sexta-feira, 29 de junho de 2007

Evolução Humana e Consciência


O que é a consciência? Para que serve? Somos os únicos seres conscientes?

Enquanto olha para estas linhas desenrola-se uma miríade de processos: os fotões de luz incidem na sua retina, os sinais eléctricos resultantes circulam pelo nervo óptico e são enviados para regiões específicas do cérebro que permitem uma descodificação das imagens. Mas, ao olhar para a página está consciente dela, experienciando as imagens das palavras e das letras. Ao mesmo tempo o seu significado pode invocar sentimentos, emoções ou pensamentos, que se desenrolam exclusivamente na sua mente. Essas experiências constituem a consciência: a vida subjectiva interior da mente.

O cérebro humano é o órgão mais complexo que a ciência identificou até hoje. O cortex cerebral terá cerca de 30 mil milhões de neurónios e mil biliões de conexões entre eles. Se contássemos as sinapses à taxa de uma por segundo, terminaríamos dentro de trinta e dois milhões de anos. Hoje é claramente assumido que o pensamento, incluindo o pensamento consciente, é o produto deste órgão complexo. Mas, o cérebro não é um computador digital, não funciona como uma máquina lógica. Será mais parecido com um sistema de reconhecimento de padrões.

O cérebro e o conjunto de funções cognitivas que produz, nas quais se inclui a consciência, é objecto de vários domínios da investigação científica. Um assunto que no passado era tema exclusivo da filosofia. Segundo o dualismo cartesiano de Descartes mente e corpo eram duas realidades distintas, o que não se veio a confirmar (Damásio, 1995 - O erro de Descartes). O primeiro grande passo no sentido de uma abordagem científica da mente foi dado por Darwin que sustentou correctamente que o cérebro humano evoluiu tal como as mãos ou o queixo: todos os organismos e todas as suas partes evoluiram, sem excepção. Esta perspectiva constituiu então uma verdadeira ruptura, que não foi acompanhada pelos seus contemporâneos, como Wallace, que, sem razão, excluíam o cérebro humano da evolução. A conclusão de Darwin implicava ainda que a mente é o produto de um órgão biológico, um pressuposto base de toda a neurobiologia.

De entre as funções complexas do cérebro, a consciência é a mais misteriosa e difícil de caracterizar (Damasio, 2000 - O sentimento de si; Crick, 1994 - The astonishing hypothesis). A consciência é um produto da mente, altamente sofisticado, que constitui a base da nossa comunicação e relação com o mundo físico e social, tal como a entendemos. É também um produto privado, exclusivo de cada cérebro. A nossa percepção da consciência dos outros deriva da nossa experiência sobre o seu comportamento, incluindo o verbal, que nos leva a concluir serem basicamente como nós.

Mas o que é realmente a consciência?
António Damásio dividiu o problema em dois para o simplificar: o primeiro é o do “filme no cérebro”, a sucessão de acontecimentos externos e internos que o cérebro vai registando, sendo o segundo o problema do ‘eu’ (‘self’). Aquela espécie de show multimédia no interior do cérebro, pela continuidade do fluxo de informação sobre os acontecimentos, possibilita a identificação de uma continuidade e estabilidade espacio-temporal que permitem a identificação do eu.

Gerald Edelman formulou uma outra hipótese para explicar a experiência consciente: a hipótese do núcleo dinâmico. Esta resulta da actividade paralela coordenada por conexões recíprocas entre vastas regiões do cérebro, constituindo agregados de neurónios, ao nível do sistema tálamo-cortical, que ao manterem interacção por períodos superiores a centenas de milisegundos permitem a formação de uma experiência consciente. Segundo esta hipótese a consciência de um evento não ocorre antes de decorridos 300 milisegundos, o tempo necessário para a activação de um destes agregados de neurónios.

Enquanto estas hipóteses sobre o que é a consciência vão sendo testadas, há outras questões igualmente interessantes a colocar. Como a de saber para que serve a consciência. Ou seja, porque evoluiu a consciência? O que implica outra questão relacionada: a de saber se somos os únicos seres conscientes na biosfera?

A maioria dos autores assume que a consciência tem vários níveis. Sabe-se que outros animais, além de nós, possuem estados de consciência, ainda que menos elaborados, como a consciência de si, do próprio corpo. Foi isso que demonstrou Gordon Gallup quando pintou uma mancha vermelha na sobrancelha de um chimpanzé, enquanto dormia. Ao acordar e olhar-se num espelho, o chimpanzé foi imediatamente inspeccionar com a mão aquela região do seu rosto que tinha algo diferente, evidenciando o seu auto-reconhecimento na imagem do espelho. Os primatas são os primeiros candidatos à identificação de formas de consciência mais elaborada, não por estarem filogeneticamente mais próximos de nós, mas por partilharem connosco várias características, como cérebros grandes e complexos e uma ecologia social propícia ao reconhecimento individual e à acção consciente. Há outros grupos de animais a considerar por partilharem esssa características, como os golfinhos.

Se nós partilhamos com os outros primatas, filogeneticamente mais próximos, formas elaboradas de consciência, como a percepção dos estados conscientes dos outros, então elas terão surgido em um antepassado evolutivo comum. Se não, trata-se de algo exclusivo da nossa evolução, que tanto pode ter ocorrido há 2 milhões de anos como há alguns milhares.

Uma das formas mais elaboradas de consciência é a noção de que, não só somos conscientes, como os outros também são e que o seu pensamento é diferente do nosso. O simples pensamento: “eu acho que ela pensa que eu gosto dela” envolve uma matemática complexa: significa que cada um de nós tem uma teoria sobre o funcionamento da mente dos outros. E naturalmente há teorias que são melhores que outras. Este pensamento intencional, por óbvio que pareça, não nasce connosco. Desenvolve-se na criança, verificando-se um grande salto por volta dos quatro anos. Só nessa altura a criança adquire uma teoria da mente bem desenvolvida ficando perfeitamente equipada para mentir. Não antes.

Uma das hipóteses mais interessantes para explicar porque evoluimos esta consciência, é a hipótese maquiavélica de Richard Byrne e Andrew Whiten (Byrne, 1995 - The thinking ape). Segundo esta e como o nome sugere, o contexto social propicia a evolução de formas de acção que beneficiam do facto de os actores serem capazes de calcular as trajectórias comportamentais dos outros actores e receptores do seu ambiente social. Esta capacidade de pensar o pensamento dos outros de forma independente constitui uma ferramenta fundamental da vida social, que estamos constantemente a utilizar, quando pensamos conscientemente nos mais diversos aspectos das nossas vidas. Assim, segundo aqueles autores, foi a grande complexidade do ambiente social dos nossos antepassados evolutivos que favoreceu a evolução da mente complexa que possuímos, com especial incidência para a consciência. Esta faz principalmente falta no relacionamento social. Na realidade, os indivíduos autistas, que têm uma conhecida falta de capacidade de relacionamento social, revelaram ter uma teoria da mente muito rudimentar. Por outro lado, quando comparamos a dimensão relativa do neocortex dos vários primatas com o tamanho dos grupos sociais, verificamos que quanto maior o grupo maior o neocortex.

Apesar disso, não sabemos se outros primatas são dotados de uma teoria da mente. Estudos recentes com chimpanzés apresentam resultados equívocos. Circunstância agravada por não podermos recorrer à linguagem para comunicar. Assim, a questão de saber se estamos ou não sozinhos na biosfera, quanto a esta característica, permanece em aberto.

A investigação científica da consciência apenas está no início, já que só recentemente dispusemos de instrumentos que nos possibilitam olhar para o cérebro em funcionamento, de forma não invasiva. Esta investigação irá certamente intensificar-se nos próximos anos. A tarefa de elucidação do que é a consciência será árdua. Mas, será sem dúvida uma tarefa da ciência.

8 comentários:

Fernando Dias disse...

Caro Paulo,

Gostei muito do seu texto.

Permita-me apenas ligeiras divergências conceptuais.

Não devíamos dizer que o pensamento é produto do cérebro. Mas sim uma actividade ou uma faculdade dos seres humanos para a qual o cérebro é indispensável. Sem o cérebro eles não podiam pensar, mas daí não se pode inferir que é o cérebro que pensa. O pensamento é uma actividade inter-relacional do animal com o mundo, com todo o seu corpo. O cérebro sendo a parte principal do corpo para o ser humano poder pensar, o cérebro sozinho não faria nada. Da mesma maneira que a diurese se reporta aos seres vivos e não aos seus rins. É o animal que urina e não os rins. É claro que sem rins os animais não urinavam. Este é um problema conceptual muito frequente em ciência cognitiva ou neurociência e que alguns filósofos designam por falácia mereológica, que quer dizer, tomar a parte pelo todo. Podendo parecer um preciosismo semântico ou conceptual, tem tido enormes repercussões negativas nos modelos conceptuais das investigações científicas.

Pela mesma ordem de ideias a consciência não é um produto da mente nem um exclusivo do cérebro, mas sim um exclusivo de certos seres vivos conforme o tipo de consciência a que nos estamos a reportar. Se for a consciência nuclear (Damásio) ou primária (G.Edelman), é uma aptidão comum a muitos seres vivos; se for a consciência alargada (Damásio) ou superior ou narrativa (G.Edelman e outros), será uma aptidão exclusiva dos seres humanos dado que esta consciência em princípio precisará da linguagem. Tal como ela é entendida, é um exclusivo dos seres humanos. E para a consciência põe-se o mesmo problema que referi acima para o pensamento. Não é um produto da mente porque a mente não é uma entidade como um animal, mas uma actividade desse animal. Assim, se nos estivermos a referir apenas à consciência nuclear podemos não incluí-la no conceito de mente, mas numa faculdade independente do ser vivo, tal como outras faculdades funcionais. O rato terá essa faculdade, entre muitas outras faculdades fisiológicas independentes, mas em pricípio as bactérias não. No caso da consciência narrativa ou de nível superior poderá ser uma parte ou uma subcategoria de um vasto leque de propriedades a que nós chamamos mente humana.

Anónimo disse...

Bom dia!
Tanto a questão da descoberta do sentido e definição da consciência como a de perceber até que ponto outros animais têm uma "teoria da mente" constituem desafios poderosos à promoção do progresso.
Votos de bom fim-de-semana!

Marcelo Melo
[www.3vial.blogspot.com]

Anónimo disse...

É interessante a teoria evolucionista de Teilhard de Chardin, que, sinteticamente, estabelece a Complexidade e, a partir de determinado momento, a Consciência (porque máximo da Complexidade, na estrutura psico-cerebral) como parâmetro da evolução, culminando no Homem, no passo da Reflexão, a consciência da Consciência. Assim nasce a chamada Noosfera, que o Homem habita e alimenta.

Vasco Figueira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Senhor F. Dias

Parece-me um bocadinho exagerado atribuir a mesma natureza às excreções do corpo (seja o ar respirado, ou a urina) e ao pensamento ou ao conhecimento.

Para falarmos sobre o pensamento e conhecimento, usamo-lo. Para falar sobre urina usamos pensamento.

Não posso continuar mais aqui, porque o meu chefe não pode sonhar que eu penso noutra coisa...

Cinzento disse...

"Hoje é claramente assumido que o pensamento, incluindo o pensamento consciente, é o produto deste órgão complexo."

Desde quando e quem assume isso e com que bases?

Aquilo que vc diz ser claro continua a ser uma polémica com várias opiniões e teorias sem nenhuma ter sido provada. Então se tem algo assumido é apenas essa teoria de que o pensamento vem do cérebro...

Denis

cinzento
msn
com

Diogo Bogéa disse...

A consciência, antes de tudo, tem a ver com Memória. O animal tende a esquecer, não a lembrar. Para que nos tornássemos animais conscientes, foi necessário desenvolver a capacidade de memorizar. Assim, o animal humano apodera-se do passado, do futuro (memoria da vontade, promessa), e assim, de si mesmo. O homem capaz de lembrar, capz de prometer e cumprir suas promessas, o homem responsável, livre, autônomo.
Mas, como desenvolver a memória no animal humano? Através de muita violência, crueldade, castigo, sangue. Ou pensa que foi fácil colocar estes animais aqui, em frente a computadores, vestidos decentemente, debatendo sobre a consciência?

Ver Nietzsche - Genealogia da moral

Anónimo disse...

OLá paulo ,
Gostei de ler este Post.
Ponho algumas dúvidas:

As máquinas ou outras formas de inteligência artificial poderão vir a ter consciência ou auto - consciência ?


Já contactou o CENTRO TRANSDISCIPLINAR DE ESTUDOS DA CONSCIÊNCIA ? É interessnate aborda as questões da consciência aos níveis micro e macrocósmicos. Cheguei a trocar uns mais com o Centro e forama muito prestáveis.

Fique bem,
Madalena Madeira

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