segunda-feira, 18 de junho de 2007

“Eduquês” outra vez

No postO Que é o Eduquês?” falei do aspecto linguístico do “eduquês”, que é precisamente o que está na origem do nome atribuído por Marçal Grilo à algaraviada que lia nos relatórios dos pedagogos do Ministério da Educação. Procurei explicar que as algaraviadas raramente são inocentes, servindo antes de instrumento de manipulação e simultaneamente de mecanismo de ocultação de incompetências graves. Regra geral, quanto mais obscuro é um texto mais o autor tem incompetências a esconder. Note-se que digo “regra geral”, pois há evidentemente autores obscuros de grande densidade teórica e originalidade de ideias. Mas seria algo espantoso encontrar tal coisa nos documentos do Ministério da Educação, que todavia primam pela linguagem retorcida, falsamente académica e obtusa. Dá vontade de mandar aquela gente para a escola primária, se na escola primária ainda se ensinasse a escrever português correctamente.

Em termos teóricos é possível identificar as linhas de pensamento que constituem, de forma algo vaga, é certo, o chamado “eduquês”. Nuno Crato fez correctamente a despistagem da origem teórica de tais ideias no livro O “Eduquês” em Discurso Directo (Gradiva, 2006), pelo que me escuso de entrar nesse tipo de pormenores. Quero apenas identificar algumas das ideias centrais que caracterizam o “eduquês”, cuja manifestação é óbvia nos programas e portanto nos próprios manuais das disciplinas, mas sem fazer remontar a sua origem a teorias da educação entretanto empiricamente refutadas, como o faz Nuno Crato.

Precisaremos de mais de um post para falar dos vários aspectos que caracterizam a teoria do “eduquês” que se reflecte na prática. O primeiro é a eliminação de conteúdos, como o Jorge sublinhou no postA Globalização do Eduquês no seu Esplendor”. Visto deste modo, as pessoas ficam escandalizadas e parece até caricatural: como poderemos acreditar que os pedagogos do ministério não querem que os estudantes aprendam aspectos fundamentais da física, da geografia, da história, da literatura? E no entanto é precisamente isso que tais pessoas andam a fazer há vários anos, em grande parte pela calada e com a conivência de muitos professores e autores de manuais escolares, associações de professores, sociedades científicas e universidades. Mas fazem-no por razões que importa identificar. E, na realidade, a motivação para o fazer está correcta — mas é pior a emenda do que o soneto.

A motivação é contrariar aquilo a que se pode chamar “formalismo” no ensino. Sobre isso, leia-se o meu artigo “O Formalista”. O formalismo consiste em repetir sem compreender palavreados, fórmulas, factos, datas. No ensino formalista o estudante decora, repete, imita — mas não compreende, não faz suas as grandes conquistas culturais, científicas, religiosas e artísticas da humanidade. Pelo contrário, usa frases feitas, parágrafos decorados, fórmulas cabuladas que não compreende, palavras caras cujo significado não domina realmente, para fazer testes e exames mentecaptos, que exigem precisamente isso e nada mais do estudante.

O esvaziamento do currículo, a substituição das matérias centrais das disciplinas por conversa fiada sobre “o mundo contemporâneo”, as actividades lectivas sem qualquer valor cognitivo nem educativo (teatrozinhos de trazer por casa, exposições da treta, “debates” que consistem em repetir ideias feitas muito bonitas sobre ecologia, anti-racismo, etc.) — tudo isto tem como uma das motivações contrariar o formalismo. Mas é pior a emenda que o soneto porque só mudaram as moscas, mas continua a mesma imundície: o estudante dantes ainda decorava qualquer coisa de jeito, mas agora... decora ideias “politicamente correctas”, parvoíces vagas sem qualquer substância nem seriedade, e fica basicamente a patinar cognitivamente na idade mental dos 10 anos. A solução do “eduquês” não funciona: limita-se a substituir o que o estudante decora. E decorar por decorar, mais vale decorar qualquer coisa genuinamente interessante sobre o sistema solar, equações do segundo grau ou história do antigo Egipto, a decorar idiotices politicamente correctas e absolutamente inócuas e hipócritas sobre a igualdade e a solidariedade, sobre deitar o vidro no vidrão e sobre a cidadania participada, para não falar no célebre caso de decorar o regulamento de concursos televisivos.

Se o esvaziamento do currículo defendido pelos partidários do “eduquês” não é solução para combater o formalismo no ensino, qual é a solução? Isso fica para o próximo post que este já vai longo e a vida não é só blogs, ainda que de rara natureza.

10 comentários:

José Oliveira disse...

Olá Desidério!

Já Piaget chamava a atenção para a importância exagerada que se atribuía às suas ideias. Dizia ele que não era um pedagogo, mas sim um psicólogo.

O problema que se colocou depois é que se tomou UMA explicação de como se adquire o conhecimento e se fez dela A explicação final e inquestionável. Tomaram-se os meios pelos fins e deixou-se que só uma das Áreas das Ciências da Educação (Psicologia) dominasse todas as outras, nomeadamente através desta linguagem obscura!

Outro aspecto interessante em Relação às Ciências da Educação é que qualquer crítica feita, não é geralmente aceite como uma crítica às ideias de um autor, mas sim um ataque pessoal.

Muito obrigado por, mais uma vez, ter colocado estes problemas à discussão.

Cumprimentos,
José Oliveira.

Fernando Dias disse...

O que se tem passado na Educação é um assunto que nos interpela no cerne da nossa responsabilidade. É certo que em primeiro lugar devem ser responsabilizados os políticos, mas não deixam de estar implicadas mais pessoas. Parece haver nos programas de ensino uma grande incúria nas áreas do pensamento abstracto e um défice de racionalidade crítica. Há quem pense que tal estado de coisas até tem sido conveniente ao poder político e outros interesses instalados na sociedade.

Se se pode dizer que as melhores práticas cognitivas nunca precisaram de se afirmar ou de se defender, a verdade é que daí não se pode concluir que os alunos não precisem de alguém que os defenda, precisamente para saberem defender-se de certas propostas tipo “ovo kinder”. Por isso, nada melhor do que a crítica construtiva para despertar nas pessoas um maior sentido crítico, que em abono da verdade é o que Desidério Murcho e Nuno Crato, entre outros, têm vindo a fazer há já algum tempo.

O logro está na aparência de alguns que se dizem científicos, sem nada terem de científico, juntando ardilosamente a palavra ciência a um rótulo tipo “new age”. E é verdade que num ambiente supostamente “politicamente correcto”, tais embustes são muito difíceis de desarmadilhar. Por outro lado, não se pode confundir a ciência em si, com os ramos profissionais que dela derivam. O facto de o rumo dos acontecimentos haver sido influenciado por órgãos representativos de algumas profissões, salvo raras excepções, foi muito pernicioso visto terem tido apenas em vista a satisfação de enquistados interesses corporativos.

É lastimável que se tenham estipulado verdades absolutas, ao arrepio de qualquer fundamento sólido, sem crítica nem auto-crítica de resultados. Ora, o benefício do método científico está na possibilidade de substituição de uma teoria por outra melhor, tendo como base a lógica da razão e a evidência dos factos e da experiência.

Em todo o caso, também é bom ter o juízo crítico apurado para não aceitar a ditadura de qualquer alta igreja ou totalitarismo. Nesta ordem de ideias naturalmente que também deveremos ser críticos em relação a qualquer tentativa de totalitarismo científico, que tende a monopolizar o sentido das nossas vidas. Nem o conhecimento humano se pode reduzir ao conhecimento científico, nem o horizonte de vida pode estar apertado no colete de forças da tecnologia e da economia, quando estas foram capturadas pelos interesses especulativos capitalistas.

Anónimo disse...

Relativamente a este post do professor Desidério sobre a educação pouco me resta acrescentar, para além de o subscrever por inteiro.

Espanta-me que os responsáveis por estas teorias e práticas não se disponham a poder contribuir para esclarecer publicamente as suas opções em locais como este blog.

Suspeito que é por o blog não o merecer, porque os seus autores e utilizadores são uns radicais e extremistas sem qualquer significado com quem qualquer conversa será pura perda de tempo.

Pois eu penso que muitas vezes, e falo por mim, somos é demasiado condescendentes.

Quem defende que isto está mal mas vai lá com falinhas mansas e paninhos tépidos vê o filme na diagonal.

Revoluções de falinhas mansas e palmadinhas nas costas, existem exclusivamente por permissão dos poderes instituídos, poderes esses que terão sempre de ser mantidos de alguma forma.

Artur Figueiredo

Anónimo disse...

Eu queria fazer um comentário, mas antes gostaria de ler o artigo que cita, O Formalista, cujo acesso é interdito a não assinantes de A Crítica. Não seria possível disponibilizá-lo aos leitores deste blogue?

francisco feijó delgado disse...

Penso que há ainda outro ingrediente importantíssimo para o sucesso do bom eduquês. Aquele que trará ainda piores amarguras do que a falta, já de si grave, de verdadeiros conteúdos para que os alunos aprendam. Fará com que não só os alunos não adquiram conhecimentos, como muito possivelmente os castrará de forma a nunca o virem a conseguir fazer por si sós.

O pior ingrediente do eduquês (restará saber se o originou, ou se apenas dele bebe) é a desresponsabilização.

É a total falta de responsabilização que permite o medianismo, o conformismo e o laxismo. É a falta de responsabilização que mascara ignobilmente, atrás do palavreado bacôco, a exigência que é, nos dias que correm, uma das poucas sortes que um aluno pode ter: um professor que seja exigente.

Anónimo disse...

Meu Caro Desidério
Verdade nua e crua, o que aqui vai. Ao fim de quatro ou cinco reformas depois do 25 de Abril, eu percebi ao que tudo isso ia dar. E dizia com frequência que a única reforma séria e a sério fora a do Veiga Simão. Os ideólogos "puristas" indignavam-se. Ao fim de mais quatro ou cinco reformas, já me davam razão. (Para evitar confusões de tendência política, talvez convenha dizer que faço parte do PS há três décadas, e agora, quando olho para o lado, vejo-me na companhia apenas de pessoas como o Manuel Alegre, o Medeiros Ferreira ou o José Niza. Perdeu-se a dignidade da democracia como cultura e da cultura como democracia.)
Já muitos reconhecem que esta é a maior falha, e decerto a mais difícil de reparar, dos herdeiros do impoluto Salgueiro Maia, do lúcido Melo Antunes, do sonhador Zeca Afonso.
Os conteúdos tendem para zero, não há dúvida. E isto acontece porque, no ensino, quanto aos programas, tudo está ligado entre si. Dou um exemplo. Poderá emsinar-se "Os Lusíadas"? Claro que não. (Isto não é uma afirmação de que não se deve, mas de que não se pode.) Para perceber "Os Lusíadas" é preciso saber História e Geografia quanto baste. O que resta destas disciplinas? As últimas notícias que tive delas falavam de revoluções sociais avulsas ou de economia.
O ensino contém muitas soluções de continuidade, em que cada patamar é cego em relação ao seguinte. Além de que a própria estrutura por disciplina está cheia de incongruências. Não sei se deveria voltar-se aos olhos verdes da Joaninha, mas os olhos de quem vai sendo responsável por tamanha descida para o abismo precisavam de aprender a ver. Porque a sua cegueira é funcional. Ou talvez voluntária, e esta é praticamente tão incurável como a definitiva.

Anónimo disse...

Caro Desidério Murcho,

Somos um grupo de alunos do Curso de Educação de Infância da Universidade de Aveiro. Sendo este post sobre educação, gostaríamos, se possível, obter a sua opinião sobre esta palestra, proferida pelo Sir Ken Robinson no TED.

O nosso ponto de vista é que há demasiados erros nas ideias do Sir Ken Robinson.
Gostaríamos de obter a sua opinião, que para nós é importante.

Atentamente,

Um grupo de alunos da U.A.

Anónimo disse...

Idiotices politicamente correctas, inócuas e hipócritas...
Exactamente, meu caro. Por causa dessas idiotices é que os programas conseguem ser ao mesmo tempo tão pobres e tão extensos.

Rui leprechaun disse...

Olá, juvenis... professores dos infantis! ;)

Não sei se o douto filósofo deu a sua opinião sobre essa palestra, mas cá por mim não consigo descortinar erro algum... quanto mais demasiados!!!

Mas, lá está, pois se os objectivos da licenciatura em Educação de Infância não contemplam nenhuma referência à criatividade nem à expressão artística... bem, fala-se de "sensibilização estética"... é natural que Ken Robinson esteja num mundo à parte.

Afirmar que a criatividade deve ter a mesma importância que a literacia e que não se deve estigmatizar o medo de errar e cometer falhas, parece-me uma afirmação plena de sensatez, isto se pretendemos formar Seres Humanos de pleno direito, claro, e não apenas meros robots para essa inqualificável expressão do "mercado de trabalho"... arghh!... vulgo, "mercado de escravos" de outrora... mas que continua agora!!! :o)

Como ele diz, na parte final, a educação em termos de literacia académica desenvolveu-se a partir do séc. XIX acompanhando a crescente industrialização do mundo moderno. Mas já avançámos mais 2 séculos e mesmo o trabalho na indústria requer um maior conhecimento e criatividade, já que as tarefas repetitivas e rotineiras estão agora a cargo de robots mecânicos.

Gostei especialmente da crítica à educação vocacionada sobretudo para a mente racional - a tal "head separated from the body" - algo que se pode aplicar como uma luva aos doutos promotores deste blog, e a todos os que desprezam, porque o ignoram na prática, o superior papel da intuição/criatividade na vivência do Ser Humano integral e uno!

Nesse sentido, é óbvio que a chocante subalternização das artes na educação constitui um empobrecimento brutal de uma das áreas fulcrais da sensibilidade, ao mesmo tempo que é outro sintoma do ignorante desprezo que votamos ao são equilíbrio entre a razão e o sentimento, criando uma cisão artificial entre o sentir e o pensar, quando ambos deveriam ser simultaneamente desenvolvidos.

Daí, a sua conclusão óbvia que somos educados "out of creativity", isto já para não falar no desprezo, felizmente muito menos evidente hoje em dia, das carreiras artísticas em detrimento das vulgares profissões liberais e os canudos que asseguram o futuro e por aí!

Logo, e só por esta amostra, não consegui mesmo ver uma só afirmação do pedagogo britânico com a qual possa estar em desacordo.

Ora, mas claro, que sabe um Gnominho ignorante...

Rui leprechaun

(...comparado com tanto cérebro assim brilhante? :))


PS: A propósito... o meu trabalho põe-me em íntimo contacto com estudantes e professores. Teses, monografias, apresentações, palestras e conferências são o meu hobby!

Posso ser contactado por mail ou no MSN assim: rui_leprechaun@hotmail.com

Feel free to add me, I'll be glad to help! :)

Anónimo disse...

Parece-me que não, em alguns pontos do Ken Robinson.

Então a criatividade não está em todas as áreas. Ela está no cérebro, certo!?

A ARTE DE INSISTIR

Quando se pensa nisso o tempo todo, alguma descoberta se consegue. Que uma ideia venha ao engodo e o espírito desassossegue, nela se co...