O governo da Nigéria processou criminalmente a Pfizer, a gigante do sector farmacêutico, por testes clínicos que tiveram consequências fatais. Em 1996, durante uma epidemia de meningite em Kano, 200 crianças doentes foram objecto de testes de um novo antibiótico da Pfizer, o Trovan (Trovafloxacin). A metade das crianças envolvidas no teste foi administrado Trovan, cinco das quais faleceram e um número desconhecido de crianças desenvolveu surdez, cegueira, paralisia e outros tipos de invalidez. As restantes 100 crianças foram tratadas com medicamentação aprovada e eficaz contra a meningite mas, de acordo com a queixa, foram aplicadas doses abaixo do necessário, pelo que morreram seis crianças do grupo de controle.
Em 1997, mais de 30 famílias processaram, sem sucesso, a Pfizer no Tribunal Distrital Federal em Manhattan, com base na Lei de Alegação de Tortura de Estrangeiros. A empresa exibiu em sua defesa uma carta de um hospital de Kano dizendo que o teste tinha sido aprovado pela comissão de ética do hospital. Aparentemente o referido hospital não tem comissão de ética...
De acordo com a queixa agora movida pelo governo nigeriano, a Pfizer não informou os pais das crianças que o tratamento ministrado se tratava de um teste nem que existia um produto comprovado e relativamente barato, o Ceftriaxone, produzido pela Hoffman-La Roche, concorrente da Pfizer, oferecido mesmo ao lado pelos Médicos sem Fronteiras, o que viola o Código de Nuremberga e a Declaração da Associação Médica Mundial de Helsinquia. Em sua defesa, a Pfizer emitiu em 29 de Maio o seguinte comunicado:
«A Pfizer continua a enfatizar que o estudo clínico do Trovan, em 1996, foi conduzido com o total conhecimento do governo nigeriano e de forma ética e responsável, em consonância com o contínuo compromisso da empresa com a segurança do paciente. Quaisquer alegações nesses processos que digam o contrário simplesmente não são verdadeiras - elas não eram válidas quando foram levantadas pela primeira vez, anos atrás, e não são válidas hoje.
[...]A Pfizer sempre agiu pelos interesses das crianças, utilizando o melhor conhecimento médico disponível.
Na época do surto, o Trovan estava no último estágio do seu desenvolvimento. [...] Os médicos da Pfizer tinham provas científicas sólidas de que daria um tratamento seguro. [...] É lamentável que o governo nigeriano tenha aberto uma acção legal contra a Pfizer e outros por um esforço que trouxe benefícios a jovens cidadãos da Nigéria.»
O Trovan nunca foi aprovado pela FDA para tratamento de crianças nos Estados Unidos, e, embora tivesse sido aprovado em 1997 (para adultos) e entrado no mercado norte-americano em Fevereiro de 1998, um ano depois a sua utilização foi sujeita a severas restrições após 14 casos de falha hepática grave em que seis dos pacientes afectados morreram. Este antibiótico é proibido na Europa.
O episódio, que me recordou o livro «The same and not the same» de Roald Hoffmann, que aborda a responsabilidade social dos cientistas usando como exemplo o caso da talidomida, inspirou o romance de John Le Carré passado à tela por Fernando Meirelles, (Cidade de Deus) «O fiel jardineiro».
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12 comentários:
"O Fiel Jardineiro", para ser mais exacto. Grande livro, grande filme. E uma sensação horrível, durante e após os mesmos...
Olá a todos. Como sou visitante assíduo destas paragens atrevo-me a deixar uma "ligação" que se associa ao tema.
http://arquian.blogspot.com/2007/05/ripano-caseiro.html
O Fiel jardineiro, claro. Já emendei...
Pal,
O descaramento chega a este ponto: se viajar para "longe", não se esqueça dos seus próprios medicamentos...
Declaração ubíqua em guias do viajante!
(Zalmoxis: vi agora o seu contributo no post do Desidério e agradeço-lhe. Mas eu sou casmurro como o aço, e continuo a achar que a ética tratável pela filosofia é a conjuntural, da soma das partes. Cada parte constrói a sua ética, e essa como poderá alguém construí-la por mim? Leva uma vida inteira...)
Sobre este assunto vale apena ler o editorial do New England Journal of Medicine sobre a "trapalhada" da aprovação do Ketek (telitromicina) pela FDA nos Estados Unidos.
http://content.nejm.org/cgi/content/full/356/16/1601
De qualquer modo ceftriaxone e clorofenicol não são sinónimos nem sequer antibióticos da mesma classe. E não têm o mesmo espectro de acção das fluoroquinolonas (no caso a trovafloxacina).
Este trágico desrespeito à pessoa humana não é único na África e em alguns países asiáticos pobres. Muito pelo contrário.
O extraordinário aumento na invenção de novas drogas exige um correspondente aumento de testes clínicos para conseguir a aprovação das instituições oficiais dos grandes mercados dos Estados Unidos e da Europa.
Para testar cada droga nova, são necessários cerca de quatro mil voluntários. O problema é arranjar voluntários nos países desenvolvidos. O mesmo não acontece na África e na Ásia, onde o baixo pagamento oferecido é disputado pela população extremamente pobre da maioria desses paises.
Por isso, as multinacionais farmacêuticas estão cada vez mais realizando ali grande parte dos experimentos com novas drogas.
os países africanos e asiáticos oferecem outras vantagens. A rapidez é uma das principais. Enquanto que nos Estados Unidos, por vezes, levam-se anos para reunir voluntários suficientes para um experimento, na Africa e na Ásia esse prazo é reduzido, geralmente, para menos de duas semanas. Rapidez é particularmente importante num mercado em que os laboratórios desenvolvem drogas praticamente iguais competindo entre si para poderem lançar a sua marca em primeiro lugar.
Os regulamentos de controle locais são pouco exigentes e facilmente contornáveis;
No Ocidente, de 40 a 60% dos voluntários abandonam os testes clínicos no meio, em função de efeitos colaterais desagradáveis ou pelas dificuldades de se deslocar até a clínica. Em países como a Índia, as companhias de testes clínicos mantêm 99,5% dos inscritos. Muitas vezes isso acontece porque não lhes foi informado que não estavam obrigados a ir até o fim.
Muitos dos hospitais e clínicas onde se fazem testes não contam com comissões éticas, capazes de exercer fiscalização para garantir que sejam prestadas informações completas aos participantes.
O mais irônico é que, além de arriscarem sua saúde e até sua vida nos testes clínicos, os africanos não auferem nenhum beneficio, mesmo quando os novos medicamentos apresentam bons resultados.
É que custam caro, foram feitos para os habitantes dos países ricos, não para pobres negros ou asiáticos. Para as multinacionais farmacêuticas, eles são apenas cobaias, que exigem poucos mais cuidados do que ratos de laboratório...
Vale a pena ler no Le Monde Diplomatique:
http://diplo.uol.com.br/2005-06,a1117
As vítimas da Big Pharma
As populações do Sul, em especial as africanas, são cobaias dos testes clínicos de grandes laboratórios que testam ali, à guisa de princípios éticos, medicamentos que servem aos mercados do Norte
Why Cuba Is Exporting Health Care to the U.S.
http://www.alternet.org/healthwellness/53087/?page=1
Zalmoxis,
Não me atrevo a contestar nada do que me disse, aliás tenho a sensação de concordar consigo. Para ser franco, na filosofia sou como um dinossauro a comer abóboras. O que me preocupa é reconhecer-se a filosofia como uma circunscrição com direitos especiais sobre a ética, porque abrem-se duas hipóteses: ou somos todos filósofos (o Dério não me ia oferecer esta), ou muitos de nós estão desvinculados da dignidade ou controlo moral (e esta não lhe ofereço eu). Mas amigo não empata amigo.
"A filosofia não constrói nada por ninguém" é um facto que, estranhamente, eu lamento.
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