domingo, 10 de junho de 2007

Será possível haver só átomos e vazio?

No nosso manifesto citamos Demócrito, que dá voz a uma versão da teoria atomista: «Tudo no mundo é átomos e espaço vazio». Mas será possível que tudo no mundo seja apenas átomos e vazio? Há razões para pensar que não.

Imaginemos que existem apenas três átomos no universo, e o respectivo vazio que os rodeia. Poderá isso ser tudo o que há no nosso modelo? Há razões para pensar que não, pois parece impossível construir tal modelo sem ao mesmo tempo admitir que há relações entre os três átomos. Por exemplo, os três átomos poderão ter a mesma massa ou não ter a mesma massa — mas em qualquer desses dois casos precisamos de admitir que há relações, como «ter a mesma massa que». As relações são universais, como a brancura: não existem no mesmo sentido em que os átomos existem, porque os átomos têm uma localização espácio-temporal. Mas os universais não têm uma localização espácio-temporal. E também não são, argumentavelmente, entidades meramente mentais, pois no modelo que acabámos de imaginar é óbvio que não há mentes, mas os três átomos têm relações entre eles independentemente de alguém pensar nelas.

Alguns filósofos defendem que há universais por causa de raciocínios como o brevemente apresentado no parágrafo anterior. Os universais parecem fazer parte da mobília do mundo, mas ao mesmo tempo ser diferentes da restante mobília do mundo. Tais filósofos reservam por isso o termo «existência» para o que tem localização espácio-temporal, afirmando que os universais não existem, mas são ou têm ser. Assim, nem tudo o que há existe e a mobília do universo não se reduz ao que existe.

Talvez por causa desta bizarria, outros filósofos negam a existência de universais. Em qualquer caso, a afirmação de que tudo no universo são átomos e vazio é insusceptível de ser completamente provada ou refutada pela ciência empírica. O que está aqui em causa é um problema filosófico, tipicamente filosófico, o que envolve discussões e especulações fascinantes. Na verdade, o mesmo tipo de discussões e especulações que levaram os filósofos gregos a defender o atomismo. E note-se que se pode ser atomista, defender que tudo o que existe são átomos e vazio, mas que além disso há também universais, que são entidades sem localização espácio-temporal e que como tal não existem.

19 comentários:

no name disse...

metafísica mesmo! :-) "...a afirmação de que tudo no universo são átomos e vazio é insusceptível de ser completamente provada ou refutada pela ciência..." está provada: aquilo que demócrito não sabia, na sua visão atomista, é que o mundo é governado pela mecânica quântica. o "vazio" não existe. entre quaisquer partículas temos uma infinidade de outras criadas devido ao princípio da incerteza Δ t Δ E > h. esta prespectiva do mundo só poderia fazer sentido se este fosse clássico. mas não é!

Fernando Dias disse...

Quanto ao comentário de Ricardo, direi que nenhum sistema perceptivo biológico proporciona uma solução ideal para os problemas colocados pelo ambiente a qualquer organismo. É certo que esses problemas são resolvidos de forma suficientemente satisfatória pelos sistemas cognitivos dos organismos, mas isso não significa que eles capturam o mundo com exactidão. Quanto muito, é suficientemente bom para que ele (como sistema global) sobreviva. Nada garante que o conhecimento do homem seja absoluto pelo facto de capturar o mundo suficientemente bem. E é muito contestável, e redutor, que se possa aceitar que o mundo em si seja apenas, ou tal e qual, como a ciência física o descreve. Neste caso Física Quântica.

Do ponto de vista da Filosofia, não faz sentido dar prioridade à epistemologia e torná-la contínua com a Ciência, e muito menos dar prioridade à linguagem da física. Consequentemente, o fisicalismo, ao qual é concedido o lugar de honra na hierarquia da natureza, terá que ser posto em causa. Em todo o caso não significa que se tenham de abandonar as convicções naturalistas e a metodologia científica. E nem tão pouco o abandono do realismo científico.

Quanto aos “universais”, eu coloco-me do lado dos filósofos que os negam. Por exemplo, é falsa a existência da mente como entidade. É um erro conceptual. Argumentar assim, já poderá ser aceitável na nossa maneira de falar. Mas poderei ir ainda mais longe se disser que não existem erros conceptuais mas sim “pessoas” que cometem erros conceptuais. O que existe são “pessoas” com estas ou aquelas características, propridades ou capacidades. Da mesma maneira é falsa a questão quando se pergunta – como é que a forma de um lápis interage com a madeira do mesmo? Que é do mesmo tipo desta – qual é a relação da mente com o corpo? Ou do cérebro com a “pessoa” (a forma mais recente de dualismo). Ora, este tipo de dualismo não parece fazer qualquer sentido.

Anónimo disse...

Não concordo com a opinião transmitida na passagem “Em qualquer caso, a afirmação de que tudo no universo são átomos e vazio é insusceptível de ser completamente provada ou refutada pela ciência”. O facto de tantas questões difíceis terem vindo a ser resolvidas por aqueles que se dedicam à investigação científica, deve levar-nos a adoptar uma posição mais prudente. Aliás, a aventura da Ciência começou há relativamente pouco tempo ...

Jorge Oliveira

Desidério Murcho disse...

Olá, Jorge

Obrigado pelo reparo. Na verdade, cometi o mesmo disparate que os cientistas tantas vezes cometem, e usei o termo "ciência" como sinónimo de "ciência empírica". Vou corrigir o texto.

A afirmação de que tudo no universo é átomos e vazio não pode ser confirmada ou infirmada pela ciência empírica porque se há ou não universais não é algo que se possa determinar por meios empíricos.

João Vasco disse...

Por acaso já estive a discutir, numa caixa de comentários deste blogue, se o "campo" existia ou não.

Não é exactamente a mesma questão, mas está relacionada.

Fernando Dias disse...

A propósito da questão de Vasco Gama “o campo existir ou não”, que é mais um conceito do que uma questão de facto, levou-me a duvidar da afirmação de Desidério “que é impossível a ciência empírica poder afirmar que tudo no universo são átomos e vazio”. Nesta afirmação, por seu lado, podemos considerar que estamos perante questões de facto e não de conceito. E a ciência empírica, dedicando-se às questões de facto, não está sujeita à referida impossibilidade.

Por outro lado, os universais não me parecem entidades, mas sim conceitos que são do domínio da lógica, e sendo assim, questões de sentido e não de facto. Os universais não são questões de verdade ou falsidade empírica, mas de sentido ou contra-senso. Portanto, os universais poderão ter uma possibilidade lógica mas não uma realidade empírica.

Musicologo disse...

1. If we can imagine a ball of matter and a smaller one, all in a filled up universe with no supposed voids, we would start wondering “why is this ball smaller? What is making it smaller?” and we would find that the answer would be: the lack of something.

2. That lack, can also be interpreted as a void, or a space.

3. So, in fact, to every way we turn to we can’t escape the evidence that to any matter that exists, we have also a lack of matter, otherwise we would have only one big giant piece of matter that would not be distinguishable.

4. So, we reach the assumption that, in fact, matter has no survival without the lack of itself. So, in order for matter to exist, we need space. So space is not only the non existence of matter, but also a fundamental compound of matter.

Onde está então a falácia aqui?... Não percebo bem, alguém me poderia esclarecer, já que segundo as teorias quânticas «tudo é energia e logo não há "espaços"».

Anónimo disse...

Caro Desidério, no modelo "apenas átomos e vazio, sem universais" é possível falar de localização espacio-temporal?

Fiquei a pensar se estamos, aqui, na categoria das "relações", mas parece-me que, num mundo com apenas um atomo em vez de três (não-relacionavel com outros) o problema se manteria. Ou não, e por isso é que o seu modelo tem mais do que um átomo?~

Muito obrigada

Desidério Murcho disse...

Olá, Hellena

Usei mais de um átomo no modelo porque é mais intuitivo perceber que eles têm de ter relações entre si. Mas mesmo um só átomo tem propriedades -- e as propriedades são universais. Além disso, tem também relações, como a relação de identidade. Só que estes exemplos são menos intuitivos.

Anónimo disse...

Caro Desidério:

Se por átomo entendermos uma monada, e se considerarmos que existe apenas uma mónada, então que sentido faria o "espaço", o "tempo" ou as propriedades que não sejam as internas? E mesmo estas, no caso de um mónada solitária, em que medida poderiamos falar em propriedades?

Já agora, este não será precisamente o caso similar do cosmos (?) antes do Big Bang?

Anónimo disse...

Caro Desidério, compreendi o exemplo da identidade, obrigada. Mas a questão de Jlc, a seguir, é um pouco a minha também - mais bem formulada. Não há que distinguir aqui propriedades apenas de ordem "lógica" (identidade) de propriedades "físicas"?

Desidério Murcho disse...

Olá, Hellena e JLC

Mesmo num modelo com um único átomo, haverá propriedades relacionais, como a propriedade da identidade, que é relacional.

A distinção entre propriedades relacionais e não relacionais é menos óbvia do que possa parecer. E não coincide com a distinção entre propriedades "físicas" e "lógicas", seja isso o que for.

Em qualquer caso, num modelo com um átomo apenas esse átomo pode ter várias propriedades "internas" ("intrísecas" é o nome geralmente dado). Se considerarmos, como é costume, que um átomo é um particular, e que os particulares têm localização espácio-temporal, então não pode haver por definição um átomo sem que este ocupe um tempo e um espaço -- caso contrário não seria um particular, mas sim um universal.

A ideia de que as propriedades "lógicas" são meras projecções linguísticas é uma tese filosófica substancial extremamente difícil de defender. A identidade parece perfeitamente uma propriedade das coisas elas mesmas, e não uma criação linguística. O que se passa geralmente é que as propriedades lógicas podem ser descobertas pelo pensamento apenas, mas daí não se segue que existam no pensamento apenas.

Anónimo disse...

Mas isso significa um papel curioso para o "vazio", ou estou a pensar mal?
Quero dizer: se é o "espaço vazio" que permite a localização espacio-temporal, entao ele é necessário para pressupor qualquer particular, como diz. O que significa que temos - sempre - uma relação a dois, por assim dizer. Sem ele, o pobre átomo estava condenado a ser um universal?
No entanto, o espaço vazio, ele mesmo, é um universal, visto que nao tem, por sua vez, uma localização a menos que admitissemos um super-espaço que o contivesse?

Sinto muito a falta de um vocabulário apropriado.

Ludwig Krippahl disse...

Caro Desidério,

Continuando a nossa guerra, devo dizer que discordo :)

Se a massa é a mesma ou não depende da definição de massa. Ou seja, do modelo. Para Newton podia ser a mesma, no modelo de Einstein a pergunta nem faz sentido. Mas vou deturpar as tuas palavras para me simplificar a vida.

Imagina um universo com dois átomos em que o átomo B tem uma massa maior que a de A. Dizes que há dois átomos e um universal «maior que». Eu digo que não.

«Maior que» é uma relação inventada por nós na ordenação dos números, que também inventámos. Depois fazemos corresponder o modelo aos átomos (empiricamente, sempre) e notamos que o número que corresponde a B é maior que o que corresponde a A.

Mas imagina agora que decidimos medir a massa com valores negativos. É completamente arbitrário, basta mudar o sinal das variáveis nas nossas equações. Subitamente, a massa de B passa a ser menor que a de A. Mudámos o universo? Não. Está tudo no modelo.

«Mesma massa» e «massa diferente» complica um pouco a refutação, mas acaba por ser também uma parte do modelo e não do universo, pois depende totalmente de como definimos a massa.

É claro que podemos pôr um átomo C no meio de A e B a ver para onde cai. Se fica no meio A e B têm a mesma massa, se cai para A então A tem a massa maior. Mas essa definição empírica deixa de ser universal.

Resumindo, os universais são partes do modelo, escolhidos por nós por conveniencia. Como as regras do monopólio.

E comprovar ou refutar uma afirnação, no sentido de determinar se corresponde à realidade, só pode ser feito empiricamente. Senão é jogar sem as peças :)

Desidério Murcho disse...

Caro Ludwig

Obrigado pelo teu comentário.

Parece-me que estás a confundir palavras com coisas. Se trocarmos o sinal não é verdade que o maior passa a ser menor, mas apenas que passamos a usar “maior” para menor e vice-versa.

O mesmo acontece se disseres assim: na realidade, no modelo com 3 átomos não há átomos. Pois podemos perfeitamente decidir chamar “camião” aos átomos. Logo, nesse modelo passamos a ter camiões.

Isto, evidentemente, é uma confusão entre palavras e coisas. Não mudaste a natureza das coisas que tinhas antes pelo facto de lhe dares um nome diferente. Apenas lhes deste um nome diferente.

O mesmo acontece no caso dos universais. Se um átomo tem uma dada propriedade que o outro não tem — por exemplo, tem mais electrões — não é pelo facto de contares electrões de maneira diferente que passa a ter menos.

Eu compreendo o teu ponto de vista. Foi aliás muito popular na filosofia do positivismo lógico, que defendia o idealismo linguístico que os cientistas ainda hoje têm tendência para defender — penso que em parte por sofrerem de cientismo, tal como os positivistas. Aliás, o próprio idealismo é uma tentação constante na história do pensamento humano, pois está mais de acordo com o nosso antropocentrismo natural. Mas qualquer versão de idealismo — linguístico ou não — parece-me implausível e partir de motivações erradas. As coisas têm as propriedades que têm, incluindo as propriedades relacionais, e já as tinham antes de aparecerem seres humanos e continuarão a tê-las muito depois de os seres humanos terem desaparecido. No sistema solar, por exemplo, o planeta Terra já existia e já era maior do que a Lua muito antes de haver alguém para chamar “Terra” à Terra, “Lua” à Lua e para inventar sistemas de medida. Esta é a intuição realista que me parece só poder ser derrotada por argumentos muitíssimo fortes. E nem sequer vejo que motivação sólida poderemos ter para tentar fazer tal coisa.

Se quiseres dar uma vista de olhos num filósofo ultra-idealista, que acha que o mundo é feito por nós, agarra-te a Goodman. Mesmo o livro dele sobre arte, aqui divulgado, apoia-se num idealismo extremo, a que ele chamava a-realismo: a ideia de que o mundo existe mas é uma matéria indiferenciada que depois nós organizamos por categorias convencionais, pensando depois erradamente que elas pertencem ao próprio mundo.

Ludwig Krippahl disse...

Olá de novo,

Não me considero idealista. Até julgo ser bastante realista. «Electrão» refere-se mesmo a uma coisa que existe, e não é um mero conceito.

Mas dizer que um universal é uma coisa é que seria confundir palavras com coisas. «Maior» não é uma coisa. Penso que tambám não defendes isso.

O que eu defendo é que enquanto universal, «maior» é apenas um conceito no modelo. Não está no universo.

Nós podemos dizer que a Terra é maior que a Lua se definirmos esse «maior» de uma forma empírica. Por exemplo, emparelhamos cada átomo da Terra com cada átomo da Lua, e como sobram átomos da Terra no fim dizemos que a Terra é maior. Mas nesse sentido «maior» não é um universal. É o resultado de uma experiência.

Mas se por «maior» entendemos uma relação universal entre os números, e dizemos que a Terra é maior porque tem 12 mil quilómetros de raio em vez de só dois mil, nesse caso estamos a falar do modelo.

Imagina que tens um modelo de dois planetas, um com 12 mil Km de raio, outro com 2 mil Km de raio. Nesse modelo, o primeiro planeta é maior que o segundo. Quer existam quer não existam. Nem é preciso ter universo para esta relação de maior ser válida. Basta o modelo.

Mas a experiência de contar os átomos, a definição de maior que não é universal mas sim empírica, essa só a podes fazer com os planetas. O resultado da experiência é uma propriedade do universo. O maior universal é uma propriedade do modelo.

Já agora, no caso dos átomos não é mudas o significado das palavras. Os átomos existem quer se chamem átomos quer se chamem camiões. Mas se A tem massa 2 e B tem massa 3, a massa de B é maior, enquanto que se A tem massa -2 e B massa -3 a massa de B é menor. E a massa ter sinal positivo ou negativo é propriedade do modelo, não dos átomos.

Anónimo disse...

Parece-me que o problema dos universais se reduz a isto : confusão entre coisas e palavras,ou reificação dos conceitos,o que é bem típico do platonismo.

Anónimo disse...

E a alma ?!

Será a alma um universal ?!

Ela não seria uma relação entre todos os nossos átomos, moléculas, órgãos, sistemas, entidades mentais e entidades emocionais ??!


Sds.,
m

Anónimo disse...

Caro Desidério,

Ainda aguardo comentários ao meu questionamento acima. De outros leitores também. Estarei eu pisando na bola, ou em ovos ?!

Abraços,
m

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