O «Princípio Antrópico», ou princípio da natureza do homem, utilizado como argumento de «Desenho Inteligente» pelos homens da ressurreição, baseia-se numa verdade de Monsieur de La Palice: se as constantes da natureza (como por exemplo, a carga e a massa do electrão, a constante de Planck, a velocidade da luz, a permitividade no vácuo, etc.) fossem diferentes, o Universo como nós o conhecemos não seria possível.
O princípio antrópico recusa que sejamos o que é subjacente ao evolucionismo e propõe que o Universo e as leis da Física foram «desenhados» para a existência do Homem. Existem essencialmente três versões do princípio antrópico, desmistificadas aqui ou aqui e ainda aqui:
Princípio Antrópico Fraco (WAP): Os valores das constantes físicas e cosmológicas estão restritas pela exigência que existam locais onde a vida baseada no carbono possa evoluir e pela exigência de que o universo é velho o suficiente para esta já ter evoluído;
Princípio Antrópico Forte (SAP): O universo deve apresentar as propriedades que permitem o desenvolvimento da vida. Ou seja, um argumento circular, como a vida existe porque as constantes fundamentais e as leis de natureza permitiram o seu desenvolvimento, logo a vida existe porque as constantes fundamentais e as leis de natureza devem ser tais que a vida possa existir. Os valores das constantes físicas fundamentais incompatíveis com a vida e a vida inteligente são proibidas;
Princípio Antrópico Final (FAP). Esta versão diz que o processamento de informação inteligente tem que entrar em existência no universo, e, uma vez entrado em existência, nunca desaparecerá. O FAP tem em Frank Tipler o seu principal advogado de defesa, nomeadamente no livro pomposamente chamado «A Física da Imortalidade» e que o Jorge referiu no post sobre o «passanço» do autor. O livro contém um «apêndice para cientistas» de 110 páginas que deixa perplexo qualquer cientista que inspeccione as páginas porque não têm nada a ver com o tema do livro ... mas o leitor leigo em ciência, que não vê mais que uma enorme quantidade de equações impenetráveis, ficará certamente impressionado com os supostos argumentos científicos que o autor apresenta para a existência de Deus.
Nos longínquos finais do século XX, em Julho de 1998, quando todos pensávamos que a religião não seria sequer um parâmetro equacionável na descrição do «ser» do Homem ou do Universo, quando o Jorge Dias de Deus afirmava que «a Evolução é uma das noções que, após grandes reacções de fundamentalismos vários, mais fortemente se enraizou na tradição científica», falou sobre o tema nos V Cursos Internacionais de Verão de Cascais.
Palestra que, por ser demasiado extensa para transcrição na íntegra, transcrevo parcialmente.
«Há um princípio, Princípio Antrópico, que pretende demonstrar que o número de civilizações inteligentes é necessariamente maior ou igual a um e, para os defensores mais extremistas do princípio, o número é exactamente igual a um. Trata-se efectivamente de uma tentativa de recuperar um sentido para o Mundo, através de um princípio teleológico, correspondendo a uma actualização das ideias de Teilhard de Chardin.
O Princípio Antrópico, na sua versão «fraca» diz que:
1) as forças da Natureza Têm as intensidades e alcances que têm:
2) as massas, cargas e outras características das partículas têm os valores que têm;
3) o Universo tem a idade que tem, de modo a permitir a existência e evolução da Vida (com base no carbono).
Em relação ao Universo, já vimos que a sua idade (na ordem de 1010 anos) é compatível com a evolução (cerca de 109 anos para que se chegue, por Evolução, à Vida Inteligente). Se fosse mais velho haveria menos estrelas a funcionar (teriam já gasto o seu combustível nuclear) e a probabilidade de se encontrar um Sol e uma Terra baixaria enormemente. Se fosse muito mais novo não teria havido tempo para o aparecimento de um Sol e de uma Terra, e não teria havido tempo para a evolução.
Quanto às massas das partículas, se a massa do electrão fosse 200 vezes maior do que é (se fosse igual à massa do muão) o átomo seria 200 vezes mais pequeno e nós seríamos igualmente 200 vezes mais pequenos! De facto, a situação é mais dramática do que isso: com átomos 200 vezes mais pequenos os electrões (de carga negativa) ficam dentro do campo dos protões (de carga positiva) do núcleo, sendo por estes capturados com a produção de neutrões e neutrinos (de carga zero). Os núcleos acabariam por ser instáveis e, por exemplo, as estrelas ficariam neutras, incapazes de produzir luz, que é uma pré-condição essencial para a vida. Dito de outra maneira: não haveria Sol!
Mas haverá, sim ou não, algo de misterioso nestas - chamemos-lhe assim - coincidências? É difícil de dizer onde é que está a boca e onde é que está o rabo da pescadinha: mas realmente parece um problema de pescadinha de rabo na boca. Não viveremos, talvez, no «melhor dos Mundos», mas temos de viver num Mundo onde possamos viver. Ou então não viveríamos.
Portanto, o Princípio Antrópico, nesta versão fraca, só serve para chamar a atenção para a necessidade de consistência entre as características da Vida inteligente conhecida, e as características do Mundo exterior. Em certa medida, o Princípio é tautológico. Por outro lado, nesta versão, não é de modo algum inconsistente com a evolução e o darwinismo. Limita-se a dizer: se eu existo têm que existir pré-condições para a minha existência.
Na sua versão «forte» o Princípio Antrópico diz o seguinte: O Universo é tal que:
1) Necessariamente leva ao aparecimento da Vida e da Vida inteligente;
2) Uma vez surgida a Vida inteligente, esta prosseguirá a sua evolução sem nunca desaparecer.
Dito de outra maneira: a Vida inteligente é como que um feto do Universo (implantado talvez por Deus) que se irá desenvolvendo de forma harmoniosa... E não há aborto, voluntário ou não, possível.
À primeira vista, esta tese não parece muito convincente. De facto sabemos que muitas espécies têm desaparecido (os dinossauros constituindo o caso mais espectacular). Os humanos, esses estariam condenados a não desaparecer...
Por um lado, se a Humanidade - a nossa Humanidadezinha - continuar com os pés na Terra, certamente que desaparecerá. Isto porque o Sol, fonte de vida, da energia e da nega-Entropia, é, como todas as estrelas, uma estrela condenada. Condenada a gastar o seu (abençoado) combustível nuclear até à exaustão.
Por outro lado, a Humanidade construiu armas poderosas- bombas nucleares capazes de levar a uma autodestruição. Por que é que tal não aconteceu, em particular nos anos quentes da guerra fria? Será que Kennedy e Kruchov ou Reagan e Bresnev tinham uma protecção (divina) que travava os seus instintos destruidores?
Mais uma vez aparece a pescadinha a querer meter o rabo na boca. Será pelo facto de haver um princípio teleológico que a Humanidade existe, ou será exactamente o contrário: porque a Humanidade existe inventou-se um princípio teleológico?
Em conclusão: a posição «cientificamente correcta» - a posição cc - parece continuar a ser a de Monod e Weinberg: somos fruto do acaso e da necessidade, nada mais há para além disso.
Naturalmente que todos temos o direito - e talvez o dever -, como Einstein, de nos deslumbrarmos, encantarmos, comovermos com o milagre do Universo e da Vida.
Haverá mesmo, talvez, irredutibilidade das questões de Gauguin (donde viemos, onde estamos, para onde vamos) a um tratamento estritamente científico. A razão poderá ter a ver com a impossibilidade que temos de responder a questões mais globais que se colocam na teoria. A questão do Nós e o Cosmos poderá ser uma questão meta-científica no sentido do teorema de Gödel. Por palavras simples: não se pode explicar tudo. Não pode haver teoria explicativa completa!
Termino com uma citação de Max Planck, o Físico dos Quanta, do fim do século XIX e do começo do século XX:
'A Ciência não pode resolver o mistério final da Natureza. Isto porque, em última análise, nós próprios somos parte do mistério que tentamos resolver'.
Eu penso que Gödel não teria dito melhor!»
Sobre o tema, recomendo ainda o primeiro livro de divulgação escrito por um dos pais da teoria de cordas, Lenny Susskind. Nele, para além de descrever para «o povo» a teoria, Susskind afirma não ser necessário qualquer desenho inteligente associado ao princípio antrópico. Ou seja, como o próprio afirmou, «Descobri [em blogs e websites religiosos] esta enorme cultura de pessoas que acreditam que o princípio antrópico significa desenho inteligente. O que foi educacional para mim. Este livro é sobre não serem necessárias explicações sobrenaturais».
Pessoalmente, e como já referi, só subscrevo o CRAP (Princípio Antrópico Completamente Ridículo), e concordo com Neil deGrasse Tyson, director do Hayden Planetarium do American Museum of Natural History em New York, quando este diz que livros como os de Tipler são fruto de homens brilhantes que aproveitam o filão «Deus» para encher as respectivas contas bancárias.
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11 comentários:
parece-me que o nome "princípio antrópico" é usado em situações diferentes com significados muito diferentes, o que leva a que muitas vezes não se perceba o que ele quer dizer ou não.
por exemplo, fala-se de princípio antrópico para a massa do electrão, mas também se podia falar de princípio antrópico para o raio da terra, ou a distância da terra ao sol.
certamente ninguém espera encontrar uma equação que nos diga que o raio da terra tem que ser exactamente o que é, ou que a distância da terra ao sol tem que ser determinada como solução de astrofísica estelar. existem planetas de muitos e variados tamanhos e a diversas distâncias das suas estrelas -- e existem também muitos tipos diferentes de estrelas.
mas existe um número muito reduzido de estrelas, órbitas planetárias, e tamanhos de planetas, que permitem a existência de vida tal como nós a conhecemos. e não existe absolutamente nada de místico ou não científico nesta afirmação. muito pelo contrário, é um profundo conhecimento de astrofísica galática, estelar e planetária que nos permite saber isto. desta forma, poderiamos dizer que estamos na presença de um princípio antrópico para o planeta terra. mas isto não quer dizer nada de mais...
não percebo então qual o choque ou problema que as pessoas têm em falar em "princípio antrópico para o electrão". negar que tal possa existir é afirmar ---sem o saber--- que terá de existir uma equação que nos dá, unívocamente, a massa do electrão tal como a medimos. assim, não podemos realmente negá-lo em absoluto.
por outro lado, admitir que tal possa existir, também não tem nada de místico ou sobre-natural ou anti-científico: apenas significa entrar num estudo da física do universo onde existe um grande número de parâmetros (os chamados moduli) que caracterizam cada universo possível. neste contexto, o conjunto de todos os moduli descreve um enorme multiverso, onde diferentes universos terão diferentes massas para os seus electrões (podendo inclusive haver universos sem electrões) e nós observamos o que observamos pois aqui estamos neste canto particular do multiverso.
naturalmente que, a ser verdade, isto implica também distribuições de probabilidade para as diversas constantes da natureza, que terão de ser calculadas e confrontadas com as medições... mas, volto a salientar, não existe aqui nada de "criacionismo", "pseudociência" ou "religião", como a palmira classificou este post...
Já dizia o Cândido de Voltaire após ter aprendido as "sábias" lições do filósofo Pangloss:“... as coisas não podem ser de outro modo: pois, como tudo foi criado para uma finalidade, tudo está necessariamente destinado à melhor finalidade.” Ora este princípio antrópico vem no seguimento desta linha de raciocínio...
Excelente post e blog!!!
Mafalda
Qualquer tese séria sobre a possibilidade do cosmos ser ordenado necessariamente assim, tal como o ordenamos, tem de se constituir forçosamente na metafísica. Pois, para além de ter que demonstrar que o universo se rege por um princípio de racionalidade, que é único, teria igualmente que demonstrar que a física o teria descoberto. Dado que todo - ou a grande parte - do conhecimento em física é contigente, é provisório, logo esta tese teria que, antes de mais, demonstrar que a física actual não o era. Isto é, que a física teria chegado ao fim da sua pesquisa e - pasme-se - teria encontrado, de facto, as leis que regem (para todo o sempre?) o cosmos. Como os profundamentos da física e da sua possiblidade não são assunto da física, a tese teria necessariamente que ser metafísica e diga-se, seria muitissimo ousada. Neste caso, é claramente disparatada. Ser-se brilhante em física não significa que se seja um bom pensador. Este é um claro exemplo disso mesmo.
Muito provavelmente ele também está interessado em ganhar o premio da Templeton Foundation.
O Principio DESTROPICO estabelece que todos os universos sao equiprovaveis e a caracteristica de VIDA nao é mais especial que outra caracteristica qualquer. Eh apenas um valor humano.
Conheca o Principio Destropico:
www.genismo.com/logicatexto26.htm
Não existem outros universos ou o multiverso, o que existe de real é este nosso universo, que já é bem grandinho. Os multiversos são uma especulação matemática de mentes brilhantes, porém ávidas para negar o PA forte que afirma que o nosso universo está regulado de forma inimaginável para produzir em alguns planetas viáveis a vida e as consciências que observam o universo - nós.
Erro comum de achar que o princípio antrópico está ligado ao Design Inteligente. Infelizmente para teologos ou religiosos não tão bem informados sobre esse assunto, acabam citando isso como "prova" de um Criador que "projetou" o universo, mas sua idéia (antrópica) é completamente o oposto. Vale a pena lembrar também que isso é uma Lacuna (acontecimento que a ciência ainda não é capaz de responder com absoluta certeza), logo a ausência de uma explicação completa não prova que seu oposto é a verdade.
Considero que nao seja um principio antropico mas um principio que conduziu a formar a qualquer especie de vida.So que a Terra não esta com a prelazia de somente habitar vida.Há vida em outros planetas assim como pode acontecer na Terra.Meu nome é Vitor sou de cristais ,sul de minas Gerais
principio antropico absoluto de la palice.o universo deve ser de tal modo para que possa permitir a sua propria existencia.
blablabla
A distância do planeta ao seu sol importa sim, e muito. O princípio antrópico, na verdade, determina todas as situações que culminaram na vida inteligente que interage com o universo. Quanto ao raio da Terra, não sei dizer, o núcleo ainda é uma incógnita, mas a massa da terra faz toda a diferença. Se alterassemos minimamente, perturbariamos a órbita da lua e, consequentemente, a estabilidade dos oceanos acabaria com os litorais, ou seja, a vida seria muito menos espalhada pelo globo. Abraço.
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