terça-feira, 19 de junho de 2007

A POESIA NO 1.º CICLO DO ENSINO BÁSICO

No Curriculo Nacional do Ensino Básico, datado de 2001, e relativamente ao 1.º Ciclo, não consta qualquer referência explícita ao ensino e à aprendizagem da poesia, cabendo esta todavia dentro dos enunciados genéricos das competências transversais da Língua Portuguesa, como “descobrir a multiplicidade de dimensões da experiência humana, através do acesso ao património escrito legado por diferentes épocas e sociedades, e que constitui um arquivo vivo da experiência cultural, cientifica e tecnológica da humanidade”; “assumir o papel de ouvinte atento, de interlocutor e locutor cooperativo na procura de regularidades linguísticas e na formulação das generalizações adequadas para as captar”; “exprimir-se oralmente e por escrito de uma forma confiante, autónoma e criativa”; ou de competências específicas, acentuadamente pouco específicas, como “capacidade para produzir textos escritos com diferentes objectivos comunicativos” e “conhecimento de técnicas básicas de organização textual”; ou ainda de experiências de aprendizagem ou situações educativas, como “audição orientada de registos diversificados de extensão e grau de formalidade crescentes”, “actividades de leitura silenciosa e em voz alta de diferentes tipos de textos”, “actividades de elaboração de vários tipos de textos compositivos”, entre outras.

Uma análise do Programa de Língua Portuguesa do 1º Ciclo do Ensino Básico, datado de 1991, permite-nos constatar que também este documento enferma da ausência de indicações substanciais respeitantes aos saberes literários. Apesar de nele constarem referências dispersas a vários tipos de texto poético, à sua distribuição pelos diversos anos de escolaridade e a estratégias para se abordarem, segundo Mendes (1992), a poesia não está explicitamente contemplada nem nos objectivos, nem nos conteúdos, nem nos modos de operacionalização, nem no cânone seleccionado, nem mesmo no perfil do professor que deve assumir o ensino.

O carácter vago destas orientações curriculares autoriza-nos a concluir que, no Ensino Básico, a abordagem da poesia fica ao critério de cada professor, podendo este dar-lhe, ou não, um lugar de destaque nas suas práticas educativas. A este propósito, a autora supra citada pergunta-se: “o professor não fica informado do que da disciplina da Poética o aluno terá que saber no final de cada nível ou ciclo, ou seja: da versificação, o que aprende o aluno? E dos géneros poéticos, quais deve ou é suposto ficar a saber no final do 3º ciclo?” (Mendes, 1992, 62).

Cabral (2002) refere, a este propósito, que os conhecimenos linguísticos que a poesia poderia proporcionar são reduzidos ao mínino nos documentos provenientes da Tutela; as indicações relativas aos processos produtores de sentido situam-se apenas no nível semântico, quando seria de recomendar a exploração de campos lexicais e de organização do poema. Trata-se somente, sublinha esta autora, de um processo de “reconhecimento” dos recursos da versificação sem a necessária e complementar operacionalização dos recursos retóricos e da consequente exploração dos efeitos de sentido criados por tais recursos.

Estas insuficiências respeitantes às indicações curriculares e programáticas, questionam o perfil e o papel dos professores, bem como as suas práticas de ensino, não se lhe podendo exigir que, por si, sem orientações precisas, proponham e trabalhem a poesia como uma mais valia para o desenvolvimento da compreensão, da criatividade e de outras competências fundamentais.

Curiosamente, esta situação parece ser recorrente no nosso panorama educativo. Já o poeta e professor Sebastião da Gama, no seu Diário, resultante do seu estágio de Português na Escola Veiga Beirão, no ano lectivo de 1948-1949, se queixava da inexistência de orientações precisas sobre o ensino e a aprendizagem do texto poético. Aliás, este registo autobiográfico, bem como outros testemunhos práticos corroboram a ideia de que a competência do professor é condição primordial e indispensável para a pedagogia da poesia. Trata-se de uma competência que passa, em primeiro lugar, por cultivar o gosto pela sua leitura, o que se traduz no convívio regular com os textos dos poetas e outros eventos de índole poética.


Tendo como pano de fundo a informação apurada nos documentos curriculares acima enunciados, e considerando o diagnóstico dos problemas pedagógicos e didácticos que a revisão da literatura desvenda, pensamos ser legítimo esboçar um conjunto de estratégias susceptíveis de se implementarem, quer em contexto de formação de professores, quer em termos de sala de aula. São elas:
- A motivação para a leitura da poesia, “associando-a o mais possível a todo o tipo de aprendizagens e de textos” (Cabral, 2002, 60) e não a apresentando apenas como mais um conteúdo escolar ou académico;
- A leitura de textos poéticos de qualidade comprovada (Collom & Noethe, 2005), de vários tipos (Lukens, 2007) de crescente grau de dificuldade e beleza, de modo a constituir-se como um desafio a ir mais longe e mais fundo na compreensão (Magalhães, 2005) e na fruição estética;
- A aproximação do texto poético a outras linguagens artísticas de qualidade em ordem a superar o preconceito de que a poesia se inscreve exclusivamente no reino da formalidade e do tédio (Lansky, 1997);
- O contacto individual e visual (Jean, 1995) com o texto poético, para que se concretize uma apropriação simultaneamente pessoal e integral ao texto como um todo, como uma unidade orgânica (Nozick, 1981; Pierce, 2003);
- A abordagem progressivamente complexa no sentido de desenvolver os níveis de compreensão e de fruição estética (Souza, 2006);
- A oferta de ferramentas para a resolução dos problemas de compreensão do texto poético (Carter, 1998; Sharp, 2005) em ordem a desenvolver uma dinâmica de ensino-aprendizagem colaborativa entre professor e alunos e vice-versa e outros agentes educativos (Collom, & Noethe, 2005);
- O desenvolvimento da metacognição, desafiando cada um a tomar consciência e a inteirar-se dos processos pessoais de aprendizagem (Sheiman, 1999; Laubenthal, 2000);
- A associação do poema com os restantes domínios do ensino-aprendizagem da língua portuguesa de modo a evidenciar o carácter simultaneamente transversal e universal do texto poético (Johnson & Myklebust, 1967);
- A contemplação dos saberes e valores transversais que a poesia por inerência proporciona (Bloom, 1997; Galda & Liang, 2003);
- A procura da plenitude do acto educativo, através da poesia, que potencia o desenvolvimento de competências cognitivas, socio-afectivas e criativas, entre outras (Grimes, 2000).

Como se pode perceber, a poesia exige dos professores uma profunda e continuada formação para a aquisição de um conjunto de competências; tal tarefa formativa, destinando-se primeiramente aos professores, encontra nos alunos os últimos beneficiários deste processo e, no fundo, da força dinamizadora de aprendizagem que a poesia constitui.

João Manuel Ribeiro e Maria Helena Damião

Referências Bibliográficas
- Bloom, H. (1997). The anxiety of influence: a theory of poetry. Oxford: University Press.
- Cabral, M. M. (2002). Como abordar…o texto poético. Porto: Areal Editores.
- Carter, D. (1998). Teaching Poetry in the primary school – Perspectives for a new generation. London: David Fulton Publishers.
- Collom, J. & Noethe, S. (2005). Poetry everywhere. Teaching poetry writing in school and in community. New York, T&WBooks.
- Galda, L. & Liang, L. A. (2003). Literature as experience or looking for facts: Stance in the classroom. Reading Research Quaterly, 38 (2), 268-275.
- Gama, S. (1958/1993). Diário de Sebastião da Gama. (9ª edição). Lisboa: Edições Ática.
- Grimes, N. (2000). The power of poetry. Book Links, 9 (4) 32-36.
- Jean, G. (1995). Na escola da poesia. Lisboa: Instituto Piaget.
- Johnson, D. & Myklebust, H. (1967). Learning disabilities: Educational principles and practice. New York: Grune & Stratton.
- Lansky, B. (1997). How to get kids excited about reading poetry. Florida media quarterly, 23 (1) 16-17.
- Laubenthal, G. (2000). Reflections on reading and writing poetry with children. Texas Child Care, 23 (4) 10-15.
- Lukens, R. J. (2007). A critical handbook of children´s literature. Ohio: Pearson Education.
- Magalhães, M. L. (2006). A aprendizagem da leitura. In F. Azevedo (Coord.), Língua maternal e literatura infantil – Elementos nucleares para professores do Ensino Básico (pp. 73-92). Lisboa: Edições Lidel.
- Mendes, M. V. (1992). A educação literária no ensino básico. O Professor, 26 (3ª série), 62-68.
- Nozick, R. (1981). Philosophical Explanations. London: Clarendon Press.
- Pierce, R. B. (2003). Defining "Poetry". Philosophy and Literature, 27 (1) 151-163.
- Sharp, E. (2005). Learning through talk in the early years: practical activities for the classroom. New York: Paul Chapman Publishing.
- Sheiman, D. L. (1999). What makes good children’s literature. In: Hannah Nuba, Deborah Lovitky Sheiman & Michael Searson (Editors), Children’s literature. Developing good readers (pp. 3-12). New York & London: Garland Publishing.
- Souza, R. J. (2006). A poesia no contexto escolar: sons e rimas formando leitores. In F. Azevedo (Coord.), Língua maternal e literatura infantil – Elementos nucleares para professores do Ensino Básico (pp.47-56). Lisboa: Edições Lidel.

3 comentários:

NCD disse...

E no entanto é certo e sabido que "O poeta faz-se aos dez anos".

Eu sei que foi aí, no 1º ciclo que o meu gosto não apenas pela leitura mas pela poesia em especial se decidiu. Toda a educação, mas o 1º ciclo em especial continuam a depender muito das pessoas.

Não imagina o quanto eu continuo a agradecer à minha professora primária.

Maria Lisboa disse...

Como dizia Sophia de Mello Breyner, numa entrevista à revista Noesis em 1993:

"Espero que na educação portuguesa passe a haver mais música, mais poesia oralmente dita e mais ginástica. Todo o resto virá por acréscimo"

Anónimo disse...

Discordo que o poeta se faça aos dez anos, a poesia faz parte da dimensão do ser humano e da vida, a poesia não está encerrada na palavra escrita. Está na imagem, no pensamento, no sentir de cada indivíduo, independentemente da sua condição ou maturidade. Simplesmente a criança pequena não possui ainda ferramentas que lhe permitam expressar essa sensibilidade.Cabe ao educador a tarefa de incitar à expressão através da oralidade, do movimento. Mais tarde, a criança irá conseguir alargar essa capacidade, através da escrita e da compreensão da leitura.

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