtos farmacêuticos mais vendidos nos últimos anos, revela que vários derivaram de produtos: Captopril e derivados - um inibidor da enzima conversora de angiotensina, utilizado em tratamento de hipertensão arterial, teve como protótipo, um polipeptídeo isolado do veneno de serpente brasileira Bothrops jararaca, comercializado por multinacionais farmacêuticas, rendendo de 3-5 bilhões de dólares anuais; CECLOR, cefalosporina produzida pela Ely Lilly, com vendas anuais da ordem de US$ 837 milhões; MEVACOR , inibidor da HMG CoA, produto da Merck, com vendas anuais da ordem de US$ 760 milhões; AUGMENTIN, antibiótico produzido pela Smith Kline Beecham, com vendas anuais da ordem de US$ 710 milhões; ROCEPHIN, cefalosporina, produto da Roche, com vendas anuais da ordem de US$ 665 milhões.

As tubocurarinas, toxinas alcalóides presentes no curare, foram utilizados pela Wellcome, como ponto de partida para o desenvolvimento de uma droga relaxadora muscular, para acompanhar a anestesia geral, com poucos efeitos colaterais em humanos, o ATRACURIUM. Mais tarde surgiu também o VECURONIUM desenvolvido pela Organon.

Entre 25 a 30% das prescrições de medicamentos do mundo ocidental contêm drogas de origem natural; mas os países de origem não beneficiaram nada.

Os únicos beneficiados com a descoberta destes novos princípios ativos são as poderosas multinacionais que fabricam os medicamentos.

Se esta Salvia divinorum der algum remédio, alguém acredita qie os indios se beneficiarão?

Fernando Dias disse...

Não deixa de ser curiosa esta circularidade (constante retorno) traduzida nestas reciclagens de vivências do passado retomadas no presente. Não deixa de estar no plano de uma interrogação fundamental, pois poderia parecer prejudicial aos métodos e aos conceitos modernos da ciência, na medida em que se trata da aproximação ao conhecimento para coisas da esfera subjectiva.

Os efeitos da “Salvia Divinorum” não são instrumentalmente mensuráveis, mesmo que se continue a fazer de conta que é “mensuratio ad rem”(foro da coisa). Só se houver uma ultrapassagem nítida da relação sujeito-objecto.

Enquanto as dependências ou as doenças mágicas são do foro do “sujeito”, já a doença de Alzheimer pode ser colocada no foro da “coisa”. A forma científica só aguenta o tema enquanto nos mantivermos no horizonte do foro da “coisa”.

A objectividade passa então a ser entendida como um vaivém constante entre níveis diferentes de interpretação. As interpretações partem de preconceitos que vão sendo substituídos por conceitos cada vez mais adequados, num esforço contínuo de redefinição, de elaboração de hipóteses que deverão ser constantemente testadas.

A inevitabilidade da opinião que provém da base interpretativa, acaba novamente por fechar o círculo previamente formado no momento da afirmação subjectiva. E assim funciona o constante retorno dos entrelaçamentos vivenciais de três tempos aparentes que afinal são um só – o passado.

Esta é a estrutura circular da compreensão que garante a unidade de sentido entre o subjectivo (sujeito) e o objectivo (“rerun natura”). Este é o entrelaçamento entre a forma do conhecimento experimentado e vivido directamente num contexto histórico, e a forma de conhecimento científico, que embora sendo diferente do primeiro, também não consegue sair de um qualquer contexto histórico.

Anónimo disse...

como a liliana disse, não só o captopril foi nos "roubado" mas também consequentemente todos os seus análogos sintéticos. Falta de incentivo a patente?derrepente interesse, exploração e descaso com direitos humanos.
Muito interessante a iniciativa deste blog. parabéns. Criei muito recentemente um blog de nível acadêmico sobre química medicinal, farmacologia e toxicologia. Nele irei fazer discussões sobre artigos científicos atuais de periódicos diversos sobre as áreas de interesse além de explanar atualidades.Uni-vos!

http://www.quimtox.blogspot.com

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