sábado, 3 de março de 2012

O “espirro” de Cavaco e a entrada dos 40.000


Nova crónica recebida de João Boaventura:

*O Carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva.*
Mikhail Bakhitin, Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento

*O Carnaval era uma representação do mundo virada de cabeça para baixo.*
Peter Burke, Cultura Popular na Idade Moderna

Lembrança se retoma para testemunhar como, durante o regime socrático, o nosso Presidente da República passou por momentos triplamente tensos: o de ser de todos os portugueses, o de acompanhar e viver a crise, e o de defrontar um primeiro ministro de ideário diferente, transportando consigo algum distanciamento, mas o chamado regime democrático impôs-lhe aparências, exactamente como o “fair play” ou as “good manners” constituíam rituais de boas etiquetas nas cortes monárquicas, e entre os nobres, compaginadas com as marginais e humanas intrigas palacianas.

De formações e origens diferentes, esteve sempre patente o incómodo patenteado pela Presidência durante a longa travessia do regime socrático, cujos sinais se exteriorizavam no retraimento com a comunicação social, a fuga a respostas mais concretas, a evasiva a explorações mediáticas, o ar severo e retraído, o distanciamento, o fechamento como nova figuração de tabu, o quase auto-silêncio, não fossem alguns palavras a mais gerar polémicas desnecessárias, para evitar o confronto de Belém com S. Bento.

Tinha apenas o porte de Hobbes que, no seu “Leviatan”, falava muito na sua timidez e acanhamento, o que não o impediu de lançar uma nova e arrojada interpretação do homem e do Estado, que lhe valeu a perseguição dos presbiterianos ingleses e dos clericais franceses, o que, di-lo ele, o levou a tomar a atitude de “refugiado”. Até aqui fica apenas o esquisso da similitude da primeira parte do retrato entre Hobbes e Cavaco, com a ressalva de que, enquanto Hobbes tem uma concepção mecânica e matemática do mundo, onde tudo se reduz a corpos e movimentos, “onde as paixões e as emoções são movimentos interiores, determinados pelos movimentos exteriores”, resultando em “fantasias”, Cavaco vive apenas no mundo da “fantasia”, no “faz de conta”,

Acontece porém que a segunda parte do retrato se inverte porque, com a eleição de Passos Coelho, do PSD, a transfiguração do tímido e acanhado converte-se no “refugiado do outro regime” que entra no terreno da sua inscrição, no retorno ao ideário de origem. Belém e S. Bento fundem-se numa instituição, graças à colaboração do CDS, o que já lhe permite abrir o jogo político, a discordância aberta e declarada com o jovem primeiro ministro, cuja inexperiência lhe abre completamente as portas para se introduzir na área governativa e económica, sem temor. Novos horizontes se lhe abrem e em tão momentosa crise, pode apresentar-se como a oportuna e atempada salvação do país.

A insistente discordância com as medidas que Passos Coelho vai anunciando, oblitera-lhe a prudência e a contenção, porque no seu currículo constam as duas únicas maiorias nacionais alcançadas para governar, nas eleições de 1987 (50,2 votos, e apenas 28,4 abstenções), e de 1991 (50,6 votos e 32,2 de abstenções), contra a minoria governativa de Passos Coelho, nas eleições de 2011 (38,6 votos, mas 41,97 abstenções), o que, somado à sua inexperiência, à coligação pós-eleições com o CDS, e ter enfrentado uma votação da abstenção superior aos votos obtidos, o coloca em posição fragilizada. Este cenário permite-lhe afrontar o governo com uma impertinência que destoa do homem tímido e acanhado.

Acaba por criar um espectáculo incómodo entre Belém e S. Bento, a que a sociedade vai assistindo, entre o incrédulo e o espanto, que obriga Cavaco, para animar os esfomeados e inanimados portugueses, a justificar-se, por afecto, e em resposta a “milhares de cartas de idosos e pensionistas a queixarem-se de falta de meios de subsistência”, que também se sente frustrado já que “tudo somado, quase de certeza que não vai chegar para pagar as minhas despesas, porque também não recebo vencimento como Presidente da República” (CM, 20.01.2012).

Cavaco passa de “refugiado do outro regime” a “refugiado dentro do próprio regime”.

Chegados a este ponto, assiste-se agora a uma petição de 40.000 assinaturas com o fim de solicitar a demissão do Presidente da República, lembrando de certa forma o episódio da “Anábasis”, onde Xenofonte narra que, havendo uma situação de dúvida, entre o permanecerem os 10.000 homens na luta ou prosseguirem a marcha, ao espirro de um soldado foi decidido prosseguir, porque o espirro era de bom augúrio. Se a comparação é permitida, a infeliz tirada de Cavaco ressoou com um “espirro” de mau augúrio porque 40.000, não prosseguiram na marcha, entraram em combate.

Não imagino se chegados a este Carnaval lusitano se devemos rir ou chorar, mas socorramo-nos do Sermão de António Vieira à Rainha Cristina da Suécia, para nos dar a resposta:

“Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heraclito chorava porque todas lhe pareciam misérias; logo maior razão tinha Heraclito de chorar, que Demócrito de rir, porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorância, e não há ignorância que não seja miséria”.

João Boaventura

4 comentários:

Cisfranco disse...

Este PR, durante o mandato anterior, foi um caldinho sem sal, que se deixou enrolar e até humilhar, sem nem um "espirro" que fosse. Dizia, de vez em quando, umas palavrinhas ao País, anunciadas com suspence, para dizer que não concordava com a assinatura que já tinha feito em diplomas importantas. Os que ainda lhe ligavam alguma ficavam atónitos com a exibição de tais números de palhaçada de Sua Exª. Era o equivalente luso mais-que-perfeito da rainha de Inglaterra, mas muito mais dispendioso para o herário público. Tinha o 2º mandato para conquistar e, aí chegado, começou logo a despertar com o discurso de vitória e daí para a frente não tem parado. Lidera a contestação e, tudo o que está para trás nada tem a ver com ele. Junta-se até aos expoliados nos seus vencimentos que já não ganham para as suas despesas como a ele injustiçado e pobre presidente lhe acontece.

José Fontes disse...

Entretanto os seus «compagnons de route» (e da Coelha) vão tratando da vidinha.
Oliveira e Costa e Dias Loureiro no BPN;
Catroga na EDP;
Mira Amaral no BIC / BPN;
Ferreira do Amaral na Lusoponte.
É fartar vilanagem (enquanto o presidente lamenta os sacrifícios dos portugueses e a sua parca reforma):

A história, divulgada esta semana, é exemplar: uma das primeiras decisões do Governo, depois de tomar posse, foi introduzir portagens na ponte 25 de Abril em Agosto, acabando com uma tradição antiga que beneficiava os lisboetas que apenas podem frequentar as praias da Costa da Caparica nas férias. A ideia seria aumentar a cobrança dos impostos pagos nas portagens mas sobretudo poupar na indemnização compensatória paga à Lusoponte pela quebra nas receitas, no valor de 4.4 milhões de euros. O problema é que a Lusoponte, cujo presidente é Ferreira do Amaral, dirigente do PSD e antigo ministro das Obras Públicas de Cavaco, exigiu ao Governo esses 4.4 milhões. Este Governo, já sabemos, existe para pisar e roubar os mais fracos e ceder perante os mais fortes, para mais quando estamos a falar de alguém como Ferreira do Amaral, um dos amigos da Quinta da Coelha e «vaca sagrada» deste regime podre e corrupto. Em Novembro, depois de o secretário de estado dos Transportes ter pedido um esclarecimento aos seus superiores no Governo, foi decidido que esse dinheiro seria pago à Lusoponte pelas Estradas de Portugal, por sinal uma das empresas públicas que pior desempenho teve em 2011. E assim esta comovente história acabou por ter um final feliz: a Lusoponte cobrou portagens em Agosto e recebeu a indemnização por não cobrar portagens, o que só demonstra como determinados paradoxos de sentido são possíveis caso realmente o Governo se esforce para isso. O BE pediu a presença do secretário de estado dos Transportes na AR. Mas não sei porquê acho que vai tudo ficar em águas de bacalhau - não estou a ver como é que agora se irá obrigar a Lusoponte a devolver o nosso dinheiro, oferecido com todo o despudor pelo Governo. Bom, deve ser disto que o primeiro-ministro e a cinderela da lambreta falam quando se lembram das ajudas aos mais carenciados. Os 4.4 milhões de euros correspondem exactamente a quantos subsídios de Natal? Vá lá, não sejam piegas, há sempre alguém que precisa mais do que nós.

joão boaventura disse...

As desigualdades sociais são de todos os tempos, e entre os lusitanos também foram sentidas entre os jovens que, para saldar a diferença fugiam para as montanhas e dedicavam-se à pilhagem, ao roubo, e ao banditismo, estendendo a sua acção até Andaluzia como o fazia Viriato, e como hoje continuam a fazer, os jovens portugueses, assaltando ourivesarias, caixas de multibancos e lojas, com a ajuda de romenos, ucranianos, para não terem que sair do país.

Como estavam também a combater os romanos, Atílio, Lúculo e Galba, a Troika da época, convenceram os 3.000 lusitanos a depor armas em troca de terras para cultivarem, posto o que, foram separados em três grupos de 1.000, colocados numa cerca, e para concluir o acordo que entregassem as armas. Depois foi o massacre, como os crimes de guerra da Bósnia dos sérvios aos da Bósnia-Herzegovina.

De um dos grupos trucidados pela Troika romana, Viriato conseguiu fugir para vingar a afronta e vilania de Roma, o que conseguiu combatendo os romanos no vale de Alquibir até que, cansado de tantas guerras ganhas estipulou a paz com os Romanos com a promessa de que Lusitânia e Roma seriam aliados. Foi traído e assassinado enquanto dormia.

Depois, para manter a tradição dos assaltos, roubos, saques e banditismo, a história acrescenta novos eventos, como este:

“Encomendou el-Rei D. João o Terceiro a S. Francisco Xavier o informasse do estado da Índia, por via de seu companheiro, que era mestre do Príncipe; e o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios, nem pessoas, foi que o verbo rapio na Índia se conjugava em todos dos modos…”.

No séc. 21, a tradição rapioqueira mantém-se quando o Empresário Ferraz da Costa, numa entrevista ao jornal "i" declarou sem papas na língua que: "em Portugal rouba-se descaradamente".

Hoje, corre na net que o “TDT” é um imposto disfarçado para ver televisão, além de um “tremendo negócio para a PT”. Porquê ? Porque só dá 4 canais gratuitos, enquanto na Alemanha e em Espanha, dão 20 cada um, na França 29, na Itália 27, no Reino Unido 38, e que, em alguns países o TDT foi distribuído gratuitamente.

Portanto, a tradição lusitana mantém-se e varia conforme as circunstâncias e as formas de conjugar o verbo “rapio”.

Anónimo disse...

Acaso Vossemecê já teve a pachorra de ler na íntegra o texto de Xenofonte?!... JCN

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