terça-feira, 19 de junho de 2007

De onde vem o leite?

Uma das ideias erradas sobre a filosofia que dificulta o seu ensino é o mito da subjectividade. Quero falar deste mito, relacionando-o com algo de mais geral que explica a sua génese e tem por sua vez consequências também mais gerais e mais inquietantes.

A mentalidade positivista que adoptámos em Portugal vê as coisas assim: de um lado, estão as ciências e do outro está a completa subjectividade. Neste segundo lado mete-se a filosofia, a história, e tudo o que não é ciência. Este dualismo entre a ciência e as humanidades é falso, desastroso e fruto de uma incompreensão de base quer das humanidades quer da ciência.

Quem defende que a filosofia é subjectiva pensa que a ciência é o que não é e está convencido que a filosofia não é o que é. Essa pessoa pensa que a ciência é um amontoado de resultados, prontos a decorar e a aplicar, para fazer pontes e automóveis e prédios e remédios para os bicos-de-papagaio. E pensa que a filosofia não é um estudo rigoroso, objectivo e científico. E está enganada nos dois casos.

Comecemos pelo primeiro. Não podemos confundir os resultados da ciência com a ciência em si. A melhor maneira de percebermos a diferença é a seguinte. Imaginemos que na Antiguidade egípcia os nossos antepassados tinham descoberto uma espécie de Enciclopédia Galáctica, deixada em terras egípcias por alienígenas. Com base nessa Enciclopédia, os egípcios poderiam fazer pontes e automóveis e tudo o que hoje é o resultado da ciência. Diríamos, nessa circunstância, que os egípcios tinham ciência? Certamente que não. Limitaram-se a aplicar receitas cujos fundamentos desconhecem, como eu posso perfeitamente fazer um magnífico jantar sem perceber nada de culinária, seguindo apenas uma receita muito boa. O problema é pensar-se que a ciência é precisamente uma espécie de receitas, conjuntos de fórmulas «objectivas» para fazer pontes e micro-ondas. Isso não é a ciência; é apenas uma aplicação da ciência. A ciência é o que está antes disso, é a investigação fundamental que procura compreender melhor o mundo que nos rodeia. E é isso que os egípcios do nosso exemplo não têm.

Compreendo que em Portugal se possa ter esta ideia da ciência. Se me é permitida a caricatura, é como aquela criança a quem perguntamos de onde vem o leite e nos responde: «Do supermercado!» O que há de errado com esta criança é não perceber o que aconteceu antes de o leite aparecer no supermercado. O que há de errado na concepção que muitos estudantes têm da ciência é do mesmo teor. A ciência não é na sua maior parte feita em Portugal: é importada. A tecnologia não é portuguesa, e a ciência também não. Os medicamentos que compramos são quase todos de laboratórios estrangeiros, e os livros que usamos nas faculdades são também estrangeiros e esta situação dá às pessoas a ilusão de pensar que a ciência vem dos livros, tal como a criança pensa que o leite vem do supermercado. Tal como o leite, também a ciência passou por um longo processo antes de chegar aos livros que são depois copiados, repetidos, decorados e aplicados em Portugal. A ciência nasceu na cabeça dos seres humanos, nus e sós perante o universo, e sem quaisquer garantias de resultados. Mas quem se limita a consumir ciência como quem consome leite empacotado, não se apercebe disto.

Ora, quando compreendemos o modo como a ciência se faz, desfaz-se o mito de que a ciência é objectiva e a filosofia subjectiva. Em ambos os casos temos actividades humanas que procuram ir além dos nossos preconceitos e limitações, e em ambos os casos temos sucessos e falhanços. A verdadeira diferença entre a filosofia e a ciência é apenas esta: a ciência produz muitos mais resultados consensuais do que a filosofia. Mas quando estamos nas fronteiras do conhecimento, seja na ciência ou na filosofia, estamos sempre na mesma situação: somos seres humanos razoavelmente inteligentes que procuram dar o seu melhor e não têm quaisquer garantias. Quando estamos a desenvolver teorias sobre o início do universo não podemos sentar-nos, decorar meia dúzia de fórmulas, e resolver o problema. Não! Tal como na filosofia, temos de nos confrontar com muitas teorias diferentes e contraditórias, entre as quais não é fácil decidir. O que engrandece a humanidade é haver pessoas que insistem em tentar, quando muitas outras teriam logo desistido por ser tudo «muito subjectivo».

O que me assusta na ideia que os estudantes fazem da filosofia e da ciência é o alheamento que isto revela e a falta de preparação para enfrentar os desafios humanos mais básicos. Quem pensa que onde há disputa tudo é subjectivo não está preparado para entrar na discussão de ideias que faz avançar o conhecimento e é vítima da ideia infantil de que o leite vem do supermercado — ou seja, que o conhecimento está todo feito e escrito algures. Era bom que os professores preparassem os nossos estudantes não para consumidores e aplicadores acéfalos do conhecimento importado por atacado, mas em participantes de igual direito na comunidade internacional que discute ideias contraditórias e teorias rivais — que é de onde verdadeiramente vem o leite.

Excerto do livro A Natureza da Filosofia e o seu Ensino, de Desidério Murcho (Plátano, 2002).

6 comentários:

Bruce Lóse disse...

Dério,
Sobre a subjectividade e sobre o seu post "O que é a ética?".

Não querendo desmentir a fatalidade de eu ser um nabo, começo por me alinhar com a ideia de que a filosofia não é refém da subjectividade, sob pena de não passar de uma actividade especulativa inútil, atravancada na cabeça de cada um. Em informática chama-se "portabilidade" da linguagem à possibilidade de a usar em sistemas diferentes, e ou muito me engano ou é esse o primeiro propósito dos filósofos e das suas propostas.
Em segundo lugar, parece-me que o trabalho filosófico no domínio da lógica, da prospecção metódica da dúvida e do erro é essencial também às ciências exactas (já aqui estrebuchei qualquer coisa sobre isto) pelo que não me revejo na abordagem redutora e dualista "ciências exactas" e "completa subjectividade" que refere no texto.

Em terceiro lugar a minha teimosia sobre a subjectividade da ética. Pelo que tenho lido sobre a validade e qualidade das premissas, das premissas das premissas, é inevitável concluir que na origem essencial desta validação está a natureza individual - ou prudência emocional, como lhe chamou - onde deixa de haver a transparência necessária à filosofia não subjectiva. Por isso comentei no outro post que esta fragmentação me parece incompatível com os objectivos próprios da filosofia. As perguntas da ética normativa que o Dério exemplifica

- Qual é o bem último?
- O que faz uma acção ser correcta?
- Será que o aborto assim e assado?
- Será que temos o devere de ajudar os mais pobres?

são a meu ver impossíveis dados os atributos que os próprios filósofos pretendem do seu trabalho. Reconheço, obviamente, a conceptualização ético-jurídica que organiza "por grosso" o patamar ético, por exemplo, da legislação. O problema é que, como diz o Mia Couto, cada homem é uma raça.

Anónimo disse...

Quero falar acerca desta frase:
"a ciência produz muitos mais resultados consensuais do que a filosofia."
Creio que foi a propósito da primeira opinião que deixei escrita neste blog que outro seu frequentador classificou o que eu disse como "terrorismo verbal". Tratava-se, nem mais nem menos, do que a síntese de um capítulo de um livro que publiquei há uma dúzia de anos. Resumo agora esse resumo da seguinte forma: a consciência é a maneira de o universo se defender da não existência, porquanto não ser conhecido nem ter consciência de si é o mesmo que não existir.
Por ests dias, numa revista de ciência, li que Christian de Duve disse que a consciência é uma expressão do cosmos tão fundamental como a própria vida.
De certeza que não é consensual. Apesar disso, ninguém terá dito que se tratou de terrorismo verbal.

Anónimo disse...

Infelizmente não é só a filosofia que sofre de subjectividade ilusória, as artes e as literaturas estão carregadas dela e a própria ciência, como tem sido denunciado neste blog, também se vê a braços com variadíssimas "coisas" como o criacionismo e outras curandices.

Aliás, a subjectividade é uma arma fantástica no nosso dia a dia. Independentemente do nosso grau de formação, nos tempos actuais, explicar uma atitude que possamos ter tomado é um exercício de pura estupidez porque a subjectividade já tinha explicado essa nossa atitude muito antes de a termos tomado.

Os políticos são os mestres da subjectividade (o dilema Ota/Qualquer local é um exemplo recente assim...de pouca importância) por isso é que passam o tempo a esfregar as costas uns aos outros com dicotomias esquerdas/direitas ou capitalismo social versus socialismo liberal.

Já, se formos comprar um canudinho e portanto acrescentarmos o apelido dr ao nome passamos a sofrer do oposto, razão excessiva. Qualquer disparate que a gente diga é uma demonstração de elevados níveis de racionalidade, para nós e para os outros.

Esta situação é também bastante confortável para a generalidade dos mortais e por isso é tão difícil remar contra a maré de todas as formas de "eduQuês?".
A economia é que é uma malandra porque normalmente acaba por estragar estas continhas todas. E, continhas que estão certas! Já o confirmámos. Só que o piiib... e a produtividaaade...

E por isso também, é que a Filosofia é uma coisa gira. Para um hobby. Tipo cubo mágico das ideias ou... soduku intelectual.

Certamente derivei do tema mas como acredito que a bondade humana pode ser ilimitada, estarei naturalmente perdoado.

Artur Figueiredo

Anónimo disse...

Quem perdoa uma vez, também fácilmente perdoa duas, e eu já agora vos confesso que tenho o persentimento que o melhor local para o "aeroporto da ota" era algures ao largo entre Cascais e Setúbal. As distâncias ideais seriam proporcionais a 1/5 para Lisboa e 4/5 para Setúbal que é a correspondência com os fluxos de utilizadores da Portela.

Já ouço sussurros de Ah mas o oceano! É tão ecológico e primitivo... as espécies autóctones? Falso. Portela, Ota e Camp´deTiro seriam exemplos de Empreendimentos Urbanos do mais sólido desenvolvimento ambiental humano integrado do planeta e os lucros seriam utilizados para aumentar a população de tainhas e afins.

Todos os estudos ambientais sobre a implantação do aeroporto oceânico teriam de atingir o consenso absoluto e claro, a primeira condicionante lançada sobre a mesa seria a manutenção das rotas migratórias desses portentosos animais oceânicos que são os petroleiros e mercantes.

Teríamos com toda a certeza, mais de um terço da população portuguesa directamente servida, camelos de um lado e do outro do Tejo e tempo de sobra para toda a população poder fazer coisas muito mais úteis.

Os leitores, neste momento estão a pensar: - Este palerma quer é tirar a Capital Portuguesa das rotas aéreas! Mas garanto-vos: É o oposto! Pelo contrário, Portugal seria o único destino do mundo em que uma viagem de avião seria um dois em um inesquecível: sim, se temos um país lindo teremos seguramente um oceano inolvidável.

Qualquer réstia de ideia, facilmente descarregaria a manga de passageiros em luxuosos catamarãs e ao cabo de dez minuto poderíamos descansadamente estar a almoçar numa marisqueira da Rua de Santo Antão ou efusivamente de botinha de borracha, cana de pesca e minhoca a caminho de desfrutar o melhor que há no Sado.

Que se dane a problemática da aerodinâmica dos ventos porque as construtoras aeronáuticas ganham mais do que o suficiente para legislativamente serem obrigadas a adaptar os seus brinquedos e as infra-estruturas de apoio necessárias ao aeroporto atlântico resumiriam os investimentos necessários nesta matéria a uma ninharia para aquisição de dúzia e meia de catamerãs e uns míseros euros para recuperar os necessários cais e docas. Ou não sejamos nós uma nação marítima!

Claro que isto é uma ideia completamente tola porque garantidamente não arregimentarei ninguém para pagar os estudos!
Mas, se vista subjectivamente...

Artur Figueiredo

Anónimo disse...

Reduzo em poesia e aumento em eficiência: troque-se os catamarãs por hovercrafts.

artur Figueiredo

Anónimo disse...

O Forte do Bugio poderia servir de Heliporto.

FÁBULA BEM DISPOSTA

Se uma vez um rei bateu na mãe, pra ficar com um terreno chamado, depois, Portugal, que mal tem que um russo teimoso tenha queimado o te...